Depois da guerra, o povo de Rivia andava infeliz. A pobreza era a situação de muitos e todos acreditavam que os reis e nobres os haviam traído durante as conversações de paz, não exigindo reparações de Nilfgaard. Um bode expiatório era necessário e, como de costume, foram os não-humanos, feiticeiras e bruxos.

Uma mera centelha foi necessária para enviar uma multidão furiosa para as ruas. Qualquer pessoa que parecesse diferente se tornava alvo. Anões, elfos e os acusados ​​de usar Magias foram assassinados. As pessoas também usaram a situação para resolver antigas pendências, além de praticar outros crimes como roubo e estupro. Admito vergonhosamente que poucos foram corajosos o suficiente para defender os perseguidos. Entre esses poucos estava o famoso Geralt de Rivia, que ao tentar proteger seus amigos foi atingido com um ancinho e morreu. Haveria mais vítimas se não fosse a intervenção de Triss Merigold. A feiticeira enviou uma poderosa chuva de granizo para a multidão. Somente aquele feitiço poderoso poderia parar os tumultos. O que aconteceu com o corpo de Geralt de Rivia e aqueles que estavam ao seu lado, nós não sabemos.



(extraído do livro “O Pogrom de Rívia”)

Outra vez, o som da nota dó. Mas ainda não era dó, pelo menos não para o ouvido treinado de músico de Argalad. Insatisfeito, o elfo apertou mais a corda. Dedilhou de novo. Ainda não era o dó, aquele dó perfeito que ele queria. Desfrouxou um pouco. Dedilhou de novo. Fez uma careta insatisfeita e apertou mais a corda.

-Caramba, Argalad. Agora todas as suas canções tem uma só nota?

- Não vê que estou afinando o meu alaúde? – reclamou o bardo, ofendido.

-Você acabou de tocar “Vinte Maneiras de Iludir um Marido” e me pareceu afinado.

-Oh, Elendil. Quão abençoado eu seria se todos tivessem um ouvido tão péssimo e insensível quanto o seu. Acontece que a nota Dó está imprecisa. Isso atrapalha a performance e... Oh, pelos deuses... O que está acontecendo com o Iorveth?

Era noite alta, e os três elfos se encontravam ao redor de uma fogueira. Iorveth costumava ficar em vigilância, mas após uma forte insistência de Elendil, o elfo precisou ceder e se conceder algum descanso. Ainda nos tempos de cela, Elendil e Argalad perceberam um fato curioso, que nenhum deles tinha coragem de contar a Iorveth: ele falava enquanto dormia. Não era a coisa mais bizarra do mundo a se contar a alguém, mas todos temiam que Iorveth tivesse uma reação imprevisível quando soubesse que o conteúdo de seus sonhos com a tal de Saskia e alguém chamado Roche eram quase do conhecimento dos demais.

-Com quem será que ele está sonhando desta vez? Com a Saskia? – cochichou Argalad.

-Não. – retrucou o caçador de cervos. – Ele geralmente fica com o semblante calmo quando sonha com ela. Pela careta estampada na cara dele, está sonhando com o tal de Roche.

Argalad deixou escapar uma risadinha. – Eu acho que ele é apaixonado por essa Saskia e nem sabe. Olha, ele tá falando alguma coisa...

—... Nós, Aen Seidhe, nunca matamos o último de espécies em extinção...

—Ele deve estar falando de manticoras. – cochichou Argalad para Elendil. O elfo riu.

—Não é bem o que parece. Olha, ele está sorrindo. Nossa...

—Esse sorriso dele tá meio macabro, não acha?

—Definitivamente não está sonhando com a tal da Saskia.

Para abismação de Argalad e Elendil, Iorveth acordou repentinamente. O elfo ficou ainda mais surpreso por perceber que estava sendo observado pelos dois – apesar de ambos terem optado por fingir estarem ocupados com outra coisa. Argalad voltou sua atenção ao alaúde e Elendil parecia exageradamente preocupado com o cordão de seu gibão.

—Estou cercado por idiotas. – decretou Iorveth, enquanto Argalad engolia uma risada.

