The Kostroma Dynasty

Verdades Incompreensíveis


"Like a heartbeat drives you mad

In the stillness of remembering what you had

And what you lost”

Dreams — Bastille ft. Gabrielle Aplin

No princípio, havia escuridão. Pura, densa, mas fervilhante. Cheia de sussurros, de convites, de palavras ditas pela primeira vez, e que seriam repetidas ao longo dos séculos, com a solenidade que mereciam.

Depois, houve luz. Aquele mundo escuro foi rasgado, estilhaçado e destruído, para ser refeito logo depois, dessa vez abrindo espaço para conviver com sua força semelhante e essencialmente oposta.

E então, em meio aquele caos de energia pura – luminosa ou obscura – nasceram os pilares, as bases que segurariam aquela realidade, impedindo que retornasse ao seu estado inicial, bagunçado demais para que fosse capaz de evoluir. Fogo, para segurar a energia em sua forma mais próxima da pureza. Ar, para que a magia pudesse navegar por entre as montanhas mais altas e as cavernas mais profundas. Água, para que a força mágica inicial pudesse ser segurada entre os dedos da alma mais descrente. Terra, para angariar toda aquela energia, uma âncora para o poder mais volátil existente.

Assim, ele assistiu o Universo tomar forma. Na realidade, seria injusto e incorreto chamar dessa forma, uma vez que ele não usou os olhos para ver aquele mundo se abrindo. Não, ele sentiu na pele. Sentiu seu sangue pulsando em reconhecimento à matriz vital, sentiu o choque do primeiro raio de luz percorrer seus nervos. E entendeu, pelo menos naquele milésimo de segundo, em sua epifania, que, ao mesmo tempo que aquele mundo, seu mundo, nascia, também nascia ele mesmo. Entendeu a magnitude do poder que carregava nas veias, e encontrou uma beleza selvagem no que carregava em si. E, por um momento, sentiu-se inteiro, completo.

Mas o despertador acionou seu som agudo e cortante, e ele acordou. Ao abrir os olhos, o sonho, a epifania, a mínima lembrança do que, sem sombra de dúvida, era a revelação mais importante de sua vida, tudo isso sumiu, como se nunca tivesse existido. Ficou apenas uma sensação esquisita sob sua pele, como se a saudade de algo que ele nem sabia o que era tivesse se tornado física e se alojado entre seus ossos.

Aleksei, agoniado, levantou da cama, andando pelo quarto em uma tentativa instintiva de mandar aquela sensação embora. Mas aquilo não passava, e ele, ainda sonolento, não conseguia pensar direito. Então ouviu uma batida familiar na porta, e, mesmo sem um motivo claro, sentiu que ficaria bem. Com a sensação ainda agarrada em sua pele, Aleksei abriu a porta para dar de cara com Aberash, já arrumada e impecável, mesmo que fossem seis e meia da manhã.

— Bom dia — cumprimentou, contente. Sua expressão de contentamento se desmanchou para algo bem mais sério ao ver o rosto de Alek, que demonstrava claramente o desconforto que ele sentia — Pela sua cara, eu nem preciso perguntar se você dormiu bem.

— Pior do que você imagina — resmungou ele, fechando a porta logo depois de ela ter entrado no quarto.

— Na verdade, eu acho que minha imaginação é muito certeira, nesse caso, pelo menos — disse ela, puxando Aleksei pela mão, e o sentando na cama do rapaz — Vamos fazer algo para arrumar essa sua expressão de desespero, sim? Feche os olhos.

Talvez fosse a sensação impregnada em Aleksei e o efeito que estava tendo nele, mas o czareviche nem discutiu. Fechou os olhos, remexendo as mãos no colo, tentando extravasar o desconforto que sentia em alguma coisa, e deixou-se à mercê de Aberash. De verdade, aquilo era mais comum do que parecia. Alek sonhava muito pouco. Gostava de dizer que suas noites eram vazias e calmas, isso quando ele conseguia dormir. Mas, quando sonhava, nunca era com algo simples. Ou eram pesadelos ruins o suficiente para fazê-lo acordar com calafrios, ou eram imagens sem um sentido aparente, mas que lhe deixavam com uma sensação muito forte. Em algum ponto do caminho Abe havia começado a ajudá-lo nessas noites turbulentas, conversando ou fazendo ele praticar algum exercício meditativo com ela, e sempre funcionava.

É importante notar, porém, que Aleksei nunca tinha tido um sonho tão impactante, que deixara uma marca tão forte, e Aberash nunca tinha agido da maneira que agia naquele momento, mas ele pensaria racionalmente sobre aquilo depois. Naquele instante, ele só queria ajuda.

Sentiu as mãos de Aberash nas suas. Eram mornas e familiares, e ele relaxou imediatamente sob o toque dela. Com a calma característica de sua voz, foi instruindo que Aleksei respirasse no ritmo da contagem que ela fazia, e, aos poucos, a sensação ruim foi indo embora.

— Melhor? — perguntou ela, saindo da frente de Alek e sentando-se ao lado dele.

— Muito — respondeu simplesmente, sentindo que respirava direito pela primeira vez desde que abrira os olhos — Não tinha uma crise de ansiedade dessas há anos.

