Deve ser declarado em alto e bom som: a ordem criada após a guerra com Nilfgaard não é uma ordem. É uma bagunça. Reis ainda tremem diante do poder dos Cavaleiros Negros. Nilfgaard ainda ameaça o Norte. Feiticeiras e espiões trabalham nas sombras, puxando cordas de marionetes. Monstros percorrem as estradas, enquanto os soldados fazem o que querem e oprimem pessoas comuns. Uma verdadeira bagunça, eu digo.

(Extraído de “As Consequências da Segunda Guerra contra Nilfgaard”)

As chamas já estavam altas, mas Roche insistia em mexer na fogueira, atiçando o fogo com um graveto. Havia descido do cavalo e parado em uma clareira na floresta há pelo menos duas horas, mas o cansaço ainda não era capaz de ser aplacado por esse pequeno repouso que o temeriano se concedia. Na verdade, a última coisa que Roche desejava era estar sentado, após os últimos dois dias montado em um cavalo, de modo que o temeriano optou por estar de pé ao redor da fogueira. Se dependesse dele, permaneceria mais na estrada, mas os cavalos já estavam exaustos demais para mais um dia de cavalgada.

Anais também tinha a mesma sensação, mas o invés de estar em pé, como ele, a menina deitou-se sob uma esteira arrumada por ele. Agora, dormia pesadamente. Fez calor nos últimos dias e sua tez estava avermelhada pelo sol, notou Roche. Por mais que tivesse concedido à menina uma capa com capuz para protegê-la dos implacáveis raios de sol, a poeira da estrada e o calor que subia do solo foram o bastante para queimar sua não-mais delicada pele de nobre temeriana. Apesar de Roche detestar a provação com a qual estava submetendo a filha do Rei Foltest, o temeriano tinha que dar o braço a torcer de que isso tinha lá sua vantagem. Era muito difícil alguém supor que aquela menina magricela com o cabelo castanho claro desgrenhado, a pele queimada de sol e as roupas imundas de poeira da estrada era uma nobre, que dirá uma herdeira ao Trono da Teméria.

Quanto à Brigida, este era outro problema que o próprio temeriano não havia calculado, nem em suas piores perspectivas. Roche precisou gastar praticamente todo o dinheiro que havia para comprar um vestido simplório para ela e também um cavalo a mais. Graças a isso, não tinham mais dinheiro para uma “estripulia” de almoçar um prato quente em uma taberna ou dormir em uma estalagem de beira de estrada. Por sorte, não estavam muito longe de Vízima e, já cedo, estariam nos arredores da capital temeriana.

E a nobre Papebrock permanecia na mesma. Calada, reticente. A única pessoa que Roche conhecia ter passado por semelhante trauma era Ves. Neste momento, o temeriano se amaldiçoava por ter excluído a Listra Azul de seu plano. Agora, ele não fazia a mínima idéia de onde Ves estava. Ela poderia ajuda-lo a entender como lidar com Brigida, pois ela havia passado por um sofrimento semelhante. E Roche não tinha vergonha em admitir que não possuía qualquer habilidade em dizer palavras de alento para alguém.

A presença de Anais ajudou a melhorar o humor de Brigida. Sensível e afetuosa, o primeiro ato de Anais ao reencontrar sua ama foi abraçá-la, ignorando o estado esfarrapado e sujo de Brigida quando ela chegou. A menina envolveu-a em um longo abraço, apesar de ter demorado um pouco para sentir retribuição de Brigida. Só após alguns momentos, Roche viu a nobre Papebrock abraçar conjuntamente a menina. Lágrimas se seguiram junto a isso. Sem saber o que fazer – Roche sempre se achou péssimo com demonstrações de sentimentalidades – o temeriano decidiu dedicar seus esforços a pedir uma tina com água quente da estalajadeira. A tarefa de limpá-la também não foi das mais fáceis, mas por sorte Anais se disponibilizou a ajudá-la, algo que Brigida aceitou sem problemas.

E por fim... Veio o chá.

