Teméria... Uma terra onde leite e mel já fluíram. Em que ato ela foi injusta com os próprios Deuses, para eles a tratarem com tanta crueldade? A Pérola do Norte, para alguns, e a distância de galope para a cavalaria de Nilfgaard, para outros. Um país que resistiu a duas guerras contra o Império. Foi aqui que suas batalhas mais sangrentas aconteceram. Foi em Teméria que seus atos mais bestiais se manifestaram. Foi a população de civis temerianos que teve de suportar o impacto total dos horrores da guerra.

E nós suportamos, com coragem e firmeza, até a morte do nosso grande protetor, o Rei Foltest. Aí então, a Providência virou seu rosto caprichoso para longe de Teméria. Assassinado da maneira mais traiçoeira, Foltest não deixou um sucessor digno para Teméria.



(trecho do Livro “O Que Irá Acontecer com a Teméria?”)

I

Loc Moinne já estava longe de vista, com os brandos raios de sol daquele pôr-do-sol a cobrir os muros e construções da antiga e outrora cidade élfica, já pequenina no horizonte atrás dos ombros de Vernon Roche. O Comandante dos Listras Azuis mal poderia imaginar o resultado de sua jornada. Afinal, ele partira de sua Pátria como comandante condecorado da temida força especial temeriana atrás do assassino do Rei Foltest. Nem nos mais tenebrosos e pessimistas planos ele poderia calcular que terminaria sua busca não só sem ter tido o privilégio de matar o filho da puta que assassinou Foltest, mas também a acabar foragido e reduzido a um fora-da-lei, procurado por todo o Norte pelo assassinato do Rei Henselt. Se antes este seria só mais um boato infame e não confirmado a recair sobre as costas do temeriano, agora com a fuga do feiticeiro Dethmold seria questão de tempo para que se espalhasse a notícia e então sua autoria quanto ao assassinato do Último Unicórnio fosse verdadeira. Sem dúvida, sua cabeça valeria um bom prêmio.

Cavalgando sobre um cavalo pardo e cujo nome ele desconhecia, roubado sorrateiramente em meio à confusão de Loc Moinne, Roche lamentava a fuga do feiticeiro. Ele pedira a ajuda de Geralt de Rívia, mas desta vez, seus objetivos não se alinhavam. Desde que colocara seus pés em Loc Moinne, Geralt deixara claro que estava ali por Triss Merigold, para resgatá-la das mãos dos Nilfgaardianos. Havia muitos boatos sobre os bruxos, a respeito de sua frieza e incapacidade de possuir sentimentos humanos como amor, mas Geralt de Rívia parecia ser uma exceção à regra. Mesmo seres humanos modificados por mutações como bruxos eram capazes de sentir afeto, amor por outro ser, enquanto muitos humanos sequer compreendiam o que eram esses sentimentos – o próprio Roche incluindo-se nesse grupo aparentemente minoritário de humanos.

—Para onde estamos indo?

Pela primeira vez na viagem, a princesa – ou melhor, Rainha— Anais se pronunciou. Curioso, pensou Roche. Eles já estava há horas sobre a cela do cavalo e só agora a menina fez a pergunta óbvia, que o próprio Roche não sabia como responder exatamente. O conselho de Triss Merigold vagava em sua mente, durante todo aquele percurso. Desde o resgate, a menina se mostrara quieta. No cativeiro, Roche encontrou vários objetos escabrosos e mundanos, como chicotes de couro, correntes e outros objetos pontiagudos que o temeriano nem gostaria de imaginar em quais orifícios o feiticeiro os enfiava. Havia também um mestiço, meio-elfo, vestido em roupas de baixo e deitado sobre uma espécie de cama adornada, assustado pela perspectiva de que as ameaças urradas por Roche na invasão do cativeiro se concretizassem. Dethmold era claramente um pervertido desgraçado, concluiu Roche. Se esse maldito colocou as mãos nela...

—Estamos indo para um lugar seguro. – tentou tranquiliza-la. A menina assentiu, obediente.

—Estou apertada.

Urgh. Vernon Roche jamais tivera qualquer contato, nem mesmo o mais leve, com crianças. Muito menos com uma menina. Se fosse um menino – se fosse Boussy, amargurava-se o temeriano – seria mais simples. Bastava leva-lo para o tronco de uma árvore e pronto. Tudo bem, o tronco de uma árvore nem de longe se assemelhava a um penico de porcelana como os nobres de Teméria utilizavam para fazer suas necessidades, mas bastava fechar os olhos e deixar fluir a imaginação. O problema é que Anais era uma menina.

