Triste como deve ser, para muitos de nosso tempo a palavra "elfo" é um sinônimo de pedinte, bandido ou vagabundo. "Elfa" é usado por muitos para denotar uma prostituta ou uma mulher de moral questionável. O adjetivo "élfico", por sua vez, descreve bens danificados, desnecessariamente complicados ou inúteis. As estatísticas, por seu lado, mostram que um em cada três elfos que vivem na Redânia passou algum tempo na prisão, e metade deles foi multado pelo menos uma vez. A duração média de vida dos elfos, embora seja três vezes maior que a dos seres humanos, diminui a cada ano.



(trecho do livro “Os Aen Seidhe e os Aen Elle”)

—Sabia que é feio encarar? – ela disse. Roche já não sabia se ela estava brincando, ou falava seriamente, com ameaça. Esses elfos são sempre estranhos, sempre...

—Sim, minhas orelhas. Eu sou uma elfa. Aen Seidhe, para ser mais exata. – ela disse, com naturalidade, como se pudesse adivinhar seus pensamentos. – E a julgar por seu uniforme, esta não é a primeira vez que você vê uma elfa. Ou então, você não é um Listra Azul dos melhores.

Roche engoliu em seco. Ela sabia! Todo este tempo, ela sabia que ele era um Listra Azul. Óbvio que sim, Vernon Roche! Apesar de viver embrenhada em uma floresta, ela ainda é uma elfa temeriana. E a fama dos Listras Azuis provavelmente já alcançou este lugar. Mas ao que parece, ela não sabe quem exatamente ele é.

—Se sabe o que eu sou, então por que me ajudou? – perguntou Roche, confuso. A tosse de Anais interrompeu a conversa. A elfa agachou-se ao sofá, começando a desabotoar o vestido da menina rapidamente. Roche levantou-se, ficando respeitosamente de costas à menina enquanto observava o ambiente.

—Minha resposta não mudou, Vernon. É pela menina. Não poderia dar as costas a uma criança doente. Nem mesmo se essa criança for a filha de um Listra Azul. – ela disse, com certa amargura. Roche ainda estava confuso, tentando organizar seus pensamentos.

—Você não está com medo de mim? - questionou Roche, enquanto assistia Turiel espalhar uma espécie de gosma verde com cheiro de ervas medicinais sobre o peito de Anais. A elfa riu.

—Por que teria?

O questionamento de Turiel, de alguma forma, embasbacou e ao mesmo tempo irritou Roche. Como assim? Esta elfa meramente herbalista realmente não está com medo de mim, Vernon Roche, líder dos temíveis Listras Azuis? Antes que o temeriano pudesse formar uma resposta mentalmente e justificar-se, a elfa o impediu.

—Você está febril. Também está exausto, à beira de colapsar e cair no chão. Mal consegue formar uma frase com coerência. Então, não. Se estivesse sadio e disposto, talvez eu te temesse. Mas nestas atuais circunstâncias? Não.

—Eu não estou febril. – foi tudo que Vernon pôde dizer, pois o mesmo não conseguiu raciocinar e registrar todas as alegações de Turiel sobre seu estado físico. A elfa terminou de passar a tal gosma verde sobre Anais e estendeu uma coberta sobre a menina. Fechando o pote, Turiel voltou para a cozinha.

—Sente-se na cadeira. – disse a elfa, voltando à sala com um pilão sobre as mãos e batendo algum tipo de erva que também exalava um cheiro forte, em um tom quase ordenador. Ordenador demais para o gosto de Roche, que procurou retrucar.

—Agora! – disse a elfa, com firmeza. Confuso, Roche acatou. Afinal, talvez eu realmente esteja com febre, deu o braço a torcer o temeriano. E a Rainha Anais precisa de mim.

—O que é isso? - perguntou, desconfiado.

—Folhas de pequena-cicuta. O mesmo que dei para sua filha Anya, naquela caverna. Porém, mais concentrado. Estou moendo as folhas para que você as mastigue, mas sem engolir. As propriedades estarão mais potencializadas do que se estivessem diluídas em água.

—Se são mais potencializadas, por que faz preparado com água? – perguntou Roche, tomando as ervas amassadas do pequeno pilão na ponta dos dedos. A elfa não o respondeu, esperando que ele colocasse as ervas na boca. Ao fazê-lo, o temeriano fez uma careta. O sabor era intragável. Sem dúvida ela já esperava por esta reação, pois seus lábios arquearam, quase em um sorriso.

—Bosta de cavalo com terra é mais saboroso que isso! – disse Roche, com a boca ocupada. Turiel não resistiu ao comentário e riu.

—Acaso já provou bosta de cavalo com terra?

—É maneira de falar. Tenho realmente que mastigar isso? É horrível!

—Pare de falar demais, ou acabará engolindo. E acredite, não vai gostar da reação do seu organismo se engolir tanta folha de pequena-cicuta de uma só vez.