As circunstâncias estranhas tornaram Iorveth, Argalad e Elendil aliadas temporários. No fim, os três eram extremamente diferentes. Elendil ainda tinha suas idéias de que os elfos e anões precisavam compreender seu lugar em um mundo dominado por uma raça hegemônica. Iorveth acreditava que os inumanos precisavam se unir e formar seu próprio lugar, um no qual os humanos não se intrometeriam. E Argalad...

No mar navega o barco

No barco navega o vento

Na onda dos teus cabelos

Navega meu pensamento

Eram as cantorias de Argalad que interrompiam as incessantes discussões de política entre Iorveth e Elendil, ainda mais depois que o elfo conseguiu surrupiar o alaúde de um taberneiro, fato este que fez os três elfos correrem depressa de Carreras. Os três evitaram ao máximo o contato humano, mas por vezes era necessário. Entretanto, a notícia da fuga de Iorveth não chegou aos ouvidos dos habitantes dos pequenos vilarejos que eles visitavam.

A viagem tornou-se mais rápida quando Elendil encontrou na floresta uma carroça sem dono – ou ao menos assim ele disse, quando Iorveth estava bebendo água no rio Iga e o elfo caçador havia desaparecido para caçar coelhos com seu arco e flecha improvisado. O líder dos Scoia'tael sabia que o elfo havia roubado de algum camponês desavisado, que a esta altura deveria estar com duas flechas nas costas, mas preferiu não fazer qualquer comentário. Estava cansativo demais fazer o longo percurso de Ellander até a longínqua Lathlake a pé. Além disso, dentro da carroça havia uma espada velha e enferrujada, mas que poderia se mostrar útil na estrada, caso fossem abordados. Sendo o mais experiente do trio, Iorveth a deixou em sua cintura.

Estavam com a carroça passando na estrada quando o grupo de elfos foragidos passou no que parecia ser, aparentemente, um acidente de estrada. Uma carroça estava do lado de fora da estrada, tombada. Outra carroça obstruía a estrada.

—O que será que aconteceu aqui? – perguntou-se o sempre curioso Argalad.

—Não faço a mínima ideia, mas algo me diz que devemos acelerar o passo.

—Espere. – pediu repentinamente Iorveth, fazendo Elendil puxar as rédeas do cavalo.

Com a carroça parada, o líder dos Scoia’tael pôs seus pés no chão e caminhou a olhar os arredores. Tomado pela curiosidade, o bardo Argalad decidiu fazer o mesmo. Notaram que aquela deveria ser uma comitiva de comerciantes inumanos pois todos os mortos consistiam em anões e elfos. Tristeza e revolta passaram por Iorveth, quando diante do cadáver de uma elfa. Impaciente, Elendil permaneceu na carroça com as rédeas na mão.

—Estamos brincando com a sorte ficando aqui. Uma hora ou outra uma patrulha irá passar e a culpa recairá sobre nós três se permanecermos neste acidente.

—Isto está muito longe de ser um acidente, Elendil. – respondeu Iorveth, puxando de um dos cadáveres o que parecia ser uma flecha. – Veja com seus próprios olhos.

—Esse não é o primeiro assalto a inumanos que eu vejo, Iorveth. E creio que também não seja o seu. Algum grupo de bandidos ataca uma carga guardada por anões e elfos, todos morrem e a mercadoria é levada. Nada que já não tenha acontecido antes na Teméria.

—Ainda assim... – balbuciava Iorveth. – Essa flecha de ponta dourada... Só conheço um grupo que a utiliza...

—Scoia’tael? – perguntou o caçador, arregalando os olhos.

—Exatamente.

—Merda. Mais um motivo para darmos o fora daqui.

—Pelo contrário, Elendil. Mais um motivo para vasculharmos esta mata atrás deles. Há algo de muito podre nessa história, Elendil. Os Scoia’tael não atacam e saqueiam anões e elfos, apenas humanos. Matamos os nossos iguais apenas em caso de traição, o que não parece ser este o caso. Preciso saber o que diabos está acontecendo.

