"Whatever it takes

'Cause I love the adrenaline in my veins

I do whatever it takes

'Cause I love how it feels when I break the chains."

Whatever It Takes— Imagine Dragons

O salão da casa de Yanna se iluminava sob os lustres antigos, recentemente desempoeirados para o evento. De longe, o ambiente era luxuoso, exalando elegância e calmaria. De perto, era nocivo. Era repleto de olhares de lado, de palavras meio ditas e de segundas intenções, mas Yanna mal se abalava afinal, ela gostando ou não, fora naquele tipo de convivência em que fora criada. Podiam ser águas turbulentas, mas eram conhecidas.

Um evento daqueles só poderia ter sido ideia de seu avô, em sua busca insistente por influência política, entre humanos comuns ou bruxos. Inclusive, aquela festa era profundamente dicotômica, abrigando os membros de uma nobreza conservadora – ainda que decadente – e bruxos de mais alto cargo no coven de que Yanna participava. A garota imaginava o choque seria para a herdeira dos Shwetz descobrir que o garoto alto com que flertava era um dominador de terra extremamente orgulhoso de sua habilidade. Era tão irônico que ela mal conseguia conter a expressão de divertimento que vez ou outra ameaçava espalhar-se por seu rosto.

Fora seu avô, Yanna era a única dos Kazantseva ali. O ocorrido não era surpresa alguma, o velho patriarca nunca permitiria sua família destruída no evento em que justamente tentava reconstruir sua reputação manchada pela mesma. Yanna era a única apta a ser apresentada à sociedade sem causar embaraço, e os olhares reprobatórios do velho que recaiam sobre ela vez ou outra eram prova do quanto ele detestava esse fato. Só decidira comparecer à festa porque seu irmão lhe pedira para não deixar de lado a oportunidade que o avô dos dois estava lhe entregando de bandeja, embora ele não soubesse.

Bebeu um gole rápido do vinho em suas mãos e, largando a taça sobre a mesinha em que estivera encostada, se dirigiu ao grupo de pessoas que conversava ao lado dos músicos, abrindo seu sorriso mais dócil e vestindo sua máscara de dama. Seu avô se achava muito esperto por organizar tudo aquilo pelo bem de sua influência, só se esquecia, em sua mente atrasada, que Yanna era uma líder nata e uma bruxa mais poderosa do que ele jamais admitiria, e poderia ter aquela festa de gente importante totalmente a seu favor. Se o homem lhe negava seu direito natural na administração da empresa da família e do coven, então ela conquistaria seu lugar com seus próprios méritos e palavras.

Sob o olhar levemente surpreso e enraivecido do avô e com um sorriso calmo que antecedia suas palavras certeiras, Yanna começou sua conquista.

*

A noite não estava bonita. O céu estava carregado de nuvens pesadas, prometendo mais neve durante a noite. Não havia sinal da lua no céu, o que contribuía para aquela escuridão massiva que cobria tudo. E mesmo assim, mesmo que não houvesse estrelas para admirar ou sequer algo para enxergar além do metro e meio de visibilidade que a luz da sala de estar provinha para o lado de fora, ainda assim Leena estava sentada no sofá debaixo da janela, olhando para o mundo escuro do outro lado do vidro.

Seu irmão apagara fazia quase uma hora, completamente esgotado depois da reunião do coven. Leena também se sentia cansada, pela reunião e por seu trabalho. Por mais que houvesse pouco movimento, o único caso daquele dia extenuara de uma maneira bem peculiar. Ela, que já detestava com todas as suas forças quando tinham que sacrificar um animal, ainda tivera que usar de toda a sua aura de acolhimento para explicar para a garotinha que seu cachorro amável e protetor estava velho demais e que aquilo era o melhor que podiam fazer. Ela amava aquele trabalho mas, Deus, às vezes era tão dolorido.

Era motivo o suficiente para que Leena já tivesse embarcado no mundo dos sonhos como Niklaus. Sentia todo seu corpo clamando por descanso, mas era como se faltasse algo. Como se ela estivesse esperando por uma última coisa naquele dia comprido para finalmente ir se deitar. Não fazia ideia do que era e nem lhe parecia algo vital, só era... Importante. Estava a ponto de descartar aquele instinto estranho e ir fazer um chá para se botar para dormir quando ouviu um rumor na neve. A figura alva, praticamente reluzindo contra o breu da noite, era de tudo que Leena precisava para saber que sua espera valera a pena.

A loba branca esperava por Leena pacientemente, deitada a alguns metros da porta da casa da garota. A bruxa sentou-se ao lado dela, afagando brevemente a cabeça do animal como um cumprimento e ficou ali, quieta, apenas desfrutando da companhia rara daquela companheira antiga.

