Entre todos os perigos, dois são especialmente significativos. A primeira vem dos não-humanos, dos quais assimilamos apenas superficialmente. Nilfgaard deu aos elfos a esperança de um renascimento, colocou espadas em suas mãos e um slogan nos lábios. Não conheceremos paz enquanto os inumanos andarem pela terra. O segundo reside em novos movimentos religiosos. Apenas alguns anos atrás, o Culto do Fogo Eterno era motivo de piada: como alguém pode adorar o fogo? Alguns zombaram, dizendo: "Talvez devêssemos começar a adorar a lama ou os ventos?" Eles agora inclinam suas cabeças diante do poder da Ordem Religiosa e demonstram ser zelosos neófitos.

O fundamentalismo sempre tirou força da hipocrisia e da ignorância. Nunca antes na história, no entanto, houve tanto sobre o qual desenhar.

O que então um homem comum pode fazer em tempos tão turbulentos? Mantenha sua integridade e decência - isso bastará.

(Extraído de “As Consequências da Segunda Guerra contra Nilfgaard”)



-Puta merda!

A expressão, pouco graciosa, foi tudo que Grekber deixou escapar ao ver seu adversário na partida de Gwnet lançar uma carta de “Queimar”. O carpinteiro pensou que a carta de Letho de Gulet de seu potente baralho nilfgaardiano havia sido o desfecho daquela última e decisiva rodada, mas o adversário elfo pôs um fim à sua vitória ao mandar seus dois arqueiros de 10 pontos para a pilha de descartados. Era seu fim.

Argalad sorria com a vitória. Faltavam alguns meses para o Festival de Canções de Novigrad, mas o elfo aproveitava sua estadia na cidade para fazer o que mais gostava: jogar, beber e paquerar mulheres, solteiras ou casadas. E ao menos no primeiro quesito, Argalad estava com sorte.

Ou ao menos o elfo imaginava, até uma mão pesada e repleta de calos deter o seu braço, com claras intenções.

-Você tirou essa carta de dentro da sua manga, eu vi!

Argalad deixou um sorriso amarelo escapar. – Creio que está havendo algum engano, meu caro senhor...

-Pare de nos enganar, orelhas pontudas! Eu vi claramente o que você fez!

No mesmo instante, Grekber se ergueu da cadeira, bufando como um touro.

-Seu elfo trapaceiro do caralho!

Argalad não era iludido e sabia quando estava se envolvendo em briga de cachorro grande. E ao notar que os olhares da clientela do Esturjão de Ouro voltaram-se para a confusão que estava acontecendo naquela mesa, o elfo concluiu que era hora de dar o fora. Nos últimos tempos, ser inumano em Novigrad era quase uma declaração de culpa sobre absolutamente qualquer coisa, quando não uma sentença de morte, e o elfo não desejava entrar para a extensa lista de elfos mortos na Cidade Livre de Novigrad.

Com os olhos arregalados, Argalad ainda teve de erguer uma mão e roubar algumas moedas da mesa –nessas horas ele se abençoava por ter as mãos tão ágeis – e pôs-se a correr dali. Boa parte da taberna riu sem parar com a fuga atrapalhada do elfo errante. Claro, seus raptores não olhavam a situação com o mesmo humor, declamando palavrões esbaforidos enquanto o elfo se embrenhava pelas vielas imundas de Novigrad, esbarrando nas pessoas e derrubando o que quer que aparecesse em seu caminho, tentando retardar seus perseguidores.

Já estavam perto do cais quando perceberam que o elfo bardo havia desaparecido.

-Onde foi parar aquele filho da puta tocador de flauta? – questionou Grekber, arfando por ter corrido tanto.

-Parece que evaporou no ar. Elfos... Deve ser verdade o que dizem, que prender um elfo é como capturar o vento. – reclamou um deles. Grekber resmungou qualquer coisa.

-Pelo menos aquele desgraçado deixou o baralho dele para trás. Um baralho bom, por sinal. Posso conseguir alguns trocados com a venda dele e me recuperar do prejuízo. Vamos embora. – disse Grekber, sendo obedecido pelos demais homens.

Eles já estavam longe quando Argalad voltou a respirar. Havia caído rapidamente na água e se escondido entre os barcos atracados no porto. O elfo lamentou sua fuga desenfreada que o fez perder seu estimado baralho. Embora tivesse levado algumas moedas, seu baralho de Gwent dos Reinos do Norte estava forte e ainda poderia render mais algumas moedas em outras tabernas. Agora, ele teria de começar um baralho novo do zero.

Evitando esbarrar em algum guarda que achasse suspeito um elfo completamente molhado caminhando pelas ruas, Argalad optou pela área mais pobre da cidade, e também a menos vigiada. Poderia encontrar um ou outro assaltante, mas era melhor do que o risco de ir parar em um cadafalso porque caminhou no lugar errado e na hora errada. Estava perto do bordel Passiflora quando sentiu alguém assobiar. Longe de ser um bobo, Argalad ignorou o assobio. Deveria ser alguma criança desocupada ou um bandido, mas o assobio insistia em cortar o ar.

-Argalad!

Alguém o chamando pelo nome era algo que o elfo só ignorava quando era um credor ou uma mulher apaixonada, mas quando esse alguém era ninguém menos que Iorveth, Argalad parou de caminhar no mesmo instante.

-Iorveth? – exclamou Argalad, embasbacado, para um vulto no fim da rua.

-Quieto, idiota! – pediu o Líder dos Scoia’tael, com a costumeira impaciência que Argalad tão bem conhecia. – Quer anunciar a Novigrad inteira que estou aqui?

-Não precisa ficar tão furioso. É que simplesmente estou surpreso que esteja em Novigrad. Para mim, essa cidade seria o último lugar do Continente que você colocaria os seus destemidos pés de Scoia’tael.

-Minha opinião quanto a isso não mudou. –retrucou Iorveth. – Mas é melhor que entre. Não é bom conversarmos aqui fora.

Iorveth abriu uma porta, e logo Argalad foi acolhido pelo calor acalentador de uma lareira acesa a iluminar e esquentar o ambiente. Era aquele lugar uma espécie de casebre, como tantas outras em Novigrad. Mil teorias se passavam na mente do bardo, até o elfo perceber que havia mais pessoas naquele ambiente.

Era um homem de cabelos loiros e barba por fazer, claramente um humano. Estava sentado, ocupado enquanto devorava uma generosa coxa de frango. Ao lado dele, duas mulheres de pele morena e roupas rústicas, que usavam um penteado e adornos extremamente exóticos, que o bardo jamais viu em sua vida agitada. A espada na cintura delas fez o encantamento do elfo pelas belas curvas das mulheres se dissipar, pelo medo. As duas conversavam alguma coisa, também em um dialeto estranho.

-Cuidado para não molhar o chão com a sua baba. – alertou o homem de cabelos loiros. Embora tudo indicasse que ele estava com elas, ele não parecia incomodado por ver outro homem admirando-as. O comentário do sujeito fez as duas moças rirem, aos cochichos.

-Perdoe-me, é que...