— Hoje é o primeiro grande dia dessa Seleção, afinal — disse ela, dando de ombros — Me admira que você tenha conseguido se manter tão calmo até agora.

Aleksei conseguiu soltar um riso sem humor, deixando-se cair de costas no colchão.

— Não tão calmo quanto deveria, ao que parece. — era um tanto revoltante ter uma crise justo naquele momento, e por causa de um sonho do qual não lembrava — Enfim, pulemos a parte que eu sinto pena de mim mesmo, e voltemos à vida real. Por que você está no meu quarto tão cedo?

Ela sorriu, levantando-se da cama e passando as mãos pelas pregas do vestido, tirando os amassados que não estavam ali.

— Era o único horário que eu tinha certeza que você poderia conversar comigo sem estar rodeado de gente. Só queria responder sua pergunta antes de você se encontrar com as selecionadas.

— Que pergun... Ah. Não acredito que você realmente levou aquilo a sério — disse, disfarçando o interesse que sentia por aquela conversa com um tom debochado.

— Levei, e não importa o quanto você me olhe com essa expressão irônica, não vai me convencer de que você também não estava falando sério naquele dia. — disse ela, e, embora seu tom fosse brincalhão, ele sentiu como se estivesse levando um puxão de orelha.

Ele estava a ponto de articular uma resposta à altura, quando bateram na porta pela segunda vez nessa manhã.

— Essa é minha deixa. Não quero atrapalhar o cronograma estrategicamente montado pela Czarevna — disse Aberash, já andando em direção à porta, e causando a perplexidade em Aleksei, que, apesar de todos os seus esforços para se convencer do contrário, estava ávido pelo que ela tinha a dizer — E sobre a pergunta... Fique tranquilo. Aquelas garotas são realmente extraordinárias, mas nada diferente do que você vê há anos. São iguais a mim, por exemplo.

Enquanto Aberash deixava o quarto e um grupo de criados entrava pela porta, Aleksei se permitiu contemplar o que a amiga dissera. E, embora fosse um tanto reconfortante, não era totalmente calmante, como ele esperava que fosse, como se houvesse algo ali que ele não conseguia entender por completo ainda. Não tinha tempo para continuar pensando naquilo, entretanto.

Um dia ele entenderia o que ela quisera dizer, e a clareza o atingiria com a brutalidade de um soco, mas não naquele momento, ainda não. Algumas revelações precisam do tempo e da construção corretas para ter o impacto certo, e essa em particular tinha todas as peças se alinhando. Mas cada coisa em sua hora.

(***)

A partir de um ponto de sua vida, Aberash tivera duas certezas inabaláveis: que a magia é uma força geniosa, e que palavras, de feitiços ou não, tem o poder de mudar ambientes. Agora, além disso, ela chegara a uma terceira conclusão: que juntar as duas certezas anteriores era sinônimo de caos.

Aberash sabia que o que Aleksei tivera não fora uma crise de ansiedade, mas não podia desmentir isso para ele, ainda não. Não imaginava que tipo de revelação seus sonhos tinham trazido à ele naquela noite, mas, considerando o esforço que ela tivera que fazer para realinhar a energia do czareviche, devia ter sido importante. Esse fenômeno era mais corriqueiro do que parecia. Não bruxos e bruxos tinham sonhos com significado, alguns podendo trazer vislumbres do passado ou do futuro, a diferença é que a maioria dos humanos descartava as visões que tinha, e os bruxos não. No caso de Aleksei, porém, acabava se tornando um escape para sua magia retida, por isso ele sentia tão fisicamente as imagens que tinha durante o sono.

A reação dessa vez era atípica, mas Aberash conseguia estipular o motivo, e era baseado nas certezas apresentadas antes: magia, palavras e a combinação dos dois. Com as selecionadas ali, era a primeira vez em séculos que aquele palácio recebia um número tão grande de bruxas, e a força mágica delas estava claramente travando uma batalha contra a atmosfera hostil que centenas de anos de palavras de ódio e medo sobre a magia haviam criado entre as paredes da residência real. Embora não fosse possível sentir esse choque conscientemente, o inconsciente de todos os bruxos ali deveria estar captando o que estava acontecendo. Aberash andava tendo seus próprios sonhos turbulentos, mas já passara por épocas piores, então pouco se incomodava. A questão é que aquilo não era sobre ela. Seu papel ali era respaldar todos os personagens principais para que pudessem cumprir suas partes naquela trama. E era exatamente isso que estava fazendo ao se dirigir às catacumbas do palácio (que com certeza haviam sido completamente esquecidas, senão já teriam sido transformadas em outra coisa) às três da madrugada, contrariando todo seu ciclo de sono. Naquela madrugada, combateria ela mesma a atmosfera odiosa daquele palácio, uma vez que não podia permitir interferências em Aleksei ou nas garotas.

Era muito trabalho para uma bruxa só, e isso era fácil de perceber, mas Aberash não era despreparada ou uma bruxa qualquer. Havia algo nela que a tornava plenamente capaz do serviço, e ela era ciente disso. Era algo antigo, poderoso, forjado a sangue.

Mas cada coisa em sua hora.