E uma coisa Vernon Roche tinha certeza: meninas não mijavam em pé.

—Você tem um troninho?

Troninho? A filha do Rei Foltest chama o penico de “troninho”?O que seria isso, algum “treinamento” irônico para governar Teméria?

—Er...

—Acho que não. – respondeu a própria Anais. – Quando aqueles homens maus me levaram, não me deixaram carregar nada. Nem minha boneca Daisy e nem meu troninho. E agora?

Essa é a pergunta que eu me faço agora, menina. E agora?

Acalme-se, Vernon. Você é um soldado experiente, o braço direito do Rei. Seja firme.

—Eu não possuo um troninho muito menos um penico, minha Rainha. – disse, soando mais agressivo do que gostaria.

Apesar de Anais estar em seu colo e de costas para ele, Vernon Roche teve a impressão de que a menina arregalou seus olhos, assustada. Talvez ele tenha sido grosso demais.

—Bom, mas esta floresta tem muitos arbustos...

A menina soltou um suspiro em horror.

—Mas e se eu encontrar uma cobra?

—Não se preocupe, irei verificar antes. Caso haja uma cobra, eu a matarei. Você tem a minha palavra.

A menina assentiu, parecendo um pouco mais confiável. Claro. Ela o viu matar quase uma dúzia de soldados durante seu resgate. O que seria uma cobra perto disso?

—E de qualquer modo, já está anoitecendo. Vamos procurar uma clareira mais perto, acender uma fogueira e pernoitar. Amanhã, nós continuaremos a cavalgar para... Um lugar seguro.

Lugar seguro... Só o que vagava na mente de Roche era o conselho de Triss Merigold. “Um dia, Teméria será restaurada. Leve a criança para longe. Longe dos Reis, das Cortes e de suas Guerras. Um dia, ela exigirá sua herança.” O plano era levar Anais para longe, mas para onde exatamente? Nem o próprio Roche sabia. O próprio não tinha um lar, e ainda que tivesse, seria o último lugar da face da Terra para retornar. No entanto, apesar da própria afirmação sobre “um lugar seguro” de Vernon Roche sair incerta de sua boca, de alguma forma a menina parecia confiar em suas palavras. Após o assentimento dela, Roche conduziu o cavalo para mais distante da estrada, embrenhando-se pela floresta, mas não muito para não correr o risco de invadir o território de algum lobo ou mesmo monstro. Utilizando-se de seus conhecimentos militares, ele escolheu uma clareira localizada estrategicamente sob uma colina, que o colocava o menos vulnerável possível a um ataque.

E claro, a menina desejava fazer suas necessidades. Conduzindo-a pela mão, Roche a levou até um arbusto, alto o bastante para escondê-la quando de cócoras. De modo quase teatral, Roche desembainhou sua espada e mexeu no arbusto. Nada saiu dali. A menina parecia aliviada.

—Seguro. – disse Roche, embainhando a espada e fazendo uma reverência leve. Assim que Anais caminhou para o arbusto, Roche virou-se de costas, respeitando a privacidade dela. Após alguns minutos aguardando, a menina se pronunciou outra vez.

—Eu não consigo.

Roche rolou os olhos. – Por que? Você não estava apertada?

—Só... É que... Esse lugar... Ele é tão diferente do meu troninho...

Roche coçou levemente o pescoço. E agora?

—Er... Tente imaginar sua casa. – disse. Ao ouvir um suspiro triste, o temeriano se arrependeu de sua escolha. Péssima idéia, fazê-la lembrar de casa...

—Sinto falta da mamãe...

—Tente se lembrar do troninho. Feche os olhos e pense no troninho.

—Está bem.

E Roche quase suspirou aliviado quando pôde ouvir após alguns segundos, quase inadiavelmente, o som de água a cair sobre a grama.

II

—Estou com fome.

Roche havia acabado de acender a fogueira quando escutou a queixa da menina. Não era uma queixa sem fundamento, afinal eles estavam há horas cavalgando e só pararam para descansar perto do anoitecer. Roche já imaginava essa situação e trouxera consigo frutas em sua bolsa. Poucas, no entanto. Amanhã, para o almoço, ele teria de providenciar algo mais substancial. Provavelmente caçar algum animal para comer. Não poderiam viver de maçãs, de todo modo.

