O que é um não-humano? A resposta é simples. Como o próprio nome sugere, é algo que se assemelha, e no entanto, não é um ser humano. Embora ande em duas pernas, fale uma língua semelhante a nossa e se vista com trajes semelhantes, tudo isso tem mais em comum com uma fera inferior do que com a nobreza humana.

Os elfos, por exemplo, parecem estar relacionados com as aves de rapina que habitam a distante Zerrikânia, preocupados com suas penas coloridas. Eles passariam o dia inteiro contemplando seus reflexos na água e entoando louvores a si. Eles estão tão inundados de amor-próprio que não sentem mais nenhum desejo em relação aos membros do sexo oposto de sua própria espécie. Sua aparência, inquestionavelmente agradável aos olhos, é altamente enganosa, porque eles são extraordinariamente cruéis e qualquer um que julgá-los apenas por suas belas feições será ludibriado e acabará morto a sangue frio. A melhor prova disso? Os chamados Scoia'tael, bandidos que afirmam lutar pela liberdade, mas na verdade tudo que fazem são simplesmente matar humanos.

Todas essas malditas e supostas raças "ancestrais" estão, felizmente, morrendo lentamente, beirando à extinção. A alegria preenche o coração de todo o homem que conclui que seus bisnetos nunca os conhecerão, e que em breve anões, ananicos e elfos serão apenas personagens de conto de fadas usados para assustar criancinhas.



(Trecho do Livro “Um Retrato das Raças Ancestrais”)

Cornelius estava muito longe de ser um soldado forte e destemido. Há vinte anos servindo Kaedwen, jamais conseguiu uma promoção sequer. “Nunca erro uma segunda vez”, este era um lema que proferia enquanto trabalhava no Cerco, sendo responsável por uma catapulta. O soldo de soldado raso, entretanto, era o bastante para sustentar a esposa e os dois filhos, para não dizer da filha mais velha e o imprestável de seu marido. Cornelius já estava velho, com uma forte tosse e com poucos anos de vida pela frente, graças ao vício em bebida. Perspectiva era algo que não havia, além de viver um dia de cada vez em sua existência medíocre e infeliz.

Mas o destino pareceu ser generoso por coloca-lo no lugar certo e na hora certa. Apesar de ter reclamado muito com seu superior, Cornelius foi designado para trabalhar em Loc Moinne, onde Reis de todo o Norte se reuniriam junto com mais uma penca de feiticeiros. Coisa de gente importante, era tudo que precisava saber. Pois bem. Munido de uma besta e recostado a um muro, quase cochilando de tédio, Cornelius foi despertado quando viu algo saltar do telhado acima de sua cabeça, em Loc Moinne. Pensou ser alguma criança a fazer traquinagem, mas de imediato o soldado se consternou ao notar um elfo correndo. E não qualquer elfo. A banda vermelha a cobrir parte do rosto, as roupas extravagantes e o arco e flecha nas costas. Sim. O temido Iorveth, líder dos famigerados Scoia'tael, corria bem adiante de si. De costas. Sem. Olhar. Para. Trás.

Cornelius jamais foi bom com uma besta. No entanto, o pouco de talento que tinha com a arma foi o bastante para desferir um tiro no elfo fugitivo e fazê-lo cair. Um tiro no ombro estava longe de ser fatal, mas foi o suficiente para fazer o temido Iorveth cambalear. E quando cambaleou, perdeu velocidade. E logo vieram mais três soldados de Kaedwen. Mesmo com uma flecha atravessada em seu ombro, Iorveth não se reduziu, contra-atacando os soldados que tentavam detê-lo. O elfo largou seu arco no chão, decerto para suavizar o peso do ombro ferido, e desembainhou sua espada leve.