Elendil estava impaciente. – Pois vá sozinho. Não vou ficar indo atrás desses bandidos. Eu quero ir para a minha casa, rever minha esposa e filho...

—Elendil está certo, Iorveth. – retrucou Argalad, soando sensato pela primeira vez. – Talvez estes bandidos nem sejam Scoia’tael. Podem ser bandidos comuns, usando flechas parecidas com as dos Scoia’tael...

—Impossível. Eu sei reconhecer uma flecha Scoia’tael quando vejo uma.

—E se forem Scoia’tael? O que fará? Todos pensam que você está morto. Não irão acreditar em você, vestido em farrapos e sem um arco sequer nas costas para se defender. Tem que reconhecer que está em desvantagem, Iorveth.

Com grande desgosto nos olhos, Iorveth refletia sobre as palavras do bardo. O elfo precisava admitir que as palavras de Argalad tinham lá uma certa razão. Qualquer Scoia’tael o daria por um impostor naquelas circunstâncias.

—Deixe tal questão para outro dia, Iorveth. Precisamos chegar a Lathlake o quanto antes. Lá estaremos seguros. – disse Argalad, pondo a mão sob o ombro do líder dos Scoia’tael. Para sua surpresa, Iorveth não se recolheu à sua proximidade.

Sem dizer uma palavra, Iorveth retornou à carroça. Ficou avistando os destroços do ataque, até que fossem distantes à sua visão. Cedo ou tarde, retornaria ali.

II

Passado um pouco mais de duas semanas desde a fuga, o grupo improvável de elfos finalmente chegou até o vilarejo de Lathlake, que ficava entre a cidade de Dorian e a província de Velen, agora denominada “Terra de Ninguém”. Mesmo nos áureos tempos da Teméria a província de Velen sempre teve um ar abandonado, que dirá agora, que o país estava atravessando uma complicada dificuldade política, sem um governante para unir as províncias. Na verdade, toda a Teméria estava uma bagunça. Os Barões das províncias estavam afoitos, agora que não tinham um Rei para prestar contas e cada um tratava sua pequena porção de terras como um estado soberano, tendo seu próprio exército, tributos e leis, não tendo que entregar um Oren sequer ao Rei. Se havia alguém com qualquer pretensão de retomar o agora vago trono temeriano, este alguém teria uma dura batalha pela frente.

Quando já próximos a Lathlake, notaram algo cruzar os céus.

—O que é isso? – estranhou Elendil, ao ver um ponto negro voando no céu, de modo alado. Parecia circundar a antiga e abandonada torre élfica do vilarejo.

—É o dragão que te contei, Elendil! É ele!

Iorveth sentiu seu coração bater mais forte. Mesmo com o Dragão longe, ele sabia que era Saskia. Ele já havia visto Saskia transformada antes e a reconheceu, pela cor enegrecida e até mesmo pelo bater de suas asas. Na verdade, foi ideia dele espalhar pelo Norte a fama de “Saskia, a Matadora de Dragões”, quando a própria, na verdade, era um Dragão, filha do lendário Dragão Dourado Bosch Três Gralhas, nome este que o elfo achou estranho. “O meu nome e o nome do meu pai são impronunciáveis”, ela disse. A ironia da situação de vê-la sendo chamada de Matadora de Dragões era irresistível demais para ignorar e, para sua surpresa, Saskia concordou em receber o equivocado título.

E agora, vê-la transformada a cortar os ares, quando ele sabia que ela estava sendo controlada por uma maldição, era algo que entristecia o seu coração.

—O que foi, Iorveth? Parece que viu um fantasma.

—Quase isso. – deixou escapar Iorveth.

—O que? – questionou Elendil, curioso. – Quer saber? Vamos acelerar o passo. Não andei quilômetros de distância para acabar na boca de um Dragão.

Elendil morava em uma choupana longe do vilarejo de Lathlake e seus dh’oines, para alívio de Iorveth. Ouviu durante toda a viagem todas as virtudes de Turiel, sua esposa, e também sobre seu filho pequeno. Imaginava o quão grande ele estaria, e que ele seria, a esta altura, um exímio caçador, assim como seu pai. Dizia sentir falta do guisado de coelho de sua esposa, uma ótima cozinheira e herbalista. Mas um fato causou surpresa a Iorveth.