-Sim, imagino. Você nunca viu duas mulheres da Zerrikânia antes. – disse o homem, enchendo um cálice de vinho. – Aliás, perdoe minha falta de modos. Vi você acompanhando Iorveth e imagino que seja um... Camarada dele. Meu nome é Borch Três Gralhas.

Borch Três Gralhas?! Que diabo de nome é esse?!

Os olhos de Argalad voltaram-se, então, para um brasão gravado em sua roupa. Um brasão amarelo com três pássaros negros, que lembravam gralhas.

-Você é um nobre? De qual reino?

-Pare de importuná-lo com suas perguntas descabidas. – pediu Iorveth, enquanto Borch e suas duas mulheres da Zerrikânia riam sem parar da confusão de Argalad.

-Para responder sua pergunta, digamos que... Sim. Sim, eu sou um nobre.

Argalad deixou escapar um sorriso cúmplice.

-Aposto que é um nobre na linha sucessória de algum reino e que está aqui em Novigrad para se divertir e escapar um pouco da vida monótona de algum palácio... Mas tudo bem, não vou mais te importunar ou me intrometer em seus assuntos. Sou a última pessoa do mundo a desejar acabar com a diversão de alguém. Ainda assim, Iorveth, eu estou surpreso que tenha um nobre no seu círculo de amizades.

O olho de Iorveth voltou-se das chamas para Borch. De fato, ele jamais teria um nobre dh’oine como um amigo ou alguém próximo, mas Borch não era nem nobre, muito menos um dh’oine. Seu nome sequer era Borch. Ele se chamava Villentretenmerth, o lendário Dragão dourado. Tinha poderes mágicos e a capacidade de se transformar em qualquer coisa – absolutamente qualquer coisa vivente que quisesse. E como se não bastasse, ele era pai de Saskia, ou Saesenthessis, seu complicado nome de dragão.

Iorveth estava há quinze dias em Mahakam, morando com Saskia. A mulher fez toda a viagem para as montanhas inóspitas dos anões em profundo silêncio e assim permaneceu no resto do dia. Claro, ela deveria estar se sentindo culpada pela morte de Elendil. O grande problema é que ela não queria falar sobre isso. Sua tristeza era intensa, a ponto de assustar Iorveth. O elfo já não sabia o que fazer quando, de repente, um homem loiro acompanhado de duas guerreiras zerrikânias bateu à sua porta perguntando por sua filha.

Obviamente, Iorveth demorou a confiar em Borch, até que a própria Saskia o reconhecesse como seu pai e pedisse ao elfo que parasse com suas suspeitas. Sabendo da história de Saskia, logo Iorveth percebeu que estava diante de um lendário Dragão Dourado. No entanto, o elfo ainda não entendia como ele sabia a exata localização da filha. Talvez fosse uma “coisa de dragão”, como Saskia lhe confessou certa vez.

O que deveria ser uma mera visita acabou se provando ser uma missão extremamente especial. Iorveth e Borch estavam sentados à beira de uma fogueira, diante do céu estrelado de Mahakan, quando Borch adotou um tom mais sombrio em sua conversa.

-Saesenthessis, ou Saskia, como prefere chama-la, está enfeitiçada.

Iorveth estremeceu com as palavras de Borch. Será que ele sabe do feitiço? Não apenas do feitiço de Phillipa Eilhart, mas também de seu feitiço? O elfo estava prestes a formular uma boa explicação quando coube ao próprio Borch interrompê-lo.

-Sei bem o que fez, Iorveth. Você a enfeitiçou para que ela não morresse. Mas não é seu feitiço de controle que me preocupa, pois este pode ser facilmente dissolvido. É o lançado por aquela Phillipa Eilhart que mais me atormenta.

Iorverth ficou embasbacado. – Como sabe que...?

Borch riu, apontando levemente para sua própria cabeça.

-Você consegue ler pensamentos. – concluiu o elfo, com grande pasmo.

-Isso e mais algumas coisinhas. Se metade do sangue de Saskia não fosse humano, ela também teria herdado minhas habilidades.

-Então, você conseguiu engravidar uma humana.

-Não sei o que há de tão surpreendente nisso, mas esse não é o ponto. Precisamos agir a respeito, Iorveth. Saskia ainda é controlada pela feiticeira. Com toda essa bagunça no Norte, tenho certeza de que Phillipa não fará nada, mas assim que a poeira se assentar...

-Saskia voltará a estar em perigo. Então, o que faremos? Imagino que está aqui porque tem algum plano em mente.

-Sim. E vou precisar de ajuda. Minhas pistas levam a Novrigad. Precisamos ir até lá.

Iorveth lembrou-se do quão difícil havia sido arrastar Saskia para Novigrad, cidade esta que estava em polvorosa com os últimos acontecimentos em Loc Moinne. Inumanos e praticantes de Magia observaram com temor os últimos acontecimentos, imaginando que cedo ou tarde, respingaria neles os problemas que assolavam o Norte. Os governantes precisavam de um bom bode expiatório para a população tecer sua revolta, e não havia candidato melhor que feiticeiros, elfos e anões.

—Este plano requer a presença de Saskia em Novigrad? Ela precisa estar por perto quando o feitiço se quebrar? – perguntou o elfo.

Borch sorriu. – Louvável sua preocupação com minha filha. Mas se quer saber, não. Ela pode ficar em Mahakam enquanto partimos para Novigrad. A presença dela não é necessária

Imediatamente, Iorveth lembrou-se do feitiço de controle.

—Saskia é capaz de sobreviver se ficar sem você por uns dias. Vamos?

Como o elfo imaginava, a apreensão do Norte parecia tomar a atmosfera de Novigrad, de modo que Iorveth teve que abandonar parte de seu orgulho de lado e vestir uma capa. Pessoas com capa dificilmente eram revistadas ou abordadas pelos guardas de Novigrad, covardes que gostavam de lançar suas atenções a alvos mais previsíveis.

E agora, ele estava naquele casebre próximo a um dos bordéis mais famosos da cidade, aguardando seu plano de ação.

-Obteve novidades? – perguntou Borch a Iorveth.

—Arthur de Vleester foi capturado pelos Caçadores de Bruxas.

Borch franziu o cenho com a má notícia do elfo, antes de mastigar mais uma vez a coxa de frango.

—Então, os humanos já começaram a dar início às perseguições à prática da Magia... Sabia que este dia iria chegar. – concluiu o homem, pensativo.

—Ele está preso na Fortaleza dos Caçadores de Bruxas, um lugar que me pareceu ser extremamente bem guardado. O que faremos?

—Acalme-se, Iorveth. Isso foi um mero contratempo, facilmente contornável. Confie em mim. – disse calmamente Borch. – Aliás, não vai comer nada?

—Não estou com fome.

—Uma pena, porque está delicioso. – disse Borch, deixando apenas um osso, sem qualquer vestígio de carne, ao lado dos demais ossos do frango. Foi com ligeiro pasmo que Iorveth percebeu que Borch e suas guerreiras zerrikânias haviam devorado um frango inteiro em apenas alguns minutos.