Sendo um homem que cresceu dentro de um bordel, Roche acabou por se tornar versado em determinados conhecimentos dos quais muitos homens não detinham nem a menor sombra. Alguns ele jamais admitiria a alguém, como modo de resguardar sua masculinidade e evitar situações desconfortáveis, como os ciclos menstruais femininos e evidências de gravidez. Não só os conhecidos enjoos, desmaios e indisposições, mas também outros sinais, como seios inchados, por exemplo. De todos os métodos conhecidos popularmente para se evitar uma gravidez, Roche sabia qual era verdade e qual era mito. E quando a gravidez não poderia ser evitada, bem... As prostitutas recorriam ao chá. O famoso chá. Não havia um nome ou titulo a dar a bebida que as prostitutas, incluindo sua mãe, tomavam para evitar que mais filhos da puta como Roche viessem ao mundo. Sua mãe jamais foi de esconder segredos, por isso compartilhou a receita do chá com Roche quando ele se tornou mais velho. “Porque a vida é imprevisível e nunca se sabe”, ela disse. Se ele tivesse o menor vislumbre da situação a que ele recorreria ao chá...

Mas era o silêncio de Brigida que mais o incomodava. A mulher não havia dito uma só palavra sequer, nem mesmo com Anais, a pessoa a quem ela havia se apegado mais desde seu resgate. E agora, vê-la ali, sentada em uma pedra, com o olhar vazio, sem dizer uma mísera palavra durante toda a viagem, lhe perturbava. Pois a mulher que estava bem diante dele não era nem mesmo uma vaga sombra da Brigida Papebrock insolente que ele conhecera.

—Para onde estamos indo?

Roche se sobressaltou. Aquela não era a voz de Anais, mas sim, de Brigida. Após dias de silêncio, a nobre temeriana decidiu falar. Algo bastante trivial, verdade. Anais havia feito a mesma pergunta várias vezes durante a viagem, recebendo apenas uma resposta genérica de Roche, que mais servia para atiçar a curiosidade da menina.

—Creio que para mim, você pode contar.

Roche tirou seus olhos das chamas da fogueira para Brigida. Sua forma pálida e os hematomas o lembravam dos últimos eventos, mas quando o comandante focou seus olhos nos dela, pôde notar a mesma vida e furor de tempos passados. Com da última vez em que se viram, em Loc Moinne, quando ele precisou deixa-la aos cuidados de Geralt. Se Roche soubesse o quanto a vida de ambos mudaria após toda aquela confusão em Kaedwen...

Roche exalou profundamente. Procurou um cantil de água, sentando-se ao lado de Brigida. A temeriana notou que ele estava hesitante.

—Estamos indo para... Para a casa de minha mãe. – disse Roche, bebendo do cantil.

Como ele imaginava, a resposta a surpreendeu. Não de modo positivo.

—Você me disse que ela estava morta!

—Eu disse que não sabia dela, isso é diferente! Para lhe ser franco, não tenho notícias dela há uns dois anos. Pode ser que ela esteja morta mesmo, não sei. Mas também é possível que ela esteja viva.

—Então, não estamos indo para Vízima?

—Não. Estamos indo para Dorka.

—Nunca ouvi falar desse lugar em toda a minha vida.

—É um vilarejo ridiculamente pequeno. Não fica muito longe de Vízima. Se apertar bem os olhos e subir na Colina da Cotovia, dá para enxergar algo negro no horizonte. Os muros de Vízima.

—Já entendi tudo. – disse Brigida. – Você veio deste lugar.

—De certo modo, sim. – assentiu Roche, pesadamente. – Minha mãe nasceu e cresceu em Dorka, mas se mudou para Maribor quando foi expulsa de casa. Foi em Maribor que passei minha infância, não em Dorka.

—Sim, tudo que houve com você por lá eu já sei. Mas ao parece, Dorka é uma lembrança tão amarga quanto Maribor...

—Bom, eu não sei que tipo de perspectiva você tem da vida, mas definitivamente um menino sem pai, filho de uma mãe solteira, não era algo respeitoso de ser.

Roche suspirou, percebendo pelo semblante de Brigida que havia sido grosso. Não que ela não fosse acostumada aos seus modos ríspidos, mas ele sabia que precisava ser mais gentil com ela, pelos últimos acontecimentos que ela havia passado.

—Não vale a pena discutirmos sobre o passado, principalmente o meu. Vamos falar do presente. Sim, estamos indo a um vilarejo medíocre e esquecido pelos deuses, que no momento se constitui na minha melhor opção de preservar Anais até que todo esse pandemônio que assola a Teméria se acalme.

—Mas e quanto a John Natalis, ele não poderia...?

—Definitivamente não, Brigida. Natalis é um bom militar, mas péssimo político. Não está conseguindo acalmar os ânimos dos nobres, mesmo com toda sua fama de incontestável herói temeriano. Com Anais nas mãos, Natalis irá coroá-la no mesmo ato e se tornar regente até que ela tivesse idade para governar. Expor Anais a estes Barões sedentos por poder seria arriscado. Agora, tudo que podemos fazer é preserva-la e aguardar o momento certo.