—Ela também é uma feiticeira.

—Sério? – Argalad arregalou os olhos. – Você é casado com uma feiticeira?

Iorveth estranhou a novidade no mesmo instante.

—Mas feiticeiras não podem ter filhos...

—Acho que não expliquei direito. Meu sogro era um feiticeiro élfico. Minha esposa também seria, mas foi expulsa de Aretuza, a Escola de Formação de Feiticeiras.

Argalad parecia surpreso. – Como ela conseguiu tamanha façanha? Digo, ser expulsa de Aretuza e sobreviver para contar a história...

—Ela jamais quis me dar os detalhes. Um conselho: não perguntem sobre isso, porque ela não gosta. Enfim, minha esposa não sabe praticamente nada de Magia, só um fundamento ou outro. Coisas simples, como acender o fogo com um dedo. Ela brinca que um bruxo sabe mais Magia do que ela.

—Incrível. – balbuciou Argalad. – Isso daria até uma canção. Imaginem só, uma jovem aprendiz de feiticeira larga a prática da Magia para se casar com um caçador...

—Espere, eu não disse que ela largou a Magia por minha causa.

—Isso é um pequeno detalhe que não interessa ao grande público. Só estou dizendo que daria uma bela canção. – disse o bardo, começando a se perder em seus próprios pensamentos. Iorveth rolou seu olho.

—É melhor chegarmos logo, antes que esse bardo resolva fazer uma canção sobre mim, também. – disse Iorveth.

—Mas eu já fiz uma canção sobre você, Iorveth. Muito boa, por sinal. Só que ainda não decidi se vai se chamar “Chupando Até o Osso” ou “A Balada do Elfo e do Rato”.

—Considere-se um homem morto se publicar ou cantar qualquer coisa desta natureza sobre mim. – ameaçou Iorveth, com seu mais mortífero olhar, fazendo o bardo estremecer.

—Acalmem-se, pessoal. Veja só, acabamos de chegar. A minha casa fica em frente ao Carvalho Velho, à direita. – disse Argalad, aliviado ao ver uma fumaça a escapar entre as copas. Fumaça esta que ele reconhecia como sendo de uma lareira. Logo veio à sua mente o cheiro de carne de cervo assada em um espeto, como ele tanto gostava...

Cansado da viagem, os cavalos da carroça pareciam aliviados quando Elendil os fez parar diante da pequena casa, escondida na floresta que cercava Lathlake. O olfato apurado dos elfos os fez sentir o característico cheiro de um misturado de ervas, além do apetitoso cheiro de comida a cozinhar no fogo. O sol estava alto, era quase meio-dia, um sinal de que Turiel, a esposa de Elendil, estava preparando o almoço.

Elendil correu para sua própria casa, com um sorriso de orelha a orelha. Mais acanhados, Iorveth e Argalad decidiram esperar do lado de fora, temendo que, em seis anos de ausência, a casa não fosse mais ocupada por Turiel. Afinal, a represália a não-humanos era tão grande nos últimos tempos que uma elfa vivendo sozinha na floresta estava sujeita a tudo.

Mas logo Elendil reapareceu, com o semblante um pouco preocupado. Argalad e Iorveth tiveram um mau pressentimento, mas foram acalmados pela notícia do caçador.

—Ela desmaiou quando me viu. – disse, num tom derrotado.

III

Turiel acordou, com a sensação de um forte cheiro de carniça em sua narina. Era Cáscara. Turiel sempre odiou Cáscara, mas sabia que a planta aquática tinha lá sua utilidade. E ao que parecia, Elendil havia voltado dos mortos apenas para irritá-la.

—Você está bem? – perguntou Elendil. O cheiro dele... Provocava vômito em Turiel. Era um misto de urina, suor e outra substância igualmente podre. Nem mesmo o hálito que exalava de sua boca escapava, para seu profundo asco.