—Precisamos preparar uma estratégia para invadir o local e...

—A estratégia já está pronta. – retrucou Borch.

—Que estratégia, afinal?

Com um mero piscar de olhos, Iorveth se surpreendeu ao perceber que Borch havia desaparecido diante de suas vistas, dando lugar a um Caçador de Bruxas, com chapéu, uniforme e espada na cintura. Ocupado torcendo suas próprias roupas, Argalad quase desmaiou de susto ao ver que um dos temíveis Caçadores de Bruxa havia aparecido de repente naquela residência.

—Puta merda, que bruxaria da porra! – exclamou o bardo, abismado.

—Que linguajar mais obsceno. – reclamou o Caçador de Bruxas, com uma voz completamente diferente. Mais grossa e encorpada.

—Iorveth, como esse cara veio parar aqui?!

O elfo não sabia o que dizer, mas para seu alívio o próprio Borch tratou de explicar.

—Usando Magia. O que você vê nada mais é que uma ilusão.

—Caramba! Que impressionante! Então, você pode se transformar em qualquer coisa que lhe vier à cabeça?

—Sim.

—Qualquer coisa mesmo? Como um cachorro, por exemplo?

No mesmo instante, o tal Caçador de Bruxas desapareceu, dando lugar a um cachorro de pelagem clara. Ao ver que Borch adquirira a forma de um cão e que Argalad estava boquiaberto, sem palavras, Iorveth suspirou profundamente.

—Não dê ouvidos ao bardo, Borch. Temos um trabalho a fazer.

“Como queira.”

Assim como Argalad, Iorveth achou estranha a sensação de uma voz dentro de seus pensamentos, ainda mais sendo esta a voz de Borch Três Gralhas. Realmente, Borch era poderosíssimo.

—É impressão minha ou o cachorro acabou de falar comigo? – perguntou-se Argalad, mais confuso que antes.

II

—Identifique-se.

Uma garoa fina caía sobre Novigrad. O vigia do Quartel-General dos Caçadores de Bruxa estava prestes a trocar de turno e pensava sem parar em sua esposa e filho. Pensava em chegar logo em casa, brincar com o menino e seus soldadinhos de madeira, e algumas sacanagens com a esposa mais tarde. Foi tudo que pôde concluir Borch, ao lançar sobre o homem um primeiro olhar.

—Howard Drokab, do Segundo Regimento.

—O que te traz a esta hora, Drokab? Seu turno ainda não acabou.

O dito Howard Drokab chutou diante de si um homem. Assim que seu rosto se aproximou do fogo das tochas, o vigia pôde perceber que era um elfo. E caolho, ainda por cima. Com uma risada em seu rosto, o vigia cuspiu sobre o elfo.

—O açoitador irá adorar exercitar um pouco os braços com essa escória. Leve-o daqui.

Com a cabeça baixa e temendo ser reconhecido, Iorveth caminhou pelo pátio, repleto de Caçadores de Bruxas, aparentemente sendo escoltado por um deles, mas na verdade, era Borch quem o conduzia.

“Você aguentaria dez minutos de açoitamento, Iorveth?”, foi o que o elfo ouviu, dentro de sua mente. Era Borch, tentando falar de modo seguro consigo. Para não levantar suspeitas, tudo que Iorveth fez foi assentir. Afinal, ele já havia passado por coisa pior.

“Eu já sabia que você passou por coisa pior que isso, mas gosto de ser educado e perguntar primeiro”, ouviu novamente Iorveth, com um leve tom de zombaria de Borch. Realmente, não dava para esconder qualquer segredo dele. O elfo se perguntava como Saskia conseguia ter uma relação com seu pai, tendo seus pensamentos invadidos o tempo todo...

“Não sou tão bisbilhoteiro assim, mas tenho que admitir que eu sempre soube quando ela estava mentindo”, disse outra vez a voz de Borch. Isso estava incomodando profundamente Iorveth, a ponto de Borch intrometer-se mais uma vez apenas para dizer “está bem, vou deixa-lo em paz”.

As escadas que levavam à masmorra já estavam próximas. Perto demais de outros guardas, Borch chutou Iorveth mais uma vez e deixou escapar alguns palavrões. Os guardas riram. Com o joelho dolorido, Iorveth pôde ouvir em seus pensamentos ainda um “sinto muito” bastante sincero de Borch, embora seu semblante de Caçador de Bruxas fosse estoico.

—Carne fresca... – disse o açoitador, recebendo Iorveth e imediatamente o acorrentando à parede. Deixando-o ali, sozinho, Iorveth sabia que nada mais havia a fazer, além de receber alguns bons açoites até que Borch conseguisse informações sobre Phillipa Eilhart – embora ele não fizesse a mínima ideia de como escaparia daquela prisão.

Após a terceira chibatada, a voz de Borch outra vez invadiu seus pensamentos. Mas desta vez, ela não estava sozinha.

“Arthur de Vleester, feiticeiro formado em Ban Ard. Umas boas décadas dedicadas à Magia e também Política, como qualquer feiticeiro que se preze.”

“Se veio aqui para tripudiar...”

“Nada disso. Não estou interessado em chutar cachorro morto, como dizem por aí. Muito menos para saber de suas... Delicadas negociatas como Nilfgaard. Está espantado, é?”

“Como soube?!”, Iorveth ouviu horror na voz do desconhecido, que deveria ser o tal prisioneiro Arthur de Vleester. “Quem abriu a boca para você?”

“Não fique tão nervoso assim, pois te asseguro que não foi sua mãe nem suas duas amantes, muito menos seu primo, com quem anda tendo relações amorosas. Mais uma vez, acalme-se. Minhas intenções aqui são diferentes...”

De repente, o feiticeiro pôs-se a rir.

“Está usando telepatia. Lendo minha mente. E vocês, Caçadores de Bruxas, dizendo que Magia é coisa maléfica, quando na verdade está usando a mesma “coisa maléfica” que tanto diz abominar para me interrogar.”

“É bom que saiba de minhas capacidades, Arthur de Vleester. Posso chama-lo de Arthur? Ótimo. Pois bem, agora que coloquei as cartas na mesa, vamos prosseguir à próxima jogada. Tudo que descobri aqui, e que pode facilmente coloca-lo na fogueira por traição à Radovid e blasfêmia aos deuses por servir ao Império do Grande Sol, poderá ser esquecido. Esquecido, é claro, contanto que me conte sobre Phillipa Eilhart, sua amante.”

Silêncio.

“Sabe, eu gosto do amor. É um sentimento intenso e incontrolável, a ponto da mera menção do nome da pessoa amada fazer emergir o mais profundo dos pensamentos, e sem qualquer controle. Especialmente quando esse amor se converte em ódio, mas devo dizer, Arthur, que sua vingança foi extremamente peculiar. Phillipa meteu-lhe um par de chifres do tamanho da Teméria e quando ela veio recorrer à você para pedir sua ajuda, você se aproveitou do momento para destilar sobre ela todo o seu ódio? Como foi mal com a pobre feiticeira! Deve ser uma merda ser uma coruja o tempo todo. O sabor de larvas e minhocas não é agradável, embora ser uma criatura noturna tenha lá o seu apelo. De todo modo, obrigado por sua compreensão e espero que a estadia por aqui seja breve e sua morte não seja dolorosa.”

