"Show me

Who I am and who I could be

Initiate the heart whitin me

Thil it opens properly"

Son — Sleeping At Last

Eram precisamente três e vinte e sete da manhã, e Kira se encontrava sentada em frente à lareira de sua casa, encarando as chamas e debatendo consigo mesma sobre o que fazer em seguida. Aquele fora um dia longo e complicado como qualquer outro, então ela não tinha muita certeza do por que de estar ali, e do motivo daquele impulso estranho tão de repente.

Certo, ela estava mentindo. O dia teria sido como qualquer outro se tivesse se resumido às reuniões na empresa, a tentar diminuir a pilha de documentos em sua mesa, às crises em algum departamento que, de alguma forma, acabavam em suas mãos para resolver, a buscar seu irmão mais novo, Maksim, no colégio e passar um tempo com ele. Nesse ponto, na verdade, tinha sido especialmente bom. Tinham cozinhado juntos, em um hábito que estava quase virando uma tradição na pequena família que eram os dois, e, na opinião dela, tinha feito o melhor bolo de chocolate da vida dela até o momento. O jantar havia sido tranquilo, com um quase clima de comemoração sem causa aparente, e Kira estava muito satisfeita com aquela noite comum de quinta-feira... Até o problema ter, literalmente, batido em sua porta.

Aconteceram muitas coisas no momento em que Kira abriu aquela porta e deu de cara com Anya Orlova. Seu primeiro instinto foi xingar, mas, graças aos deuses pagãos, o choque a impediu de falar alguma coisa. Em vez disso, respirou fundo, checou se Maksim já tinha dormido e saiu da casa para falar com líder do coven que, anos atrás, fora chefiado por sua família. E, sim, fazia um frio de -3ºC e Kira tinha pegado um casaco fino demais para a ocasião, mas nem morta que deixaria aquela mulher pisar em sua casa. Talvez não fosse culpa dela, mas Kira sinceramente não dava a mínima. Naquele caso, ela se sentia no total direito de odiar.

— O que você quer? — disse, seca. Anya lhe lançou um olhar torto, que traduzia claramente a tensão ali, e respondeu:

— Olha, em primeiro lugar, eu também não sei. Foi uma decisão do Conselho, e eu sinceramente achava que qualquer uma seria melhor que você, mas...

— Espera. — Kira teve que interrompê-la. Já sabia onde aquela conversa iria chegar, e ela não queria ouvir. Justo naquele momento, quando tudo estava estável? — Você não pode estar falando sério.

— Estou. Você foi escolhida para ir à Seleção do czareviche. — disse ela, e Kira conseguia ver o sorrisinho que Anya estava segurando, ao vê-la engolindo seu desespero com aquela situação — Vá à reunião do coven de amanhã, lhe passaremos todas as instruções.

— Não.

Anya, que já estava indo embora, voltou a encará-la, e sem que a outra abrisse a boca, Kira já sabia a ameaça que estava por vir. Ela só não estava preparada para quem se dirigia a advertência.

— Como está Maksim? — Kira sentiu um peso gelado caindo em seu estômago — Me preocupo, sabe, com ele sozinho nessa casa... Você deveria arrumar alguém para ficar com ele quando você está fora. Sabe como é, essas crianças inventam de fazer coisas idiotas. Um minuto de distração e ele poderia se queimar tentando cozinhar alguma coisa...

— Sai daqui. — Kira não se importou com o sorriso vitorioso da outra ou com seu momento de fraqueza. O melhor que podia fazer naquele momento era impedir a si mesma de partir aquela desgraçada no meio — Eu vou na porra da sua reunião, agora some da minha frente. Agora.

E, assim, Anya se foi.

E, por isso, ali estava Kira, encarando as chamas em sua lareira. Considerando se deveria resgatar o poder que vinha restringindo, para se proteger no palácio cheio de gente que a mataria em dois segundos, e para proteger Maksim. Sua magia se agitou feliz diante da ideia, e ela quase cedeu.

Mas as memórias voltaram.

E Kira decidiu, não pela primeira vez, apagar a lareira e aquietar suas ideias.

*

Katherine não conseguia respirar.

Encolhida perto de uma árvore, mal sentia o gelo do chão passando por suas roupas e gelando sua pele. Na verdade, estava em um limbo estranho entre não conseguir sentir nada ao seu redor e sentir tudo em seu interior se revoltando com a força de um terremoto, tão forte que parecia interromper a circulação de ar nos seus pulmões.