—Turiel? – Elendil perguntou de novo.

—Por favor, não abra a boca.

Elendil pareceu obedecê-la, com um sorriso. Esta era a boa e velha Turiel, sua esposa, e seu olfato mais apurado que o normal em um elfo. Elendil sempre disse que esta característica nela era um dom, possivelmente atenuado por sua linhagem Aen Seidhe pura, mas Turiel o achava uma maldição, por conseguir distinguir sem esforço quando uma pessoa fingiu tomar banho porque estava frio demais, ou quando alguns alquimistas insistiam em usar o enjoativo cheiro de Frutas Crispim como essência.

Já recuperada do desmaio, Turiel se levantou e caminhou até sua caixa de poções. Atirou para Elendil um frasco com um líquido de coloração verde.

—Beba isso. – disse, sendo obedecida.

Voltando seus olhos ao seu redor, Turiel percebeu que havia outros dois elfos na sala. O mais alto usava uma bandana vermelha, que não era o suficiente para cobrir completamente a horrenda cicatriz de seu rosto. O outro elfo carregava um alaúde nas costas. Todos os três, incluindo seu marido, estavam magros e imundos. Seu estômago rodopiou outra vez.

—O que está acontecendo, Elendil? – ela perguntou, fazendo o possível para não vomitar ali mesmo, diante dos dois estranhos. – Eu pensei que... Que...

—Meu amor, eu estive preso por todo este tempo. Fui confundido com um Scoia'tael e acabei na Fortaleza de Ellander. Só consegui escapar com a ajuda deles. Ah, eu nem mesmo os apresentei. Este é Argalad e este... Bem, este é...

—Iorveth. – apresentou-se o líder dos Scoia'tael. Turiel parecia aturdida.

—O Líder dos Scoia'tael? – ela questionou. Ao receber um assentimento do próprio Iorveth, Turiel virou-se para seu marido, que parecia timidamente recolhido.

—Não entendo. Você sempre foi contra os Scoia'tael...

—Não pude escolher minhas alianças na cadeia. – retrucou Elendil. A resposta desdenhosa de Elendil sequer pôde perturbar Iorveth, pois era algo mutuamente sentido. – O que importa é que estou aqui outra vez. Que voltei para você e para o nosso pequeno Berdelon... Aliás, onde ele está?

—Elendil...

—Ah, que bobagem a minha. Há esta hora, ele deve estar na floresta, com seu inseparável arco e flecha.

—Elendil, ele...

—Ou então em Lathlake, quem sabe? Você deve ter pedido para que ele fosse comprar alguma coisa para nossa casa... Afinal, ele já deve ser um rapaz...

—Elendil, nosso filho está morto.

As palavras já haviam saído de sua boca, mas isso não diminuiu o arrependimento de Turiel ao dar ao seu marido tão estarrecedora notícia. A elfa suspirou e cobriu seus lábios com suas mãos, mas nada poderia fazer aquele momento voltar atrás. Nem a mais poderosa das Magias. Ela ficou a observar Elendil, de olhos arregalados. Viu escorrer de seus olhos, a contragosto, uma lágrima. Muito tempo havia se passado e ele perdera muita coisa. Boa parte delas era algo ruim. E neste ponto, Turiel o invejava, pois tudo que ela não desejava era possuir estas lembranças.

Sentando-se, Turiel tornou a reunir as memórias daquele fatídico dia em que o vilarejo de Lathlake decidiu que os inumanos deveriam ser mortos. Não porque fossem criminosos ou vagabundos. Simplesmente porque eram diferentes.

IV

Tudo havia acontecido a cerca de quatro anos atrás, mas recontar aquela história fazia Turiel ter a sensação de que os eventos eram recentes. Todas as memórias daquele dia eram ainda frescas em sua mente, e a herbalista temia que assim permanecessem pelo resto de seus dias. Nestas horas, Turiel se lamentava por não ser humana e ter a vida curta, pois havia ainda uns bons séculos de vida pela frente para enfrentar.