“Espere, por favor... Não!”

As costas de Iorveth já estavam salpicadas de sangue quando as vozes que ocuparam sua mente simplesmente se dissiparam como névoa. O açoitador já estava arfando quando a porta se abriu novamente. O homem de quase dois metros de altura esperava avistar outro Caçador de Bruxas com um prisioneiro, mas definitivamente jamais o seu Comandante.

—S-Senhor?!

—Askand, a pilha de corpos ainda está no pátio. Você está me prometendo lança-los à vala desde cedo e, quando passo no pátio, eu ainda os encontro por lá, coberto de moscas. O que planeja com isso? Contaminar nosso Quartel com peste graças à sua preguiça?

—N-Não, senhor... – atrapalhava-se o açoitador.

—Largue esse elfo vagabundo agora mesmo e vá concluir sua tarefa! Ande! Vamos!

O açoitador saiu às pressas. Assim que a porta se fechou, o Comandante correu para as chaves das correntes, que estavam sobre uma mesa.

—Consegue andar?

—Sim.

—E correr?

—Posso tentar.

—Não. Tentar é arriscado, preciso ter certeza. Já sei. Vista-se com essa farda e ande bem perto de mim. Ponha o chapéu deste jeito, assim não conseguirão ver o seu rosto. Ótimo. Agora, vamos dar o fora daqui depressa.

—Conseguiu alguma informação sobre Phillipa?

—Sim, e não é das melhores.

III

O dia estava perto de amanhecer, mas Grekber sequer se importava. Quando colocou sobre a mesa sua recém-obtida carta de John Natalis, vencendo o anão ferreiro perto do porto e seu afamado baralho de Monstros, o carpinteiro não teve dúvidas: até que toda a confusão que teve anteriormente com o elfo bardo não foi de todo ruim. No fim das contas, Grekber tornou-se dono de um baralho dos Reinos do Norte extremamente poderoso.

—Parece que os deuses estão do seu lado, Grekber. – disse uma garçonete, colocando mais uma caneca de cerveja na mesa.

—Esse baralho caiu do céu. – disse Grekber, guardando as moedas que recebeu de sua última vitória de Gwent. Um bocejo fez o carpinteiro sentir que era hora de ir embora, pois sua esposa iria reclamar muito se ele chegasse tão tarde em casa, embora com os bolsos cheios de moedas.

—Não se preocupe, sua esposa já dorme há algumas horas.

Um homem estranho, usando uma roupa com um estranho emblema e de cabelos loiros interrompeu Grekber de se levantar, detendo-o pelo ombro. Em outras circunstâncias, o carpinteiro teria mandado aquele homem se ferrar, mas a inusitada menção de sua esposa o tomou de confusão.

—Quem são vocês?

Ao perceber que havia um elfo com cara de poucos amigos ao lado do sujeito, Grekber resmungou ainda mais.

—Já sei, são amiguinhos do bardo. Aquele filho da puta tocador de flauta não é nem homem o suficiente para me enfrentar, precisa mandar alguém para...

—Estamos aqui por Arthur de Vleester.

A menção do feiticeiro fez o semblante do carpinteiro estremecer.

—Eu não faço a menor idéia do que estão falando...

—Deixa eu ser mais claro, então. Arthur de Vleester. Um feiticeiro, que o contratou recentemente para criar um compartimento secreto em sua mansão aqui, em Novigrad.

—Eu... Escuta – disse o homem, olhando para os lados – Que tal tratarmos disso lá fora?

—Isso é um embuste. – alertou Iorveth a Borch, mas o homem o ignorou. Parecia ter total controle da situação, deixando que o carpinteiro seguisse até os fundos do Esturjão de Ouro, onde um bêbado tentava mirar seu mijo em um vaso de flores, aparentemente em vão.

—Escutem vocês. – pediu o homem. – Eu sou um cidadão de bem. Posso contribuir pouco para o Fogo Eterno e ter lá os meus pecados de estimação, mas procuro agir na honestidade. E não sou aliado de feiticeiros, simplesmente fui até lá colocar uma porta, nada mais que isso.

—Não precisamos de tantas desculpas, nós não somos da Igreja do Fogo Eterno. Somos aliados de Arthur e já sabemos que você... Hum... Aproveitou-se da prisão dele pelos Caçadores de Bruxas para ir até lá e afaná-lo. Pois bem, acontece que ele ficou um tanto puto por saber que você não foi nem um pouco profissional e deu-lhe uma rasteira na primeira oportunidade, mas ele deixou bem claro que perdoaria sua traição se você nos apontasse o que fez com os bens roubados.

Grekber começou a coçar sua barba espessa, pensativo.

—Vocês prometem que não vão me matar?

—Você tem a minha palavra. – disse Borch, de modo tão solene que fez Iorveth rolar seu olho. Diante da postura do elfo, Grekber se preocupou.

—E este seu amigo elfo aí? Não me parece ser do tipo que perde a oportunidade de cortar a garganta de um humano. Aliás, mais um pouco e poderia facilmente dá-lo por um daqueles malditos Scoia’tael.

—Engana-se. Ele é um mercenário contratado por mim e só age às custas de ouro, sem essa coisa de ideais élficos. Minha palavra é o suficiente, não se preocupe com ele.

Grekber relaxou-se um pouco, mas ainda trazia desconfiança em seu olhar.

—O feiticeiro me contratou para construir um porão. A princípio, uma passagem secreta que dava para o rio, mas ele reclamou que afogadores estavam causando muito barulho. Eu disse a ele que o cheiro das poções dele deveria estar atraindo monstros, mas ele não me deu ouvidos. Pediu para que eu bloqueasse a saída para o rio, e foi o que fiz. O porão, entretanto, permaneceu. Não sou de ferro, confesso que assim que soube da prisão dele pelos Caçadores de Bruxas, eu fui até a casa dele. Quem saqueou a casa não encontrou nada de valor e ficou a se lamentar que o feiticeiro nada tina, era um pobretão, mas eu sabia bem que ele havia escondido tudo no porão que eu mesmo construí. Quando abri o porão, percebi que havia muitos pertences femininos no porão, decerto pertenciam a uma outra feiticeira, que soube que estava morando com ele.

Iorveth e Borch se entreolharam.

—Teve notícias desta outra feiticeira?

—Ah, deve ter fugido. Nenhuma feiticeira foi presa até agora, que eu saiba. Aquelas vadias são umas astutas da porra, e vocês sabem, basta meia dúzia de palavras bonitas e um levantar de saias para que consigam sua liberdade. Os homens não tem a mesma sorte, quero dizer, a não ser os que preferem ter de dar a bun...

—Já compreendemos. – interrompeu Borch. – Você não sabe da feiticeira. Mas disse, encontrou pertences dela, é isso?

—Sim.

—E o que fez com eles?