Roche assentiu. Embora a elfa não tivesse sido clara sobre qual era o efeito de engolir muita folha de pequena-cicuta, ele não iria pagar para ver. Permaneceu a mastigar as folhas amargas, sentindo o extrato das ervas adentrar a sua garganta, levemente. Ele só esperava que sentir aquele gosto amargo tivesse lá algum benefício.

—Que bem isso me dará?

A mulher rolou os olhos. – Vernon, eu estou te avisando. Não fale... Está bem, vou te contar. Isso irá abaixar a sua febre. Eu não medi a sua temperatura, mas sei que está febril.

—Como pode saber? Até onde eu sei, vocês elfos possuem uma audição melhor que a dos humanos, mas não são capazes de medir temperaturas à distância.

—Você estava suando enquanto caminhávamos na friagem. E ainda está suando, sendo que nem está calor para tanto. Além disso, você não estava dormindo ou sonhando naquela caverna. Você estava delirando. Repetindo coisas estranhas, desconexas...

Roche suspirou, derrotado. Ao tentar medir sua própria temperatura, ele foi surpreendido quando a própria Turiel levantou-se e levou sua mão delicada e comprida de elfa à sua testa.

—Não falei? Febre. – disse, convicta.

—Mas eu não estou tossindo e... – Roche se interrompeu, ao receber um olhar advertido de Turiel. Ah, malditas folhas... Vontade de cuspi-las...

—Sua febre advém da exaustão. Você está com olheiras profundas e suas pálpebras estão trêmulas. Há quanto tempo está com sua filha dormindo no relento da floresta? E nem adianta desmentir, porque eu vi que seu cavalo está com objetos de acampamento.

—Você disse que eu não deveria falar. – observou Roche, ainda mastigando as folhas. A elfa pareceu temporariamente contrariada. Por fim, ela cedeu.

—Tem razão. Farei o seguinte. Colocarei Anais para dormir em minha cama. Você fica com o sofá. Contanto que tire essa farda encharcada de suor e... Sabe-se lá mais o quê. – decretou a mulher, com repugnância. Roche assentiu. Se o cheiro estava insuportável até mesmo para ele, que dirá para uma elfa, que costuma ter os sentidos mais apurados que os humanos. Obedecê-la era o mínimo que ele poderia fazer para retribuiu sua generosidade em cuidar de Anais.

Enquanto Roche desabotoava sua farda, Turiel levou a pequena Anais para um cômodo separado, que ele imaginou ser o quarto dela. Isso o tranquilizou, saber que a menina teria, enfim, uma noite confortável de sono em uma cama limpa e aconchegante, apesar da febre e tosse. Ao retirar peças de sua armadura leve e a farda, Roche notou que ela estava realmente imunda. Imunda e molhada. Ficar apenas em camisa aliviava o cheiro, mas ainda assim... Ao cheirar as próprias axilas, Roche não teve dúvidas. Estava fedido como um gambá. O temeriano só se lembrava de se encontrar em tamanho estado miserável de higiene quando em batalha contra Nilfgaard, nos anos como soldado comum do Exército, antes de ser promovido. Mesmo nas guerrilhas contra os Scoia'tael o comandante dos Listras Azuis encontrava um momento ou outro para se limpar. Não foi o caso nos últimos tempos.

—Irei preparar uma sopa. – disse.

—Eu tenho um pouco de carne de coelho na panela. Sobrou do que fiz para o almoço. Não seria o bastante para três, mas creio que ajudará a incrementar a sua sopa. – ofereceu Roche. Por algum motivo, o temeriano percebeu que sua oferta tornou a elfa muito contente.

—Coelho, é?

—Sim. Algum problema? – questionou, curioso.

—Há seis anos que não como carne de coelho.

Roche piscou os olhos, confuso.

—Mas por quê? Essa floresta é repleta deles...

—Eu... Eu não sou uma boa caçadora. – admitiu a herbalista. Roche ainda parecia confuso.

—Nem mesmo com um arco?

—Usar um arco não é o problema. Simplesmente... Não tenho estômago para matar, esfolar...

Após breve silêncio, Roche riu.

—Uma elfa, com pena de matar animais? Realmente...

—Cale-se. Quer saber? É melhor eu preparar logo essa sopa. Sua filha poderá acordar a qualquer momento e é bom que ela se alimente. – disse Turiel, saindo dali com a pequena panela, retirada dos pertences de Roche. Sem a presença da elfa, o temeriano não pôde esconder um sorriso. Uma elfa que não sabe caçar, esfolar... Era realmente estranho. E por que há seis anos sem comer carne? Como ela conseguia comer carne anteriormente?

Logo o cheiro de sopa com carne de coelho começou a exalar da cozinha. A expectativa de Roche pela comida deixava o temeriano com água na boca e seu estômago roncava ainda mais. Logo Turiel retornou com um pequeno caldeirão fumegante, com algumas tigelas.