Turiel decidiu começar pela chegada de um sacerdote do Fogo Eterno, a princípio de passagem pelo vilarejo, com destino a Novigrad, que precisou parar por ali porque uma das pontes desabou. O Magistrado de Lathlake o recebeu com regozijo, junto dos demais moradores, uma boa parte camponeses ignorantes que viam a estadia do sacerdote como um pouco de civilização chegando àquelas terras inóspitas e esquecidas. Logo, todo o vilarejo de Lathlake se reuniu para ouvir as preces e a pregação do sacerdote. Boa parte delas, declarações de ódio à prática de Magia e aos não-humanos, chamados pelo sacerdote de “anormais” e “praticantes de blasfêmia”, nos termos mais suaves.

Turiel jamais testemunhou qualquer sermão do sacerdote, mas desde a chegada dele a elfa notou ouvir comentários maldosos sobre si, durante suas idas ao Vilarejo. O incidente mais grave ocorreu quando a elfa e seu filho pequeno foram cercados por um grupo de homens, onde a elfa ouviu ofensas como “orelhas pontudas”, “bruxa” e “pecadora”, ofensas que ela jamais ouviu por ali. Um dos homens foi mais agressivo, tomando uma das caixas de poções e extratos da carroça dela e atirando-a contra o chão. A confusão quase adotou um tom mais grave, se não fosse a intervenção do Magistrado. Os homens se aquietaram e deixaram Turiel ir embora, mas a julgar pelo tom sombrio nos olhares deles, a elfa sentia que aquilo era só o princípio de seu tormento.

Desde então, a elfa se isolou em sua choupana na floresta com seu filho, atendendo apenas alguns poucos clientes que permaneceram fiéis após os inúmeros sermões do sacerdote. A maioria havia desistido de procurar a herbalista. Aqueles foram tempos difíceis, mas Turiel não se deixava desistir. Iria criar Berdelon, seu amado filho, mesmo com todas as dificuldades. O menino prometia a mãe que cuidaria dela, que caçaria coelhos e cervo na floresta, como seu pai. Prometia também que iria acompanha-la quando fosse buscar ervas pela floresta, para protege-la. Turiel achava adorável como seu filho a amava, apesar do almoço e do jantar estar cada vez mais magro e da falta de perspectiva que os assolava com o isolamento e o distanciamento dos humanos.

Mas tudo mudou em apenas uma noite.

Turiel já estava dormindo quando acordou com a porta de sua casa sendo arrombada. Ainda vestindo sua camisola, a elfa correu para a porta, para ver o que estava acontecendo. Foi arremessada para longe, quando cerca de três camponeses furiosos adentraram em sua casa, fazendo a porta desabar. Antes que pudesse dizer qualquer coisa, Turiel tomou um soco. Um dos homens começou a chutá-la, ainda no chão, sob os gritos de “vadia” e “vagabunda de orelhas pontudas”. Seus gritos de dor imediatamente acordaram Berdelon, que embora estivesse assustado, tentou proteger sua mãe. Com a destreza ensinada pelo pai, Berdelon tomou seu arco e flecha e imediatamente disparou uma flecha, que acertou um dos agressores entre os olhos. O homem caiu ao chão, já morto.

“Seu elfozinho imundo!”

Um dos homens agressores, chocado ao ver o seu amigo morto, pôs-se a correr, deixando o outro para trás. Sacando uma espada, o homem começou a se aproximar lentamente do menino Berdelon, que agora parecia assustado. Ainda no chão, Turiel estendeu um dedo e conjurou Ign, quase da mesma forma que fazia para acender panelas. Imediatamente, a espada do homem começou a arder em chamas, fazendo-o solta-la, com a mão levemente queimada.

“Sua bruxa! O Fogo Eterno há de te consumir!”

Berdelon aproveitou a distração do homem e disparou mais uma flecha. Esta acertou-lhe nas costas e o homem caiu no chão, ferido gravemente, mas ainda vivo. O menino tremia. Jamais havia matado alguém e naquela noite, havia matado, pelo menos, uma pessoa, talvez duas. Jogando o arco e flecha no chão, o menino sentiu-se sendo abraçado por sua mãe.