—Vendi tudo na Loja de Penhores do Beco das Facas. Pra mim, era tudo quinquilharia. Uma pena o penhor não ter aceitado de modo algum a coruja, mas...

—Espere, você disse coruja? – interrompeu Iorveth.

—Sim, eu encontrei uma coruja branca, engaiolada. Ela usava uma espécie de tampão nos olhos. Tentei vê-la melhor, mas a coruja era braba como um grifo. Chegou a me picar, a filha da puta! Levei-a também até o penhor, mas ele não a aceitou porque disse que ela não tinha olhos e ninguém se interessaria por uma coruja cega e feia. O mais engraçado é que o animal começou a se sacudir todo. Por um momento cheguei a pensar que a coruja estava entendendo a nossa conversa, de tão engraçada que foi a reação dela. Mas mesmo sendo engraçada, a diaba me deu um trabalho daqueles. Rodei toda Novigrad atrás de um comprador para ela, mas ninguém a quis, porque era feia e cega.

—Certo, mas o que fez com essa coruja, então? – insistiu Iorveth, impaciente.

—Como ninguém queria dar uma moeda sequer por ela, eu decidi coloca-la como uma das minhas apostas de Gwent. Por que estão me olhando assim? O que mais eu poderia fazer? Só mesmo alguém estando muito bêbado e jogando cartas para querer uma coruja sem olhos, não é mesmo?

—Então... Você a perdeu em um jogo de Gwent... – disse Iorveth, num tom um tanto derrotado.

—Sim, e não faço a menor idéia para quem. Estava bêbado demais nesse dia. Mas não entendo, essa coruja era tão importante assim para o feiticeiro?

—Obrigado pela informação. – disse Borch, decretando o fim daquela conversa e arrastando Iorveth para longe dos arredores do Esturjão de Ouro. Estando já bastante afastados do lugar, o elfo e o dragão lendário puderam conversar a respeito das últimas informações.

—Aquele homem estava sendo sincero. As lembranças dele sobre a ocasião são turvas demais. E ele realmente apostou a coruja, mas não dá para saber para quem ele perdeu.

—Eu não me importo com o destino de Phillipa, mas admito que encontra-la seria fundamental para sabermos do contrafeitiço. E saber que, a esta altura, ela pode estar em qualquer lugar e com qualquer pessoa...

—Ainda temos uma última chance, Iorveth. – tentava esperança-lo Borch. – A loja de penhores. O contrafeitiço pode estar acumulado em algum objeto, dentre os pertences dela. Vamos torcer para que ele ainda esteja por lá.

—O problema é que teremos de esperar até o amanhecer?

—Quem disse isso? – piscou Borch. Naquele momento, Iorveth teve certeza que o pai de Saskia estava tendo mais um plano mirabolante que envolvesse suas habilidades praticamente ilimitadas. Os dois atravessaram a escura e agitada Novigrad sem pressa, esbarrando em bêbados, mendigos e prostitutas pelo caminho, até o tal Beco das Facas, onde ficava a Loja de Penhores mencionada pelo carpinteiro.

Iorveth percebeu que um guarda fazia a ronda da rua, decerto porque o dono do penhor deveria pagá-lo para deixar o lugar bem protegido. O elfo estava prestes a perguntar a Borch como ele faria para entrar sem ser visto quando percebeu que o homem avia desaparecido em suas vistas. Seu olho ficou a procura-lo por mais um instante, até ele perceber um ganido de rato a cortar o silêncio da noite.

“Mais um pouco e você pisava em mim”, disse a voz de Borch, dentro dos pensamentos de Iorveth. O elfo começou a perceber que estava se acostumando com a invasão de sua mente, pois a sensação não mais lhe incomodava.

“Você tem razão, com o tempo o incômodo passa”, ele disse outra vez, como se estivesse a responde-lo.

—Eu já te disse, eu não gosto que fique lendo os meus pensamentos...

“Controle-se, Iorveth, ou os passantes acharão estranho um elfo conversando com um camundongo. Aqui em Novigrad estão levando pessoas à fogueira por bem menos que isso.”

Iorveth assentiu, de modo irritado. O camundongo soltou mais um ganido, que lembrava uma gargalhada, e com extrema agilidade, atravessou a porta dos penhores. Ficou-se um grande silêncio do lado de dentro. Iorveth já estava preocupado, até ouvir o grunhir de um cão. O elfo começou a se agitar. Será que havia um cão dentro da Loja? E se Borch for abocanhado por ele? Iorveth já estava pensando em mandar toda a discrição do plano às favas e ir ao resgate de Borch, mas para sua surpresa, algo saiu por baixo da porta principal do penhor.

Agachando-se, Iorveth percebeu que era uma adaga. Tomando-a pelas mãos, o elfo percebeu que não havia nada demais nela, parecia ser uma adaga comum. Em instantes, o camundongo voltou, por baixo da porta, e em um estalar de dedos, Borch estava de volta à sua forma humana.

—Ouvi latidos. É impressão minha ou esta noite o predador quase se tornou presa?

—Na verdade, havia um gato. – explicou Borch. – Eu é que me transformei em um cão, para afugentá-lo.

—Não consegue conversar com animais?

—Animais?! – Borch riu. – Animais são irracionais. Não tem acordo para eles. Seguem puramente o instinto. E o instinto daquele gato ao ver um camundongo atravessando seu território foi pensar “comida, comida, comida...”. Isso era tudo que o pensamento dele me dizia. Como discutir com isso?

—Estou surpreso. – admitiu Iorveth.

—De certo modo, esse contratempo foi bem-vindo. Foi melhor estar na forma canina, para alcançar a adaga e carrega-la com a boca. Senti Magia poderosa emanando dessa adaga. Tenho certeza de que o contrafeitiço de Phillipa Eilhart está contido nela. Agora, é hora de irmos embora de Novigrad. Esta cidade nada mais tem a nos oferecer. Aliás, nada de cavalos desta vez. Estou com pressa para resolver isso logo. Iremos por um método mais... Rápido.

—Um portal? – retrucou Iorveth.

—Não, nada de portais. – disse Borch, com diversão. – Iremos voando. E não me olhe com essa cara, você irá gostar da experiência.

IV

Saskia acordou tremendo, desta vez. O mesmo sonho. Suas mãos, sujas de sangue. O goto metálico de sangue em sua boca, tristeza e lágrimas nos olhos de Turiel e uma pira a queimar. Sua mente também havia se tornado um emaranhado de imagens desfocadas e incertas. Um beijo em seus lábios. Um voo alado, chamas contra pessoas, todas bem vestidas e com porte importante. Um bruxo de cabelos brancos e sua espada a cortá-la, com determinação. A dor lancinante de ter sido empalada era o que dava encerramento aos seus sonhos, que mais tinham a forma de pesadelo e que ela não compreendia bem se era verdade ou ilusões formadas por sua cabeça. A primeira opção era o que ela mais temia.