Ambos fizeram a refeição em silêncio. Roche sentiu gosto de aspargos e coelho. Não era lá seu prato preferido, mas a fome parecia torna-lo a coisa mais apetitosa do mundo. A elfa também trouxe uma jarra de suco de uva-crispim, fresca, provavelmente recém-colhida da floresta. Apesar da simplicidade da refeição, aquela comida caía sobre o estômago de Roche como um banquete – apesar de seus modos esfomeados e apressados de tomar a sopa estarem longe de possuir qualquer semelhança com qualquer nobre ou cidadão minimamente educado.

—Pensei que iria morrer afogado na sopa. – comentou a elfa, diante de um esbaforido Roche, tomando o segundo copo de suco de uva-crispim deselegantemente em um só gole. O comentário de Turiel fez Roche se aperceber de sua total falta de modos. Se essa elfa tinha qualquer pensamento de que humanos eram selvagens imundos e sem modos, Roche estava ali para concretizar suas crenças. Vernon Roche jamais se importou com o que um elfo poderia pensar de um humano, mas inexplicavelmente a visão de Turiel tendo tais conclusões sobre os humanos - a seu respeito - o incomodava. Por isso, o temeriano preferiu segurar o ritmo, aproveitando também para degustar com maior propriedade aquela sopa.

—Estava uma delícia. – disse, após terminar.

—Observando os modos como comeu, eu não teria outra conclusão a tomar. Além de quê, pela forma como o seu estômago não parava de se manifestar desde que entrara aqui, você teria achado apetitoso até mesmo uma tigela com ração de cavalo.

Maldição, pensou Roche. Os elfos realmente têm uma boa audição e Turiel não era exceção à regra. De todo modo, a própria aparência de Roche já era um indicativo de que ele não tinha uma refeição decente há um bom tempo. Meses, para ser exato, contando com sua perseguição desenfreada pelo assassino do Rei Foltest.

—Fui tão indiscreto assim? – perguntou Roche, enchendo outro copo com suco.

—Não muito para os padrões humanos. O problema é que eu sou uma Aen Seidhe pura e consigo sentir com maior facilidade as manifestações do organismo humano, por causa de minha audição e olfato. E por falar em olfato... – disse a elfa, levantando-se e recolhendo as tigelas, dando uma leve fungada. – Amanhã irá tomar um banho. Certo?

—Eu não protestaria. – admitiu Roche, desviando seus olhos.

—Ótimo. Eu mesma irei preparar uma tina de água fervendo com verbena fervida e pétalas de heréboro, além de um bom esfregão. O mesmo prepararei para Anais. A pobre menina também está em um estado deplorável, mas ao menos ela não cheira a sangue como você.

—Eu sou um soldado. Seria estranho se eu cheirasse a verbena, não a sangue.

—Talvez. Aliás, por que ainda não tirou o seu chapéu? Ele também está molhado. O remédio não servirá de nada se ficar com um pedaço de pano molhado sobre a cabeça.

Roche grunhiu. Sim, seu chapéu. Uma hora ou outra, seria alvo das implicâncias daquela elfa.

—Chaperon. O nome do meu chapéu é chaperon.

—Enfim, chaperon. Por que não o tira e o põe para secar próximo à lareira?

—Farei isso depois. – disse Roche, resignado. Percebendo que tocara em algum tipo de ponto sensível do temeriano, por mais tolo que pudesse parecer, Turiel preferiu não insistir.

—Irei verificar Anya. Creio que um pouco de sopa irá fortalece-la. Se quiser, pode tirar uma soneca. Acho que você está precisando.

Roche resmungou. “Acho que você está precisando...” Mas que elfa mais atrevida, pensou o soldado. Sem dúvida, ela não tinha medo dele. Não sabia quantos irmãos e irmãs elfas ele já matou, esquartejou e esfolou em nome de Teméria? Era bem verdade que eram todos delinquentes, partidários dos Scoia’tael ou oposição ao Rei Foltest, subversivos e criminosos em sua maioria. Elfos civis, que viviam bem em sociedade e em harmonia com humanos, não eram seu alvo. Mas Roche não podia ignorar o desgosto que tinha por eles – desgosto que ele sabia que era recíproco. Sim. No fim, havia preconceito por ambos os lados, nenhum deles era inocente ou puro. Assim como Roche conhecia inúmeras piadas sobre elfos, sobre como eles eram meros tocadores de flauta com orelhas pontudas e estranhas, os elfos também tinham sobre os humanos e sua estranha passionalidade, sempre os aludindo a macacos irracionais e fedorentos.

De todo modo, ela estava correta. Uma soneca não faria mal.

—Se Ana... Anya precisar de mim não hesite em me acordar. – ele pediu, em seu tom costumeiramente ordenador. Deitando-se sobre o sofá, Roche sequer viu o aceno da elfa em assentimento. Logo que fechou seus olhos, ele caindo profundamente no sono, relaxado pelo ambiente tranquilo daquela casa, acolhido pela sensação de segurança.