“Reúna tudo o que puder. Vamos embora.”

O menino sequer questionou sua mãe, correndo para seu quarto e recolhendo tudo o que mais prezava. A mãe o alertou para que fizesse uma mala pequena, e ele tentou obedecer, escolhendo apenas o que seria essencial. Turiel reuniu tudo em sua carroça, desejando ir embora dali depressa. Vestiu-se com uma capa negra e fez Berdelon deitar-se, escondido, entre as suas mercadorias. Assim, ela poderia se passar por uma comerciante elfa um tanto apressada, jamais uma assassina em fuga.

Seus planos foram frustrados já em Velen, quando ela encontrou um grupo de cavaleiros na estrada. Sem saída, só restou a Turiel parar com a carroça e torcer para que aqueles cavaleiros fossem apenas uma guarnição de vigilantes da estrada.

Mas não eram.

“Precisamos que nos acompanhe, elfa.”, disse um deles, rispidamente.

“Por que?”, ela perguntou, embora já soubesse da resposta.

“Porque fomos avisados de que uma elfa e seu filho assassino estariam usando as estradas para escapar. Vocês mataram um humano, elfa. Esse tipo de crime não costuma ser tolerado.”

Turiel passou cerca de uma semana na cadeia, sendo separada de seu filho Berdelon. Por mais que insistisse em notícias, a elfa jamais recebia coisa alguma dos guardas além de comida e provocações. Por fim, uma visita inesperada aconteceu.

Era Godfrey, o jovem filho do Magistrado.

“Meu pai morreu há cinco dias. Desde então, me tornei responsável por seu caso. Lamento informar que a situação não é das melhores. É verdade que três humanos invadiram sua casa, agrediram você e seu filho, que a situação saiu um pouco do controle...”

“Saiu um pouco do controle?!” repetiu Turiel, descrente. “Aqueles homens estavam ali claramente para matar a mim e ao meu filho!”

“Sim, mas no fim das contas, eles não mataram ninguém. No entanto, o mesmo não se pode dizer sobre sua família, não é? Temos como saldo dois mortos. Albert foi encontrado morto em sua casa e Linch não resistiu à flechada nas costas e morreu há dois dias. O fato é que o povo de Lathlake está clamando por justiça, reparação. Especialmente porque...”

“Eu sou uma elfa.”, declarou Turiel, com desprezo.

“Problemas como o seu estão acontecendo por todo o Norte. Ouso dizer, por todo o Continente. Dá até para dizer que incidentes como seu são casos isolados em Lathlake. Tem sorte de não passar pelo mesmo tipo de violência que os seus irmãos de raça passam por outros lugares, Turiel. Mas enfim, o fato é que, na qualidade de Magistrado, convoquei o Conselho para definir a sentença. E eles decidiram que...”

O Magistrado suspirou.

“O fato dos homens serem mortos por flechas compatíveis com as encontradas na aljava de seu filho acabou por implicar na culpabilidade dele. Apesar da pouca idade, seu filho é considerado um assassino, não importando se ele agiu em legitima defesa, ou apenas para te proteger. O povo de Lathlake clama por Justiça e...”

“Justiça?! É assim que vocês, humanos, chamam de Justiça? O homem que me agrediu e ainda está vivo sai impune e meu filho tem que pagar por ter agido para se defender?”

“Hendel será açoitado.”

“Isso é pouco! Aposto que ele virá me matar na primeira oportunidade.”

“Não, porque ele é reincidente. Estou negociando com o Barão a possibilidade dele fazer trabalhos forçados na Pedreira de Velen já que ele é um criminoso. Não sei se isso te alivia, Turiel, mas sou muito diferente de meu pai, e pretendo ser um Magistrado melhor do que ele foi. Eu nada tenho contra os não-humanos, por isso, não pretendo permitir que crimes de ódio e pogroms aconteçam aqui, em Lathlake. Eu teria atuado de modo mais enérgico para impedir que seu filho sofresse tal penalidade, mas...”

“Que penalidade?”

O jovem Magistrado inalou profundamente.