Seu pai, Borch, sempre lhe ensinou a não atacar humanos, elfos ou qualquer criatura quando em forma draconiana, à exceção de animais selvagens, para alimento. Saskia detinha controle sobre suas atitudes como dragão, que a fazia ficar confusa sobre o espaço vago e vazio em sua mente nos últimos tempos, sempre que ela estava transformada. Não à toa ela escreveu a carta ao seu pai, pedindo ajuda e dizendo que não conseguia mais se controlar sob a forma de um dragão. Mas para sua surpresa, seu pai simplesmente saiu há semanas atrás com Iorveth sem dizer para onde estavam indo e no quê essa viagem inusitada traria de bem para ela. Embora nada fosse dito a respeito dessa saída repentina, Saskia conhecia bem seu pia para saber que ela era o objetivo principal de sua viagem com Iorveth. Ela só esperava que o elfo e seu pai não tivessem brigado até a volta para casa.

Decidida a desanuviar seus pensamentos, Saskia resolveu dar um passeio à cavalo pelas pastagens de Mahakam. Fazia uma bela manhã nas montanhas dos anões, o que a fazia por vezes contemplar a paisagem das montanhas quando sob o cavalo. No entanto, seus olhos pararam de vagar pela paisagem quando Saskia percebeu algo cortar os céus de Mahakam. Algo que ela conhecia muito bem.

Um riso leve acabou por passar por Saskia, quando a jovem começou a imaginar que seu pai tivera a idéia absurda de cruzar os céus do Norte tendo Iorveth preso sob seu torso. Do modo que ela conhecia Iorveth, ela sabia que o elfo fez todo o voo estando enfurecido e bufando como um touro.

Preciso voltar para casa, e logo. Era tudo que Saskia mais desejava, fazendo seu cavalo galopar desta vez.

Quando chegou, seu pai já estava de volta à forma humana, acompanhado de suas duas guerreiras zerrikânias. Embora estivesse com o semblante estóico, Saskia conseguia sentir um ligeiro desconforto em Iorveth. Decerto a experiência em voar sobre um dragão não lhe foi das mais agradáveis.

—Sol que ilumina o meu caminho. – disse Borch para Saskia, dando um abraço forte em sua filha, que estava sorridente. – Quanto ao seu problema, já se sente melhor?

—Ainda não tenho certeza. – ela disse. – Preferi não me transformar desde então.

—Eu entendo, Saskia. Mas não se preocupe, suas preocupações e temores terão fim. Junto ao seu... “Amigo” Iorveth, eu já encontrei a solução para o que tanto lhe aflige.

—Encontrou?

—Sim, minha querida filha. Encontrei.

Sem dar qualquer aviso à Saskia, Borch retirou do bolso a adaga e recostou sua lâmina à testa da jovem, que imediatamente desmaiou, fazendo Iorveth se movimentar para acudi-la.

—O que houve com ela? Alguma coisa deu errado? – perguntou Iorveth, preocupado enquanto Saskia estava inconsciente.

—Isso já era esperado, não se preocupe.

—Talvez para você, mas não para mim! – retrucou furiosamente Iorveth.

—Não precisa ficar tão chateado assim. Saskia esteve sob forte controle daquela feiticeira, é verdade, mas não está mais. Aliás, chegou a hora de destruirmos o seu feitiço. – disse Borch, estendendo sua mão.

Iorveth engoliu em seco. Sabia que sua relação com Saskia voltaria ao normal. Seria o fim do modo atencioso e gentil de Saskia para com ele, mas por mais que lhe doesse, ter Saskia sem qualquer controle era o melhor para ela. O melhor para os dois.

—Sabia que você entenderia. – disse Borch, recebendo o colar de Iorveth e lançando-o contra o chão. Após alguns pisões, o Dragão Lendário franziu o cenho.

—Estranho...

—O que houve? – perguntou Iorveth.

—Tem certeza de que houve mesmo um feitiço de controle dela sobre você?

—Foi feito um ritual. Houve alguns problemas, mas...

—Ela não está sob seu controle, Iorveth.

—Claro que não. Você acabou de destruir o colar, que era o contrafeitiço.

—Não, Iorveth. Ela jamais esteve sob seu controle. Jamais. Entendeu? Não sei bem o que houve de errado ao realizar este feitiço, mas ele simplesmente não funcionou. Saskia jamais foi controlada por você. Se ela agiu de um modo que pareceu ser estranho ao seu olhar, saiba que foi por iniciativa dela, não por um encantamento. Ou, talvez... Porque foi motivada por algo verdadeiro...

—Eu mato Turiel! – exclamou Iorveth, revoltado. – Ela me disse que o feitiço funcionou!

—Presumo que esta Turiel seja a arcana que tentou te ajudar com o ritual. Pois bem, acaso já parou para pensar que Saskia poderia ter estado ciente o tempo todo do seu plano e que simplesmente “fingiu” que tudo deu certo?

—Não é possível...

Borch sorriu. – Conhecendo bem a filha que tenho, acho perfeitamente possível.

—Você sabia! – concluiu Iorveth, com desgosto. – Você sabia desde o princípio que ela não estava sob o meu controle!

Borch deu apenas de ombros em resposta.

—Bom, creio que é hora de ir embora. Já fiz minha parte aqui. Dê um abraço em Saskia por mim e diga a ela que fiquei muito triste por ter de partir antes dela acordar, mas que tinha assuntos urgentes a tratar em outro lugar. E boa sorte, Iorveth.

Borch Três Gralhas estendeu sua mão a Iorveth. Não foi surpresa ao Dragão ver que Iorveth aceitou seu gesto, devolvendo o aperto de mão. Com um estalo de dedos, o homem e suas duas guerreiras zerrikânias desapareceram completamente dali.

V

Quando Saskia abriu seus olhos, uma sensação de tranquilidade e contentamento, há muito esquecida, parecia passar por todo o seu corpo. Ela não fazia a menor ideia de quanto tempo esteve inconsciente, mas por fim, a guerreira imaginou que foi tempo o bastante para que ela se sentisse melhor, pois o inexplicável incômodo dos últimos tempos havia passado.

Saskia sentiu arrependimento, quando tentou se levantar da cama. Ela sentiu sua cabeça girar assim que seus pés chegaram ao chão. O tombo já era esperado, mas a guerreira pôde impedir sua própria queda ao apoiar-se à cabeceira rústica da cama de solteiro, que havia se tornado sua cama nas últimas duas semanas em Mahakam. Acostumada a uma vida itinerante na estrada, montada por longas horas em um cavalo e revezando seu sono entre estalagens e acampamentos, Saskia estranhou nos primeiros dias a ideia de ter uma cama. O conforto a fez demorar a dormir nos primeiros dias, mas curiosamente, Saskia até havia gostado da ideia de dormir todas as noites em uma cama para chamar de sua. Ela se perguntava se Iorveth tinha o mesmo pensamento que ela, afinal, suas vidas eram similares até neste ponto.