Agora sentia-se estúpida por ter fugido tão abruptamente. Precisava de ajuda, queria gritar por ajuda, não conseguia articular uma palavra. Parecia que ia morrer, e sentia isso como uma certeza gravada em seus ossos, por mais que não fosse verdade. Fazia anos que tinha uma crise tão forte, e tinha se esquecido do quão destruidora a sensação era. Quer dizer, tinha um motivo, e era bom. Era perfeitamente razoável que ela estivesse naquele estado depois da responsabilidade que haviam jogado em suas costas, e era perfeitamente razoável que estivesse tendo dificuldades em processar a informação. Lógico que era. Mas esses pensamentos, é claro, só passaram pela cabeça de Katherine depois. Porque, naquele momento, seus pensamentos eram uma massa difusa e alta. Parecia que a garota tinha um megafone dentro da cabeça, e não conseguia respirar. Inferno, como se fazia para respirar?

Eu vou morrer. Socorro. Socorro. Socorro. Não consigo respirar. Vou sufocar. Alguém? Alguém me ajuda. Socorro. Como. Se. Respira. Preciso de ajuda. Não. Não, vai ser pior se alguém me achar assim. Vai? Ar, eu preciso de ar. Morrer. Vou morrer se não fizer alguma coisa. Mas, o quê? Meu coração está muito rápido.Eu ainda não consigo respirar. Socorro. Socorro. Pai. Pai?

Katherine ainda sentia como se estivesse se afogando, mas agora sentia algo mais. O calor das mãos calejadas e familiares de seu pai, que a encarava e parecia estar falando alguma coisa. No começo ela não conseguia entender muito bem, mas a voz dele foi ficando mais clara com o passar dos minutos. Era uma conversinha boba, mas que estava sendo efetiva em distrair a bruxa dos sintomas da crise que, pouco a pouco, foi se aquietando.

Katherine já conseguia respirar. E, não, não iria morrer. Percebia, só agora, que estivera chorando e que estava tremendo de frio, o que seu pai claramente percebeu, ao levantá-la do chão e abraçá-la, embrulhando-a em seu sobretudo quente. Depois de uns minutos assim, ele finalmente falou:

— Melhor?

Katherine se limitou a fazer que sim com a cabeça, sentindo-se esgotada da montanha russa emocional pela qual tinha passado.

— Não suma assim, Kat — e, embora ela soubesse o quão preocupado ele devia ter estado, seu tom não era acusatório — Eu sei que é muita coisa para entender, mas, agora mais do que nunca, você precisa deixar que te ajudem. Pela primeira vez desde que você é uma garotinha eu fui chamado para uma reunião desse coven, e isso significa um milhão de coisas, mas a principal é que eu posso e quero estar aqui para te apoiar nessa missão que te deram.

E Katherine achou aquilo lindo, claro. Ter o carinho e proteção do pai significava o mundo para ela, mas, naquele momento, ela sabia que não era suficiente. Afinal, ela iria sozinha para o palácio. Só, sem qualquer pessoa conhecida. E, depois de ter sido engolfada pela ansiedade mais uma vez, duvidava profundamente de que era capaz de se virar contando somente consigo mesma.

— Eu sei, pai. E obrigada — disse, tentando achar as palavras certas para descrever a insegurança que sentia — Mas eu não acredito em mim da mesma forma que você acredita.

— Pois deveria. Te escolheram por um motivo, Katherine. Não entendo nada da política de bruxas, mas entendo de gente, e você é um tipo digno de nota. Esse mundo precisa de mais amabilidade, e aquele palácio deve precisar com urgência de um pouco de bondade genuína.

— Isso não parece muita coisa, pai.

— Mas é, e eu rezo para o dia de você perceber isso chegar depressa. Enfim, por hora o melhor que eu posso fazer agora é te levar de volta para aquela reunião. Acho que você precisa ouvir mais algumas explicações sobre seu papel, não?

Katherine achou alguma força para sorrir. Realmente, gostaria de algumas explicações. Quanto mais soubesse, mais firme seria o terreno desconhecido em que estaria pisando, e ela precisava disso, depois da destruição que seu terremoto interno causara.

*

Existem pessoas que são capazes de acolher os outros sem nem perceber. Pessoas que, sem intenção alguma, convidam quem está ao seu redor a se aproximar, a tentar uma conversa. E, é claro, existem as pessoas que inspiram o completo oposto. É claro que o mundo não é tão preto e branco, mas não há interesse nas nuances entre os extremos, não quando se trata de primeiras impressões, e é disso que estamos falando. Enfim, há pessoas que naturalmente repelem a aproximação dos outros. Transmitem agressividade, tristeza, frieza. Basicamente, os sentimentos que ninguém quer. E Evelina se encaixava perfeitamente na última característica de “pessoas não-aproximáveis”.