—Eu tenho algumas maçãs. – disse, retirando-as da bolsa. A menina as aceitou, mastigando-as com avidez, como se fosse o alimento mais saboroso do mundo. Sem dúvida estava faminta. Havia quatro maçãs na bolsa. Apesar de também estar com fome, Roche decidiu ceder e entregou à menina três maçãs, deixando apenas uma consigo.

Ao vê-la bocejar, Roche decidiu dar-lhe uma sugestão.

—Durma.

Como sempre, a tal “sugestão” saída da boca de Roche mais ressoava como uma ordem. Roche lamentava em parte por isso. Realmente não sabia como ser gentil. Não quando comandar soldados e matar era tudo que ele sabia fazer. Anais aceitou, um tanto amedrontada, e recostou-se ao pano estendido à grama, usando uma das bolsas de provisão de Roche como travesseiro.

—Briggy costumava me contar uma história antes de dormir.

Briggy. Sem dúvida, era Brigida Paperbrock, sua ex-amante e informante implantada na família La Valette. Ela mimou as crianças muito mal. Quando a encontrasse outra vez, ele reclamaria sobre isso com ela. Isto é, se algum dia ele a encontrasse outra vez.

—Eu não sei contar histórias. – pelo menos, não histórias apropriadas para crianças, pensou Roche. A menina assentiu, tristemente.

Após alguns minutos de silêncio, Roche ficou aflito ao perceber os olhos de Anais vidrados na fogueira. Sem dúvida, ela não conseguia dormir. Claro, o que ele poderia exigir de uma menina criada no conforto de um palácio e destinada a ser Rainha? Que durma tranquilamente sobre o chão duro da floresta, acompanhada de um estranho?

—Está bem. Vou te contar uma história.

A menina sorriu. Pela primeira vez em companhia de Roche, ela sorriu. Algo dentro do temeriano ficou estremecido ao vê-la sorrir. Ele não sabia dizer o porquê, mas ele se sentiu satisfeito. Isso o animou mais a contar uma história para ela. Como soldado experiente, Roche tinha várias histórias em mente. Se cortasse as partes obscenas e sanguinárias, a história seria chata o bastante para fazê-la dormir.

—Teve uma vez que...

—Não vai começar com “era uma vez”?

—O quê?! – perguntou Roche, incrédulo.

—Todas as histórias começam com “era uma vez”. – disse a menina, como se pronunciasse um fato óbvio. Roche suspirou.

—Era uma vez, em um reino muito, muito distante... Um... Cavaleiro. – disse lentamente, não para que a menina entendesse seu conto, mas para que o próprio pudesse limar o conteúdo inapropriado. Apesar de seu tom tedioso, a menina parecia ouvi-la com considerável atenção.

Roche continuou, pigarreando para conseguir tempo de desenvolver a história.

—Esse cavaleiro, ele... Bom, ele foi convocado por um Rei muito poderoso a comparecer em seu castelo.

—Um castelo? Como o castelo onde morava eu, os meus irmãos e a minha mamãe? – perguntou Anais.

—Não, este era dez vezes maior. – exagerou Roche, deixando a menina boquiaberta.

—Incrível! E esse cavaleiro, ele tinha um cavalo branco?

Eu jamais tive um cavalo branco, pensou Roche.

—Sim, o cavalo dele era branco.

—Sabia! – disse Anais, animada. – Briggy sempre disse que os heróis e príncipes têm cavalo branco. Acho que é por isso que meu irmão Aryan tinha um cavalo branco, não é?

Aquele calhorda desgraçado do seu irmão está muito longe de ser um cavaleiro de conto de fadas.

—Sim. Mas vamos voltar à história. Onde estávamos mesmo? Ah sim. O cavaleiro foi chamado por um Rei de uma terra distante. O Rei pediu para que este cavaleiro fosse buscar um... Um tesouro, no meio da floresta.

—Nossa! Um tesouro?

—Sim, um tesouro.

—Como era este tesouro?

Naquele instante, as palavras vagaram na mente de Roche.

“Duas toneladas de grãos. Pode imaginar, Natalis?”

O Comandante Temeriano estava ao lado do Rei Foltest, observando o mapa das áreas mais longínquas da Teméria. Ambos pareciam pensativos.

“Sua Majestade, como deve imaginar, sou um militar experiente, mas... Esse tipo de ação... Realmente eu não disponho de conhecimento adequado para combate-los. É uma área florestal vasta, com mata intocável. Estaremos altamente vulneráveis se adentrarmos em território inimigo em tão profunda desvantagem.”