Brigida voltou seus olhos no fogo. Outra vez, seu olhar ficou perdido.

—Roche.

—Sim?

—Já parou para pensar que este “momento certo” pode nunca chegar?

Roche sabia a resposta. Sim. Ele já pensou, e várias vezes. Calculou muitos cenários, todos pessimistas, onde a Teméria jamais se recuperaria da guerra civil e que acabaria abocanhada por algum reino, sendo anexada ou se tornando um mero estado vassalo, sem poder ou expressão, abandonando de vez qualquer vestígio da grandeza dos áureos tempos.

—Tudo que sei, Brigida – respondeu Roche. – É que este “momento certo” não é agora.

Brigida pareceu mais conformada com sua resposta. Levantou-se, para se unir a Anais junto à esteira. Roche estava de costas para ela. Aos olhos de Brigida, ele tinha os olhos focados na fogueira, mas na verdade o temeriano observava o mais sutil de seus movimentos pelas sombras projetadas pelas chamas, no chão batido daquela clareira.

—A propósito, Brigida – disse Roche – é bom ter você de volta.

II

Desde que contara a verdade a Brigida, Roche sentiu a nobre temeriana mais ansiosa com a chegada a Dorka. E, quem diria, mais ansiosa até que a pequena Anais, afinal ela sabia bem para onde estava indo – ou melhor, quem finalmente ela conheceria. O Comandante sentia-se a pessoa mais desafortunada possível, por estar rodeado por duas mulheres teimosas e extremamente curiosas. Nas poucas horas que seguiram na estrada desde o último amanhecer, Roche já havia perdido a conta de quantas vezes respondeu à pergunta “já estamos chegando?”. Por fim, estava dando respostas tão vagas que as duas se calaram. Melhor assim.

E finalmente, após descer uma pequena colina, Brigida pôde ver o vilarejo, pequenino a manchar o horizonte verde de pastagens.

—Brigida, Dorka. Dorka, Brigida. – brincou Roche, ao ver a temeriana boquiaberta.

Brigida riu. – Você não estava brincando quando disse que era minúsculo.

—Tem certos mapas que nem mesmo o incluem, por não ser uma parada decente a um viajante. Se as coisas permaneceram as mesmas desde a última vez que estive aqui, significa que a única taberna da cidade sequer tem dormitórios.

—Quando foi a última vez que esteve aqui?

—Quando recebi de Foltest minha última medalha. Tem uns seis anos.

Os dois cavalos, carregando Roche, Brigida e Anais, se aproximaram do vilarejo. Havia um único guarda a fazer a vigia do lugar. Um homem velho, caolho e que usava uma espada com a lâmina visivelmente cega, que parecia mais preocupado em tirar a sujeira das unhas imundas que fazer seu trabalho. Roche estremeceu por dentro. Se a Teméria precisasse de homens assim, os temerianos estariam fodidos.

—Quem são vocês? – perguntou, com um grosseiro bocejo.

—Transeuntes.

O vigia os dispensou, sem fazer perguntas. Claramente, não havia preocupação com viajantes e estranhos, pois nada de interessante em Dorka havia para ser surrupiado ou destruído.

—Tem certeza de que este é um bom lugar para Anais ficar? – perguntou Brigida, quando cavalgando para longe do guarda.

—Acredite em mim, quanto mais bem-guardado for o lugar, mas visado será para encontra-la. – explicou Roche, recebendo um assentimento de Brigida. Após a segunda rua do vilarejo, Roche pediu para que ela parasse. Descendo do cavalo, o temeriano parecia analisar o lugar.

—O que foi? Não é este o lugar?

—Sim, é. É só que...

A resposta de Roche foi interrompida pelo súbito abrir da porta da frente daquela casa humilde – não que ele se importasse, pois não estava nem um pouco interessado em dizer a Brigida sobre sua hesitação. Mas todos os seus medos se dissiparam quando ele viu uma senhora com uma vassoura na mão, de baixa estatura, vestindo roupas de camponesa, com os cabelos grisalhos escondidos por um chapéu barato, tipicamente camponês.

A mulher parecia resmungar qualquer coisa, mas seu semblante imediatamente se empalideceu quando percebeu que havia três estranhos diante de sua calçada. Não pelos motivos corretos, pois seu semblante passou de surpresa a desconfiança.

—Quem são vocês? – ela disse, segurando na vassoura como se ela fosse o objeto mais mortífero do Continente. Brigida riu com sua valentia. A mulher de rosto emburrado era, simplesmente, idêntica a Roche. Todas as feições do comandante temeriano estavam lá, embora envelhecidas. Parecia que Roche teve, afinal, a quem puxar.