Assim que chegaram àquela pequena choupana de Mahakam, Saskia sabia que seu relacionamento com Iorveth tinha potenciais chances de mudar completamente. Embora fossem amigos, nada mais que amigos, viver sob o mesmo teto proporcionaria à guerreira um conhecimento tão íntimo de Iorveth que dificilmente ela adquiria sob outras circunstâncias. Ela não revelou ao elfo, mas um pouco antes da revolução começar, a ideia de se procurar um relacionamento estável e sossegar perneava os pensamentos de Saskia. Se antes a mulher prometia a si mesmo que o faria quando os rebeldes obtivessem o domínio de Vergen, agora a ideia lhe seduzia, com a vida nas isoladas montanhas de Mahakam e acompanhada de um grande amigo que, aos seus olhos, tinha tudo para ser mais do que isso.

No entanto, a pergunta que rodeava sua mente era: o que ele pensa sobre isso?

Terminando de se vestir, a guerreira caminhou pela casa, até encontrar Iorveth próximo da lareira, já completamente vestido. Na verdade, mais vestido do que ela esperava. O gibão envelhecido que ele estava usando nos últimos dias deu lugar a uma couraça rústica, porém de boa qualidade, que possivelmente algum anão bastante solidário aos Scoia’tael fez para ele. Iorveth parecia bastante entretido arrumando uma bolsa grande. Se sua aljava de flechas não estivesse em suas costas, Saskia poderia afirmar que o elfo estava partindo dali naquele mesmo instante.

—Bom dia.

—Bom dia. - respondeu Iorveth, de modo seco que causou estranheza a Saskia.

—Vejo que está preparando bagagem para uma viagem longa. – sondou Saskia. Iorveth se limitou a assentir, compenetrado na bolsa.

—O que está planejando, Iorveth?

—Reagrupar os Scoia’tael.

Saskia parecia surpresa com a urgência de Iorveth. Sim, ele havia comentado sobre isso, mas a mulher não imaginava que aquele era um assunto tão imediato assim.

—Então, quando nós partiremos? – perguntou Saskia, por fim. Diante da pergunta dela, Iorveth imediatamente parou de dar atenção à bagagem e voltou seu olhar à Saskia.

—“Nós”?! – questionou Iorveth. – Eu vou sozinho.

—Sozinho?! – tomou-se de confusão Saskia. – Nem pensar! Eu vou com você.

Iorveth rolou os olhos, como se já esperasse uma resposta dessas.

—Os Scoia’tael são problema meu. Algo que preciso resolver sozinho.

—Sim, é claro. Mas sob qual causa? Ou devo esperar que volte à sua “vida renegada” outra vez, quando seus objetivos eram simplesmente matar e saquear o maior número possível de vilarejos “dh’oine”?

—Isto seria um retrocesso de minha parte, algo que jamais irá acontecer. Eu ainda tenho ideais, Saskia, apesar dos últimos acontecimentos. Tentamos criar uma cidade onde elfos, anões e humanos poderiam viver em harmonia. Enfrentamos um reino para que isso acontecesse e fomos derrotados. E seremos mais uma vez, se o mesmo se repetir. Dol Blathanna se tornou um reino. Sim, um reino oficializado por aqueles desgraçados nilfgaardianos que usaram os Scoia’tael na guerra e depois nos descartaram como lixo, mas um Reino reconhecido por humanos. Ninguém sonha em atacar Dol Blathanna, contestar sua existência. Tudo isso porque Nilfgaard simplesmente proclamou que aquele território é um estado vassalo dela e pronto.

Saskia parecia atônita.

-Está sugerindo que... Talvez...?

-Que talvez – ele começou – eu não deva enfrentar um Reino por um pedaço de terra. Que nós, inumanos, devemos traçar um caminho semelhante ao ocorrido a Dol Blathanna, porém não com Nilfgaard. Pode ser a Teméria, por exemplo...

Saskia começou a rir.

-A Teméria se tornou uma Terra de Ninguém, sem um Rei.

—Melhor ainda. Um país sem um governante, ocupado tentando conter a invasão de Nilfgaard não dará muita atenção a uma insurgência. Especialmente se essa insurgência acontecer em um pedaço de terra inóspito. Como Mahakam.

—Está sendo otimista demais, Iorveth. Parece estar se esquecendo dos últimos acontecimentos. Nilfgaard já tomou Vízima, a capital da Teméria. O regente John Natalis está desaparecido, possivelmente morto durante a batalha em Mahakam. Aerdin também já caiu, é agora um reino subjugado e reduzido a cinzas pelos Cavaleiros Negros. Não demorará até que Nilfgaard tome completamente o Norte para si, incluindo Mahakam.

Iorveth sorriu com o canto do lábio.

—Em uma guerra, não há vitória enquanto o último inimigo permanecer de pé. Tenho certeza de que Nilfgaard sabe disso. Além disso, apenas um homem na face da Terra soube controlar uma insurgência em Mahakam, e esse homem não é nilfgaardiano. Os Cavaleiros Negros são extremamente bons em batalha campal, mas nenhum soldado em armadura consegue sobreviver em uma floresta. Eles estarão fora de seu elemento, Saskia. E tenho certeza de que os Cavaleiros Negros agora estão apontando seus esforços para a Redânia, se a Teméria realmente já caiu.

—Ainda assim, Iorveth – insistiu Saskia. – Você precisará de gente para essa empreitada. E bastante gente. Mahakam é muito maior do que Vergen.

—Sei disso. Ainda tenho contatos por aqui, da última insurgência sufocada pelos Listras Azuis. E terei também de permanecer a localizar mais unidades Scoia’tael que estão dispersas, o que demandará mais tempo, pois terei de separar o joio do trigo. O fracasso da rebelião de Vergen fez muitos se tornarem criminosos comuns e eu não quero me aliar a gente assim. Há muito trabalho a se fazer. Por isso, tenho que partir, Saskia. E sozinho.

Saskia cruzou os braços.

—Não vou deixar você partir para uma tarefa tão difícil dessas quando eu fui umas das principais causas a todos os problemas envolvendo os Scoia’tael.

—Eu já te disse, Saskia. Você não é culpada pelo o que aconteceu.

—Mas é claro que eu sou, Iorveth! Eu não estava em Vergen quando os rebeldes mais precisaram de mim. E, além disso, eu não posso deixa-lo partir sem a minha ajuda. Não depois de tudo que você fez por mim. Eu não o agradeci como deveria. Você me salvou daqueles Scoia’tael que desejavam me matar, e me consolou quando matei Elendil por engano. Você tem sido compreensivo comigo e...

—Eu não estou interessado em um gesto de gratidão seu, Saskia. Só não parti antes porque precisava ter certeza de que a deixaria bem, mas não por você e sim, por seu pai. Tenho muito trabalho a fazer, como deve imaginar. Os Scoia’tael estão dispersos e sem liderança, e se permanecerem assim, acabarão por se dissolver. Não posso ficar aqui, vivendo sua farsa, enquanto a causa que me dediquei por tantos anos está prestes a ruir.

Saskia parecia surpresa com o repentino tom ríspido de Iorveth.

—Farsa? Que história é esta de farsa, Iorveth?

O elfo negativou com a cabeça.