“E o que faremos, então? Deixaremos que aquele bando de elfos fique com essa fortuna em forma de comida?”

Um pigarreio na entrada da tenda chamou a atenção de ambos. Adentrou, repentinamente, um homem franzino, vestindo uma armadura temeriana simplória, mas bem cuidada, posta sob um gibão azul e branco, listrado. Diante do Rei, o homem fez uma respeitosa reverência.

“Sua Majestade. Comandante.”

O Comandante Natalis pareceu subitamente relaxado.

“Sua Majestade, permita-me apresentar o soldado Vernon Roche.”

—Ouro e pedras preciosas. – disse Roche, deixando a menina impressionada. – O tesouro era um baú carregado de ouro com diamantes. Em troca, o Rei ofereceu, bem... Er...

—O que o Rei ofereceu?

Anais estava curiosa. Roche saiu de seus pensamentos, abruptamente. Lembrar-se do Rei Foltest, do Comandante John Natalis, da Teméria... Era sempre algo difícil. Ainda assim, o que ele deveria contar? Obviamente, o Rei não lhe ofereceu nada para ir à floresta atrás dos grãos roubados pelos Scoia’tael. Esta era, simplesmente, a obrigação de um soldado. Enfrentar perigos, batalhas e guerras, sem pedir nada em troca. Tudo em nome do Rei. Em nome da Teméria.

Mas afinal, o que os bardos costumam dizer em suas canções? Ah sim...

—A mão da princesa.

A menina ficou boquiaberta. Roche continuou.

—Então, o cavaleiro entrou na floresta. Havia monstros naquela floresta.

—Dragões? – perguntou a menina. Provavelmente, dragões era o único tipo de monstro existente no limitado repertório de histórias de Brigida Papebrock.

—Não. Estes monstros eram diferentes. Eles tinham orelhas pontudas. Eram também extremamente ágeis e rápidos.

—E o cavaleiro os enfrentou sozinho?

“Uma unidade irá te acompanhar. Reúna os melhores homens, de sua escolha.”

Roche ouviu atentamente as instruções de John Natalis, seu Comandante. A situação ainda era inusitada a si. Ele estava em seu acampamento quando soube que o Rei e o Comandante em pessoa desejavam falar com ele. Logo, Roche soube que tinha sido encarregado de liderar um pequeno grupo de soldados para se embrenhar na floresta do modo mais cuidadoso possível e enfrentar os elfos conhecidos como Scoia'tael. Para John Natalis, mais acostumado a guerras em campos de batalha, a floresta era um terreno inóspito e desconhecido, e o comandante confiava em Roche como o mais capaz da tropa para essa missão. Todas as missões que requeriam maior furtividade e silêncio foram feitas com primazia por ele. Não via à mente do Comandante temeriano outro senão o franzino soldado de pouca fala e modo taciturno de sua tropa mais confiável.

“Quero Bron, Liam, Klaus, Gerban, Drus, Jim, Merkel, Otto e Rafaro.”

“Só isso?”, questionou o Rei, desconfiado. Roche sentiu sua garganta apertar. Jamais havia conversado com o Rei Foltest diretamente, e mais além, jamais tinha olhado nos olhos do Rei. Era desconcertante, estar diante do Rei e conversar com ele, sobre algo tão importante e sem precisar manter sua cabeça baixa em reverência.

“Em uma floresta, menos é mais. Não dá para ser discreto com um grupo muito grande.”

—Sim, sozinho. – disse Roche para Anais. – Então, ele conseguiu entrar na floresta, e lá ele enfrentou os monstros. Foi uma luta muito difícil, mas o Cavaleiro conseguiu derrota-los. Então, o Cavaleiro trouxe o tesouro de volta para o Rei. O Rei ficou muito contente com seu feito, e deu ao Cavaleiro não só a mão da princesa, mas também... Anais?

Anais dormia tranquilamente. Roche suspirou. Ao menos, ele conseguiu contar alguma história para ele. Até que não foi tão difícil assim. Apesar de a menina dormir profundamente, o temeriano continuou a contar a história.

—O Rei ficou tão grato e satisfeito que deu uma unidade especial para o Cavaleiro. Uma unidade que ele decidiu dar o nome de Listras Azuis, graças ao gibão que o Cavaleiro vestia por baixo da armadura.