Luna, a loba, não era como um daqueles bichinhos que acompanham princesas, em primeiro lugar porque Leena passava bem longe de ser uma. Não. Luna nunca deixara de ser o animal selvagem que nascera, e Leena nunca tentara domá-la. Chamar a loba de amável ou qualquer adjetivo afável seria um exagero, mas, pelo motivo que fosse, ela sempre voltava para Leena em algum momento, e isso era importante. Importante pois, por mais incomum e esquisita que fosse, era uma das ligações mais antigas que Leena tinha, e a presença inconstante do animal era algo com que a garota se acostumara ao longo dos anos.

Alguns minutos depois, Luna levantou-se e foi embora, sem olhar para trás. Leena limitou-se a um meio sorriso, levantando-se também e indo buscar o calor da lareira de casa para esquentar suas pernas praticamente dormentes depois daquele tempo sentada na neve. Ela sabia bem que as visitas de Luna não tinham nada de auspiciosas, mas, dessa vez, ela não pode deixar de imaginar se o mundo e suas coincidências queriam lhe dizer alguma coisa. Ou talvez só estivesse com frio e sono demais para pensar direito. Quem sabe.

*

Victoria geralmente gostava dos ensaios gerais. Mesmo com o nervosismo pesando o ar, as correções feitas com mais urgência e reprovação do que o normal e as repetições intermináveis das mesmas partes, ela gostava daquilo. Gostava de poder assistir todo o espetáculo, de ver seus colegas dançando, de poder usar do palco e de suas luzes sem o peso da plateia sobre si. Geralmente ela gostava daquilo, mas naquele dia em especial estava irritadiça. Veja, grande parte do segredo de tornar aqueles longos ensaios noturnos precedentes da apresentação em algo agradável era poder dançar, e dançar bem, dançar com a graça que sabia ter, com a graça que lhe trouxera aquele papel principal e muitos outros antes daquele. Mas naquela noite a graça se fora e ela se sentia pesada como um saco de tijolos.

A pergunta estava nos olhos de todos, e estava implícita nas correções secas e quase desesperadas do coreógrafo. Se lhe fizessem a pergunta, Victoria mentiria sem nem piscar, com a desenvoltura que adquirira com os anos. Botaria a culpa na falta de sono, no almoço pesado. Botaria a culpa até mesmo nas fases da lua ou na posição de Júpiter no céu, mas a verdade devia ficar tão enterrada quanto possível.

Victoria vinha retendo sua magia há mais de uma semana, e isso estava acabando com ela. Havia uma legião de Caçadores na cidade investigando uma denúncia de bruxaria, e isso fizera cada bruxo dali se esconder em seus disfarces de cidadãos normais. Os covens haviam parado de se encontrar até segunda ordem, a maioria estava evitando até se encontrar casualmente. Victoria não teria problemas em extravasar o poder que vinha acumulando em suas veias em casa, isso é, se confiasse em si mesma para tal. Com tantos Caçadores na cidade, Victoria era bem capaz de deixar aquele sentimento de vingança tão antigo levar a melhor quando liberasse sua magia, já que o ódio que vinha acumulando dia após dia era quase tão grande quanto o poder não utilizado vibrando debaixo de sua pele.

Não podia continuar daquele jeito, não quando tinha que estar tão leve quanto um cisne branco e alçar voo naquele palco. Bastou um olhar rápido para perceber que as portas para entrada da plateia e as portas de saída de emergência estavam abertas, então ninguém suspeitaria se uma brisa momentânea chegasse ao palco. Era tão arriscado que ela mal podia acreditar que ia fazê-lo, mas precisava. Sentia que ia explodir se não se livrasse daquele peso de uma vez por todas.

Sua música começou, e Victoria subiu ao palco ciente de cada milímetro de ar ao seu redor. Sentia-o deslocando-se a cada movimento seu, e depois movia-o à sua vontade. E estava certa, ninguém percebeu. Oh não, estavam encantados demais com a graça readquirida da garota para se preocupar com o ar ondulando e torcendo-se nas mãos da bruxa no centro do palco. Ela, no fim das contas, era a Primeira Bailarina por um motivo.

Victoria era alguém que sorria pouco, por motivos que eram mais do que justos, mas isso não vem ao caso agora. A questão é que Victoria sorria pouco, mas quando pisava em um palco, sua expressão automaticamente se abria em um sorriso. Era um instinto profissional, e ela se fazia convincente. Mas, naquele ensaio, naquele momento, Victoria se sentia a ponto de gargalhar, com o sorriso mais genuíno que já tivera no rosto enquanto se apresentava. Se sentia tão livre, tanto que quase podia esquecer de seus rancores, que quase podia se esquecer de suas dores. Quase.