As mãos de Cornelius tremiam. O medíocre soldado raso mirava com sua besta, mas a luta do Scoia'tael com os demais soldados era intensa demais para acompanhar. “Se eu acertar um deles... Vai dar merda, serei expulso ou coisa pior”, pensou covardemente Cornelius. Mas ainda assim, ele sentia que devia arriscar. Se acertasse seu alvo, se acertasse, seria o tiro de sua carreira, uma promoção certa e, quem sabe, um prêmio por ter livrado o mundo do afamado líder dos Scoia'tael. Era algo irresistível demais para o pobre Cornelius, que apertou bem os olhos, respirou fundo e inalou pelo nariz. Sentiu uma gota de suor a escorrer em sua testa. Por fim, o disparo.

Boquiaberto e sem acreditar no feito que acabara de fazer, Cornelius deixou a besta cair no chão. Os demais soldados ainda olhavam boquiabertos, por ver que o Scoia'tael havia sido desarmado. O tiro de Cornelius foi o bastante para fazer com que a espada de Iorveth voasse para longe. Sem alternativas, o elfo nada fez além de erguer as mãos, em redenção.

Cornelius tremia diante de seu superior. Ouviu elogios e recebeu um saco de moedas. Para não dizer da promessa de uma promoção. A promoção que jamais tivera em vida. Ao fundo dos elogios, Iorveth apanhava feio dos demais soldados. A chegada do líder dos Scoia'tael trouxe comoção ao acampamento. Não houve soldado que não quisesse batê-lo. Em menos de meia hora, uma imensa fila se formava no acampamento dos soldados de Kaedwen. Todos para bater, pelo menos um pouco, em Iorveth, que tendo os punhos e tornozelos acorrentados, recebia cada soco, tapa, chute e cusparada de cada soldado em Loc Moinne. Alguns até voltavam ao fim da fila para batê-lo novamente. Bradavam nomes de camaradas e conhecidos mortos pelos Scoia'tael, exaltavam o falecido Rei Henselt. Outros, mais ousados, mencionavam Vernon Roche, seu arquirrival, levando o sangue do elfo a ferver. A raiva só não era maior quando um deles trouxe-lhe uma notícia extremamente agradável.

—Daria tudo para colocar as mãos naquele filho da puta do Roche e deixa-lo lado a lado com você, elfo asqueroso. Vocês fariam um belo par.

—Desista disso, Joff. Se conseguirmos prende-lo, Vernon Roche vai direto para a forca. Não se esqueça de que ele matou o nosso Rei.

—Ora, mas isso não nos impede de nos divertir um pouco. Muita coisa pode acontecer até o cadafalso...

Enquanto os soldados riam da situação, Iorveth não pôde deixar de pensar no que acabara de descobrir. Então, em sua busca desvairada por Letho, Vernon Roche acabou por se tornar, ironicamente, um Assassino de Reis. Um homem procurado, um criminoso, autor de crimes tão graves como ele mesmo...

O mundo realmente dá voltas.

—Do que diabos este elfo está rindo?

—Não faço idéia. Está gostando da surra, orelhas pontudas? Quer mais?

O espancamento recomeçou. À medida que era surrado, Iorveth perdia o fôlego. Sangue já era sentido em sua boca, ele já caíra no chão várias vezes. Seu tórax também estava dolorido. Para não dizer do sangramento da flecha em seu ombro, coisa esta que requeria cuidados.

—Merda, me sujou com o sangue imundo dele. – reclamou um soldado, que acabou por tocar em seu ombro ferido. Iorveth ainda estava se recuperando do tapa quando sentiu algo arder em seu ombro. Algo molhado foi lançado contra ele. A julgar pelo cheiro, era vodka barata. O elfo franziu em cenho com a dor, mas não pôde deixar de se sentir agradecido pelo maldito soldado. Afinal, o álcool que tanto ardia sua ferida era também o responsável por limpá-la.

—Nossa, eu bebi tanta vodka que fiquei apertado...

Oh, não...

Iorveth franziu o cenho, ao perceber que um dos soldados da fila simplesmente desafivelou suas calças e começou a mijar em cima dele. Todos ao redor riram, alguns chegavam a rolar no chão. As gargalhadas só foram interrompidas quando o tal Cornelius – o pateta que o desarmou, lembrou Iorveth – reapareceu ao lado de um oficial.