“Ele será enforcado. Amanhã, ao amanhecer.”

O Magistrado continuou a se desculpar, lamentando que tivesse assumido o cargo há pouco tempo, mas Turiel já não conseguia absorver suas palavras. Imagens de seu filho, alegre, a brincar com seus cavalos de madeira, zanzavam em sua mente. Imagens dele com Elendil aprendendo arco e flecha, mirando em bonecos de palha. Todos os sonhos e desejos de seu menino, única coisa que lhe restou de Elendil, agora pereceriam nas mãos dos humanos, sob uma corda.

Turiel saiu dois dias depois. Muitos moradores abandonaram suas rotinas para ver a elfa passar entre eles. Alguns a olhavam com pena e pesar pela morte do menino, outros poucos com desgosto. Havia, em muitos, certo olhar arrependido. Começaram a lembrar do quanto Turiel ajudava a todos ali, com seus remédios, elixires e poções a preços baixos, em um vilarejo tão esquecido por todos. Turiel sentiu remorso nos olhares de muitos antigos clientes, mas a elfa simplesmente pouco se importava. Nada disso traria seu menino Berdelon de volta.

O jovem Magistrado tratou de conferir a Berdelon um sepultamento élfico, levando o menino a ser queimado em uma pira, ainda que secretamente. Ao retornar para casa, Turiel encontrou uma pequena urna, com as cinzas de seu filho. Abraçada à urna, Turiel pôs-se a chorar por dias. Vez ou outra, encontrava-se no quarto do menino, com o olhar perdido fitando seus pertences, ainda espalhados de sua última bagunça.

Semanas se passaram até que, Turiel caminhou até o córrego, onde Berdelon costumava passar horas e horas praticando com seu arco, e atirou as cinzas de seu filho naquelas águas. Turiel arranjou um baú e reuniu ali todos os pertences de Elendil e seu amado filho Berdelon. Tudo que estivesse ao alcance de seus olhos e a ferisse. Tudo que lhe evocasse lembranças, boas ou ruins. Colocando o baú debaixo da cama, a elfa jurou a si mesma que jamais se afeiçoaria por alguém, pois não queria sentir toda aquela dor novamente.

A partir desse dia, seu luto se encerrou e a herbalista voltou a preparar suas ervas.

V

Iorveth não estava presente durante toda a história contada por Turiel. Educado, o elfo soube perceber que aquele era um momento íntimo de um casal que estava há seis anos sem se ver, e que agora, trazia um imenso abismo entre si. O mesmo não se pôde dizer de Argalad, que se não fosse praticamente carregado por Iorveth permaneceria ali, ouvindo histórias alheias.

Agora, o líder dos Scoia'tael estava nas margens de um córrego, que ele encontrou nos fundos da casa. Limpando o rosto da poeira da estrada naquelas águas límpidas, e também aliviando um pouco sua sede, Iorveth já tinha teorizado que o menino havia sofrido de alguma violência nas mãos dos dh’oines. O olhar sombrio de Turiel dizia isso.

—Você não tem vergonha? – reclamou o elfo, ao ver Argalad espiando de uma das janelas.

—Nem um pouco. Na verdade, está perdendo uma história interessante.

—Um pogrom nunca me é interessante.

—Como sabe que o menino foi morto assim? – interrogou o bardo.

—Não precisei escutar uma só palavra dela. O olhar dela ao dar a notícia já dizia tudo. E eu acredito que Elendil chegou à mesma conclusão que eu. Só o que estranho é que ela tenha optado viver por aqui, mesmo após toda essa tragédia.

—Ela disse que ouviu dizer que os elfos das demais cidades estão passando por problemas piores, por isso preferiu continuar aqui.

Iorveth apenas se limitou a assentir. Quem seria ele para julgá-la? No fim das contas, um elfo não era bem-vindo em lugar algum. Bebendo da água gelada do córrego mais uma vez, Iorveth se sobressaltou quando ouviu passos por trás de si.

—Quero me juntar aos Scoia'tael. – ouviu Iorveth da boca de ninguém menos do que Elendil.