Quando saltou para o grand jeté, Victoria poderia jurar que tinha o peso de uma pena.

*

Em outra ponta de Aldan, uma bailarina diferente alçava voo em um palco diferente. Para essa bailarina, a plateia estava lotada, e no palco havia só ela, em seu collant branco e etéreo, embalada pela música melancólica e praticamente fúnebre do ato que dançava. Naquela noite, Elizaveta era Giselle, a aldeã que morreu de desilusão por um amor que lhe contara mentiras. Elizaveta pouco se lembrava de quem era, ou de que existia um mundo a esperando fora daquele teatro. Naquele instante, ela se resumia à melancolia e graça de sua personagem, com uma contagem baixinha ecoando no fundo da mente, para não perder o ritmo. Cinco, seis, sete, oito... E um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito...

E era bom, tão bom se deixar ser o centro das atenções, poder se colocar na linha de frente e se mostrar de peito aberto ao mundo, para variar. Afinal, com os anos, Eliza fizera o possível para aprender a se misturar na multidão. Aprendeu a calar aquele seu instinto primeiro de arrumar confusões, mesmo que doesse em seu espírito aventureiro, porque a banalidade, por mais chata que fosse, também era sua melhor forma de defesa.

Naquele palco, Eliza era Giselle, chorando suas mágoas para centenas de pessoas, dançando seu amor perdido com a força de um tornado, embora parecesse tão graciosa como um vento leve, balançando as cortinas brancas da sala de estar, em um fim de tarde particularmente amarelo. Ali, Eliza podia sentir inúmeros pares de olhos em si, e não ficar preocupada ou na defensiva, e sim orgulhosa.

Eliza era Giselle, mas, na vida real, Elizaveta abominava sua personagem. Aquela menininha fraca, que literalmente morrera por descobrir a verdade que seu amor vinha escondendo dela. A verdade acima de tudo, por mais que doesse, era uma das coisas em que Eliza mais acreditava e isso só ajudava no desprezo que sentia pelo papel que interpretava. Mas isso era o que pensava racionalmente, fora do palco, quando a música estava silenciada e suas pernas não estavam executando os mais belos fouettés. Porque, no momento do espetáculo, Elizaveta era Giselle, era suas dores e carregava seu coração partido no peito. Um coração partido muito parecido com o seu próprio, embora o seu tivesse se quebrado por outros motivos, e ela nunca o mostraria para o mundo como estava fazendo com o de Giselle.

*

— Seu cabelo está maior do que da última vez que eu te vi – foi o único comentário de Nikolai quando Aberash abriu a porta do quarto de hotel onde ela estava hospedada – E isso foi dois dias atrás.

— Tive uma apresentação essa noite, esse aqui caiu melhor – respondeu ela, com simplicidade, indicando que ele entrasse.

— E a mídia? – perguntou ele, sentando-se na cadeira perto da janela.

— A mídia acha que sou uma grande adepta ao uso de perucas – disse, sentando-se à frente dele – Pare de fazer essa cara, é só um truque bobo, a maioria dos bruxos que trabalha com entretenimento faz isso.

Nikolai levantou uma sobrancelha, não sabia dessa informação. Era bem curioso, na verdade, gostaria de saber quem seriam os bruxos que a população comum idolatrava. Tão irônico.

— Mesmo?

— Mesmo. Mas, de verdade, é só um truque fácil. O máximo que fazem é mudar os cabelos, a cor dos olhos, o tamanho do cílios... É um limite seguro para usar transfiguração no próprio corpo, algumas pessoas têm talento natural para essas mudanças pequenas... Enfim. Eu poderia continuar falando disso por bastante tempo e está na sua expressão que você gostaria de ouvir, mas não é por isso que veio aqui hoje.

Nikolai concordou, ajeitando-se na cadeira. Há dois dias encontrara-se com Aberash, na casa de Anna, onde estava hospedado até o momento. Fora bem direto, ignorando a surpresa que a cantora lhe causara por ser ela a tal organizadora de tudo. Ela escutara, calada e atenta, e no fim tudo que lhe pedira fora tempo. Não lhe oferecera uma informação, um esclarecimento, e ele teve de engolir a frustação. Agora, porém, não sairia daquele quarto sem uma resposta. Já tinham bastado aqueles dois dias em que quase subira pelas paredes de impaciência.

— Sendo sincera, eu também não sei. A informação que você quer é altamente confidencial, só os Caçadores de mais alto calão sabem sobre isso, e por mais que eu e Catherina sejamos próximas, ela sabe muito bem separar seu trabalho de suas relações pessoais. Então, não, eu não tenho como te dar uma resposta.