—Chega de gracinhas, homens. – chamou a atenção o oficial, fazendo o soldado mijão recolocar as calças rapidamente. – John Natalis me procurou. Apesar da bagunça de Loc Moinne, a Teméria, ou seja lá o que sobrou dela, está interessada em Iorveth. Alegam que ele ajudou na morte do Rei Foltest. Fomos incumbidos de escolta-lo até a Fortaleza de Ellander, na fronteira com a Teméria, onde ele aguardará até que uma escolta melhor preparada o leve para Vízima.

Colocando-se de cócoras, na altura de Iorveth, que estava ajoelhado, o oficial riu.

—O destino lhe preservará uma morte dolorosa e lenta, seu elfo de merda. Seu sofrimento nas mãos dos temerianos o fará desejar morrer na corda de uma forca.

Com o rosto emburrado, Iorveth deu uma cusparada no oficial, fazendo-o cambalear. De tão ferido que estava, seu cuspe saiu com sangue. Furioso, o oficial deu um chute no rosto do elfo, que de tão forte, o deixou tonto.

—Vamos parar com o espancamento. Não quero entregar um cadáver para a Teméria.

II

Amarrado a uma estaca, Iorveth contemplava o céu de Loc Muine. Havia sido deixado no pátio do acampamento, largado ao sereno da noite, sendo vigiado por pelo menos três soldados, um deles munido de uma besta, pronta para disparar. Nenhum deles ergueu um dedo contra ele, graças à ordem do homem que ele soube ser o Comandante Dubbin, mas a julgar pelo olhar que recebia dos soldados que passavam, em algumas horas ele estaria morto de tanto apanhar se não fosse por ordens superiores.

Iorveth sabia que estava em uma situação difícil. Havia mandado os Scoia'tael para Vergen, dar mais respaldo aos rebeldes. Do que sabia da localização da Fortaleza de Ellander, era um local com pouca floresta. Sua única chance de escapar dali era torcer para que o comboio que o transportasse escolhesse uma rota negligente e esbarrasse com algum grupo disperso de Scoia'tael. O elfo odiava contar com a sorte. Muitas vezes, ela agia de modo ingrato.

III

Quando os primeiros sinais da Fortaleza começaram a surgir acima da copa das árvores, Iorveth percebeu que teve razão em temer seu fracasso. Os homens foram cautelosos ao extremo, optando pela estrada mais distante possível de qualquer floresta fechada, mesmo que a viagem se estendesse por mais um dia. Para evitar a passagem por Vergen, agora tomada pelos rebeldes não-humanos, o comboio que carregava Iorveth optou pela Redânia, contornando Vergen até a cidade de Rinbr, onde atravessaram o rio Pontar, já nas proximidades do Castelo dos La Valette. A capital da Teméria, Vízima, não estava longe, mas os soldados kaedwanos não queriam dar tamanha colher de chá aos temerianos. Eles que fossem buscar o elfo na Fortaleza, não somos lacaios deles, assim pensavam. O combinado havia sido deixar na Fortaleza de Ellander, e assim eles o fariam, por mais irracional que fosse.

—Lar doce lar, elfo. – zombou o guarda, retirando Iorveth com um chute. Risadas eram escutadas, enquanto Iorveth era chutado de pé em pé até chegar a sua cela. Uma cela distante, pequena e sem qualquer janela. No caminho até ela, Iorveth pôde ver alguns rostos curiosos a escapar das grades. Não reconheceu ali nenhum Scoia'tael, mas boa parte dos presos consistiam em elfos e anões, que olhavam com descrença e desesperança o líder da força não-humana mais temida do Norte sendo escoltado aos pontapés para uma cela imunda.

Ou, ao menos assim, Iorveth pensou que seria. Quando atirado com rispidez a uma sala escura, o elfo teve certeza de que não estava em uma cela. Uma cadeira com cintos e fivelas exposta no centro da sala, além dos grilhões, correntes e respingos envelhecidos de sangue a adornar as paredes daquele cubículo não davam margens a dúvidas de que ele estava em uma espécie de Sala de Tortura. Claro, não havia limites para os sádicos dh’oines.