—Mamãe, sou eu. Vernon. – disse Roche, deixando a pequena Anais chocada e fazendo-a deixar escapar algo como “você também tem uma mamãe?”. Brigida também ficou boquiaberta ao ver a singela e meiga palavra “mamãe” escapar com doçura dos lábios de um dos homens mais perigosos da Teméria. Após apertar bem os olhos, a mulher finalmente exclamou, maravilhada.

—Vernon!

A vassoura caiu no chão e a mulher estremeceu. A mulher estava prestes a abraça-lo, mas ao notar que alguns camponeses nos arredores voltaram suas atenções à sua casa, ela se conteve, adotando uma postura subitamente fria.

—Vamos conversar lá dentro. – disse, num tom de comando bastante parecido com o do filho.

Assim que a mulher fechou a porta, Roche retirou sua capa. Anais e Brigida fizeram o mesmo. As duas começaram a reparar no ambiente. Era uma típica casa de camponeses, onde cozinha, sala de estar e de jantar se tornavam uma coisa só, mas um tanto mais espaçosa. Com uma lareira no centro da casa, para espantar o frio, uma mesa rústica de madeira e alguns bancos. Dava para ver duas portas, que Brigida presumiu ser dos quartos da casa.

—Por favor, sentem-se. E meu filho, por favor, tire esse seu maldito chapéu. Oh, perdoem-me o linguajar. – disse a idosa, ao perceber que havia uma criança entre eles.

—Eu vou me sentar, como a senhora pediu, mas creio que terei de ficar devendo sobre o meu chapéu. – disse Roche, num tom de brincadeira. Anais, em toda sua inocência de criança, o questionou.

—Por que você nunca tira seu chapéu? – ela perguntou. Roche fez uma careta.

—Oh, mas como eu adoro essa fase. A época do “por que?” Por que isso, por que aquilo... – disse a mãe de Roche, após trocar um olhar com seu filho. – Aliás, que adorável menina! Aposto que herdou toda essa beleza da mãe dela...

Ao perceber que os olhos de sua mãe voltaram de Anais para Brigida, Roche pigarreou fortemente. Claro, não era difícil chegar a esta conclusão.

—Por que não contou que já tinha uma filha na última vez que me visitou? Por que, a julgar pela idade dessa menina, ela já era nascida naquela época...

—Tudo a seu tempo, mãe.

A mulher riu, dando um leve tapa na bochecha já corada de Roche. – Que bonitinho. Não vai me chamar de “mamãe” na frente de sua esposa para não se constranger...

Brigida pôde agora entender porque Roche mantinha sua mãe e sua língua afiada ali, tão longe da Civilização. Tendo resposta para tudo, a Senhora Roche seria uma arma mortal para qualquer um de seus inimigos.

—Vernon sempre foi assim, desde menino. Tem toda uma faceta de alguém cheio de si e confiante, mas no fundo, importa-se muito com o que as pessoas pensam sobre ele. Lembra-se, Vernon, quando você tinha dez anos e voltou para casa chorando porque o carpinteiro disse que você era um imprestável porque não conseguia cortar uma tábua reta?

—Pare com isso. – ele pediu, fazendo uma careta irritada. Isso não parecia o bastante.

—Tá faltando alguma coisa nesta frase...

—Pelos deuses, não estou com paciência para os seus joguinhos... – murmurou Roche.

—Isso me faz lembrar também daquela vez em que meu filho Vernon cismou que já era homem o bastante para fazer a barba e tentou se barbear com uma faca e sabão. Você tinha quantos anos na época, Vernon? Uns nove, dez anos? Aposto que ele diz para todo mundo que o corte no queixo é cicatriz de guerra...

—Pare com isso. Por favor. – disse o temeriano, enfatizando a última frase. Brigida estava prestes a ter um ataque de risos. Jamais testemunhou Roche pedir qualquer coisa com gentileza.

—Melhor. Hmmm... – parecia avaliar a idosa. – Só ficou faltando uma palavrinha. Que pena. Mas enfim, eu estava falando do corte do queixo ou da vez em que ele quase...

—Por favor, pare com isso. Mamãe.

—Ótimo! – exclamou Anya Roche, chegando a aplaudir. – Esse é o filho que com tanto afinco e dificuldade eu criei. Não aquela porcaria malcriada e suja que o Exército Temeriano me devolveu.

Roche rolou os olhos, enquanto Brigida e Anais riam sem parar.