— Isso... – Nikolai se forçou a fechar a boca e respirar fundo. Não podia parecer descontrolado – Isso é ridículo. Pra quê me fazer esperar tanto tempo sem poder oferecer nada? Tenho um coven para cuidar, caso queira saber.

— Não posso te dar uma resposta – repetiu ela, sem parecer nada ofendida com a reação dele – Mas posso oferecer um caminho, e precisei desses últimos dias para deixar esse caminho livre. Você, meu caro, irá para o palácio.

— Quê? – Nikolai começava a imaginar se Aberash não tinha alguma coisa errada com sua noção de risco – Me matariam assim que eu pusesse os pés no jardim de entrada.

— Matariam você, Nikolai Ayres, o bruxo líder de um coven. Mas aceitariam de braços abertos Leonid Ayres, o aspirante a Caçador que viu a família ser morta pelos poderes descontrolados de seu irmão gêmeo, e quer justiça.

Por um momento, Nikolai quis contestar aquela ideia maluca. Seus pais estavam bem vivos, seus avós também. Era filho único, e não queria se tornar o gêmeo do mal de seu irmão imaginário, mas... Seus pais, depois que ele se tornara adulto, mal paravam em Aldan viajando por conta do trabalho – e desfrutando bastante das viagens, diga-se de passagem. Seus avós mal ficavam em um mesmo lugar por mais de uma semana, e duvidava que estivessem registrados de maneira oficial. Sua família poderia ser considerada inexistente, pelo menos em documentos... Aí estava, pela primeira vez, a vantagem de ter uma família cigana sem informações nas mãos do Estado. Então o que impedia-o de afirmar ter um irmão? Catherina presenciara ela mesma o que o gêmeo do mal podia fazer.

— Essa é a ideia mais louca que eu já ouvi, e a pior parte é que acho que funcionaria.

Aberash abriu um sorriso calmo, que parecia oferecer todas as garantias do mundo.

— Vou me certificar de que funcione. Catherina lhe dará o braço a torcer se eu for quem te apresentará a ela, mas você precisa ganhar sua confiança, e se esforçar para subir de cargo com rapidez. Como Caçador você terá bem mais chances de alcançar a informação que procura do que eu, só que vai depender da sua capacidade.

Capacidade que ele tinha. Quer dizer, ficara claro que era inferior aos Caçadores de Elite em questão de luta, mas daria um jeito. Tinha alguns truques – mágicos – nas mangas. E outros truques... Sabia lidar com pessoas. Coação, sedução... Usaria-os se precisasse.

— Mas aviso, Nikolai, que se machucar qualquer um deles, da maneira que for, esse caminho pode ser fechado com a mesma facilidade com que abriu.

Nikolai ergue os olhos para Aberash, que o observava, séria. O que diabos tinha entregado por onde seus pensamentos passeavam? Nem ao menos mudara sua expressão.

— Isso é uma ameaça? – retrucou, não conseguindo se conter. Não suportava ser tratado daquela forma, mesmo que merecesse.

— Sim. Sou poderosa e bem treinada. Conheço aquele palácio com a palma da mão. E amo cada pessoa naquele lugar. Não toque neles, a menos que seja com a intenção nobre que eu vi em você no dia que nos conhecemos. Não permitirei que deixe que uma vingança tola lhe impeça de alcançar seu objetivo ou que machuque as pessoas por quem estou arriscando tudo.

Ela não fora rude, nem seca. Falara com calma, mas com uma firmeza que fizera Nikolai levar cada palavra a sério. Sentiu-se até um pouco envergonhado pelo que pensara em fazer, mas enterrou o sentimento logo. O orgulho falava mais alto.

— Em uma semana terminam as viagens para conversar com as selecionadas. Na viagem de volta, passaremos em Loye para resolver algumas pendências, onde convenientemente nosso aspirante Caçador justiceiro fará sua primeira aparição. Tudo certo?

Nikolai assentiu. Percebeu o quão quieto tinha estado durante toda aquela conversa, mas era ele quem precisava ser instruído ali, então fazia sentido. Mais algumas informações depois, ele estava completamente a par de como aquele plano louco se desenrolaria.

— Nikolai, espero que seja um bom ator – disse Aberash, por fim, quando ele já se dirigia para a porta – Um deslize e Catherina vai perceber que há algo errado, e nem o céu nem o inferno irão impedi-la de descobrir o que ela quer. Tome cuidado.

— Quando se vive tanto tempo entre um grupo de atores, Aberash – disse ele, sorrindo diante da lembrança que as palavras evocavam -, seu sangue acaba tendendo naturalmente à teatralidade.

O sorriso que ela lhe ofereceu em resposta, de alguma forma, fez parecer que ela entendia perfeitamente.