Um homem grandalhão, de quase dois metros de altura, vestindo uma couraça envelhecida e manchada de sangue, era o único ocupante. Apesar do ambiente mau-iluminado, Iorveth percebeu que o homem não tinha parte da orelha esquerda e usava um bigode que praticamente lhe cobria os lábios de tão cheio. Em seu braço direito, havia inúmeras tatuagens com nomes, boa parte deles élficos. Como aquele homem estava longe de aparentar qualquer apreço por elfos, não foi necessário muito esforço para entender o quê significavam todos aqueles nomes cravados na pele.

Ao perceber o único olho de Iorveth atento ao seu braço, o homem sorriu diabolicamente.

—Você é muito sortudo, elfo. Estão fazendo questão que seja enforcado em Vízima. Por causa disso, e apenas por causa disso, você não acabará com o seu nome escrito no meu braço. Mas não vá pensando, elfo, que chegará a Vízima com todos os dentes na boca.

Iorveth recebeu um soco. Apesar de extraordinariamente forte, nenhum dente se soltou de sua boca. Ainda assim, havia restado em sua boca sabor de sangue. Outro carrasco chegou. Era mais jovem e com a aparência menos abrutalhada, mas nem por isso tinha um olhar menos diabólico.

—Imagino bem o espetáculo que será, a execução do infame Iorveth, líder dos Scoia’tael. Pena que não irei assistir. – disse o homem, começando a estalar os dedos.

—Vamos começar o nosso próprio espetáculo, então.

Com as mãos acorrentadas, Iorveth foi colocado com o rosto virado para a parede úmida de pedra. Sentiu sua camisa sendo rasgada nas costas. Decidido a não perder os brios diante daqueles humanos, Iorveth manteve seu olhar estoico, apesar de algumas poucas lágrimas insistirem em cair de seu único olho, contrariando o semblante blasé que ele mantinha em seu rosto durante o açoitamento. Se os dh’oines estavam esperando que ele esperneasse ou chorasse como uma criança, ficariam frustrados, pensava o elfo. Para não entregar sua dor, seus pensamentos se concentravam na calmaria da floresta. O som dos animais. O barulho da água corrente. A melodia de sua flauta. O som de uma flecha a cortar o ar.

—Essa porra nem grita de dor! – arfava o açoitador mais jovem.

—Você deve estar perdendo o jeito. Me passa esse chicote.

A dor passou a aumentar, graças às mãos mais pesadas do brutamontes de braço tatuado. Quanto maior a dor, mais desafiado Iorveth se sentia. Não iria se dobrar a ela. Não iria entregar o que aqueles dh’oines tanto queriam de si. Passou, então, a fazer o contrário do que os dois açoitadores estavam esperando.

—O que diabos é isso que ele está cantando, Orlo?

Orlo. O nome desse desgraçado é Orlo.

—Alguma coisa na maldita língua deles que eu não entendo.

—É melhor tentarmos outro método, então. Só chibatada não está bom.

Iorveth estava esperando sair daquela Sala de Tortura – isto é, se saísse vivo, caso aquele brutamontes se empolgasse mais do que devia – bastante ferido e fatigado, mas o elfo conseguiu resistir bravamente aos inúmeros mergulhos em tinas d’água, espancamentos com vara, sal em suas feridas e perfurações nas pontas dos dedos. A tortura apenas terminou quando os dois humanos estavam exaustos demais para dar prosseguimento. Iorveth também estava exausto demais para tentar qualquer reação, permitindo-se ser carregado para fora daquela sala.

Também não foi surpresa para o elfo saber que sua cela seria guardada não por um guarda, mas um troll. Um pobre monstro pouco racional, que decerto trabalhava para os guardas em troca de carne de porco crua, ou um pouco de tinta e papel. Um animal corruptível apenas mediante extrema astúcia, e com toda certeza, mais perigoso que todos aqueles guardas juntos.