—Eu já sei de tudo, Saskia. Não sei como, mas você soube o que estava prestes a acontecer com você, naquele ritual. Só que ele não deu certo. Nenhum feitiço aconteceu, mas você preferiu simplesmente fingir que sim, que eu estava te controlando. O que eu ainda não entendo é: por que?

Saskia pareceu aturdida.

—Espera... Como assim, controle? Eu realmente não estou entendendo...

Iorveth bufou. – Se prefere continuar mentindo deste jeito, então eu...

—Eu não estou mentindo, seu idiota! – exclamou Saskia. – Eu realmente não sei do que está falando. Feitiço, controle... Droga! Então foi tudo isso o que aconteceu na noite em que eu matei o Elendil quando estava transformada!

O batimento cardíaco dela está normal. Ela realmente não esta mentindo.

—Um ritual... Para que você tivesse o controle sobre mim, e consequentemente sobre a minha forma draconiana! Como pôde ser tão baixo assim, Iorveth?!

Iorveth ficou claramente ofendido, mas procurou se conter.

—Para começar, você já estava sob o controle de Phillipa Eilhart. Phillipa se aproveitou do seu envenenamento para lançar um feitiço sobre você. Um feitiço de controle. Desde então, você esteve sobre o controle dela até o dia de hoje, tendo por ela uma espécie de... De paixão cega e platônica. Mas este feitiço estava enfraquecendo você, principalmente porque Phillipa desapareceu, e isso poderia mata-la, se perdurasse por mais tempo. Foi Turiel quem me deu a opção de também deter controle sobre você, pois assim você não morreria. Por isso o ritual. Ele não deu certo porque eu omiti de Turiel que você era um Dragão e por isso...

—Eu matei Elendil. – concluiu Saskia, com pesar.

—Sim.

—Eu o ataquei porque senti uma dor intensa... Como se meus músculos estivessem sendo comprimidos, não sei...

—Turiel se assustou com a sua transformação e tentou contê-la. Por isso a dor, eu acho.

—Sim, deve ter sido por isso. Mas ainda assim, eu não posso acreditar que aquela vagabunda da Phillipa me controlou por todo este tempo... – concluiu Saskia, urrando de raiva. – Eu jamais deveria ter deixado àquela feiticeira se aproximar tanto assim de mim. Quão tola eu fui.

—O que está feito está feito, Saskia. – disse Iorveth. – Mas o que importa é que o controle dela sobre você acabou. Seu pai conseguiu encontrar o contrafeitiço, e ver você chamando Phillipa de “vagabunda” já é um sinal de que você não está mais sobre o controle dela.

Saskia riu, sentando-se em um banco próximo da lareira. – Se for parar para pensar, realmente. Eu me sinto leve como nunca. Parece que um peso enorme foi retirado dos meus ombros. Agora faz sentido porque eu me sentia tão... Estranha. Ainda assim, não entendo sua raiva, e essa sua insistência em chamar o que vivemos nos últimos tempos de “farsa”.

Ao voltar seus olhos a Iorveth, Saskia percebeu que o elfo agora estava desconfortável. Nem seu jeito estoico de ser pôde disfarçar seu desconforto. E para completar, ele parecia hesitante.

—Dado o seu... “Comportamento” nos últimos tempos comigo, eu imaginei que...

Uma gargalhada de Saskia interrompeu Iorveth, que sentiu-se contrariado.

—Que eu estaria fingindo? Ora, mas porque eu faria isso?

—Não sei. Era isso o que mais desejava saber, para ser sincero.

—Mas que droga, Iorveth. Você realmente pensa que eu tenho que estar enfeitiçada para sentir alguma coisa por você? Há quantos anos nós nos conhecemos, Iorveth? Há quanto tempo temos estado juntos, lado a lado, lutando e desejando as mesmas coisas? Você não me considera ao menos uma amiga?

—Sim. – disse Iorveth, tentando disfarçar sua hesitação em admitir. – Sim, é claro que sim.

—Pois eu considero o mesmo, e iria até um pouco mais além. – Saskia suspirou. – Todos estes anos que cultivamos de amizade e companheirismo, Iorveth, evoluíram para algo mais forte. Algo diferente, algo... Mais.

Iorveth a escutava atentamente, sem fazer qualquer intromissão. O silêncio do elfo parecia encoraja-la. Já de pé, Saskia derramava suas palavras enquanto lentamente se aproximava de Iorveth.

—Por causa de minha condição, sempre evitei relações sólidas com alguém. Meu pai me ensinou a ter cautela, e assim agi por anos. Até te conhecer, Iorveth. Temos ideais semelhantes, almejamos as mesmas coisas. Construímos uma relação de confiança juntos. Eu te contei o meu segredo, e você me contou a sua história. Dividimos vitórias e fracassos, ganhos e perdas. Podemos contar um com o outro, na melhor e na pior das situações. Só o que precisamos é dar um passo em direção a algo que tem tudo para dar certo e que não trará nenhum mal a nós dois.

Ninguém mais se pronunciou. Diante da ausência de Iorveth naquele diálogo, Saskia suspirou.

—Eu não vou implorar para que fique comigo, nem vou me aborrecer com uma resposta ruim de sua parte. Mas não vou tolerar o seu silêncio.

—Você tem razão – disse, por fim Iorveth, quando Saskia estava prestes a dar as costas. – Estar com você não nos trará mal nenhum. Mas o mesmo não posso dizer dos inumanos.

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—Não quero que abandone seus ideais para ficar comigo. Não seria tão egoísta a este ponto. Quero apenas que me conceda um lugar em sua luta, e em sua vida também, se assim o desejar.

—Você seria uma distração da qual não posso me dar ao luxo de ter. Em breve, irei partir em busca de mais Scoia’tael que estejam dispostos a lutar por Mahakam e preciso estar concentrado. Essa guerra entre os dh’oines será a nossa oportunidade de ouro para obtermos o nosso território livre do jugo dh’oine. E eu não vou desperdiça-la por meu egoísmo.

—Não coloque os Scoia’tael como uma desculpa para sua covardia. – disse Saskia, por fim. – Se não deseja ficar comigo ou não, seja sincero. Sinceridade de sua parte é o mínimo que mereço receber como resposta, não uma desculpa. Pois eu não sou nenhum empecilho à sua causa. Luto tão bem ou até melhor do que muitos homens que estiveram sob o seu comando e isso jamais mudará. Não estou exigindo sacrifícios de sua parte, Iorveth. Estou te exigindo uma resposta.

Após alguns segundos de silêncio, Saskia bufou.

—Não vou mais insistir. Pode partir você e sua covardia porque eu...

—Eu te amo, Saskia...

As demais palavras de Iorveth jamais vieram. Não que o elfo não as imaginasse, mas Saskia simplesmente o interrompeu, ao silenciá-lo com um beijo. Casto no início, mas aprofundado nos segundos seguintes, por iniciativa do próprio Iorveth, surpreendeu-se a guerreira. Sua bandana desfeita pelos dedos de Saskia foi a última lembrança racional de Iorveth naquela noite, tendo o resto se dissipado numa inebriante e prazerosa mistura de desejos e sensações outrora desconhecidos e inexplorados.