Era normal, na verdade. Evelina sabia bem o efeito que sua maneira de ser tinha nos outros, e já estava acostumada. Naquele dia, porém, ela sentia os olhos a seguindo a todo canto que ia, e mal trocara meia palavra com qualquer um, até aquele momento. Era uma prova bem concisa de como os outros a enxergavam.

Quer dizer, é lógico que esperava aquela reação, afinal seu rosto estivera em todas as telas do país na noite anterior, quando havia sido anunciada como uma das garotas que participaria da Seleção. Entendia, também, que seus colegas de trabalho estivessem permanentemente cochichando sobre o assunto. No fim das contas, quem esperaria que a mulher fria e desinteressada em relacionamentos se inscreveria — passando, ainda por cima — na Seleção? Ora, eles estavam certos. Se a escolha fosse dela, nunca que Evelina entraria naquele jogo idiota, mas o ponto era justamente que não fora uma decisão sua.

Enfim. Ela sinceramente não ligava para os cochichos, para os olhares e para as especulações. Fora escolhida para representar seu Coven e daria seu melhor para desempenhar seu papel direito. Mas isso era uma questão para pensar mais tarde, já que ela tinha uma aula para dar.

— Bom dia — disse logo que abriu a porta, para que os alunos tivessem tempo de pararem com suas conversas — Vamos continuar o Concerto em Mi. Quero ouvir um de cada vez antes de tocarem todos juntos. Natasha, você primeiro.

Evelina observou a garota tocar, e mais dois alunos depois dela. Esperaria que todos os cinco adolescentes tocassem, mas eles estavam tão ridiculamente distraídos que não valia a pena continuar.

— Parem. — Evelina suspirou, puxando uma cadeira para sentar-se na frente deles. Podia ser fria, distante e mais um monte de adjetivos gélidos, mas era uma boa professora, e se importava com aqueles alunos. — Eu entendo que vocês tenham um monte de perguntas e que estejam distraídos, mas isso não deveria afetar na música, de maneira alguma.

— Você pode responder nossas perguntas, então? — sugeriu Egor, e ela conseguia ver o atrevimento brilhando nos olhos dele. Talvez eles estivessem vendo o lado amável dela demais ultimamente.

— Na verdade — disse, tendo uma ideia de última hora — Vamos tornar isso em uma lição. Como eu estava dizendo, não importa o barulho que esteja ao seu redor, isso não deveria afetar a música. Os problemas e os burburinhos podem e devem influenciar no jeito de tocar ou na maneira de se relacionar com a canção, mas nunca atrapalhá-la. Isso, claro, se vocês querem algo sério com música.

Os alunos estavam claramente confusos sobre onde ela queria chegar com aquilo, mas ela continuou o que queria fazer, pegando um dos violoncelos guardados no fundo da sala e sentando-se novamente na frente dos alunos.

— Muito bem, façam suas perguntas. Todas. Sem parar, e se eu errar alguma nota, eu respondo. De acordo? — quando eles anuíram com a cabeça, ela começou a tocar. Precisava admitir que ficou impressionada com a quantidade de perguntas que aqueles cinco adolescentes estavam atirando nela sem parar, mas não era o suficiente para distraí-la. Música era seu porto seguro, e nem as perguntas mais indecorosas a distrairiam da única coisa que conseguia derreter seu gelo exterior. E, assim, Evelina ganhou aquela aposta, para a felicidade de seu espírito de competidora.

Voilá. Se eu consigo, vocês conseguem também. Toquem todos juntos agora, por favor. Ah, e, não, Serguei, eu não me casaria usando uma vestimenta tradicional — disse, pelo bem de alguma ironia naquela situação tosca — Não acelere o tempo dessa vez, Hazel. Vamos, podem começar.

Quando os cinco começaram a tocar juntos, Evelina não tinha mais nenhum olhar sobre si, e isso era perfeito. Até “rainhas do gelo” precisavam de calmaria de vez em quando, e se a dela era uma sala pequena, ao som de violoncelos quase em sincronia e algumas notas fora de lugar, era o suficiente. Só esperava que não fosse seu último instante tranquilo até entrar pelas portas do palácio.

*

Se perguntassem à Lara de cinco anos atrás se ela se imaginaria no lugar em que estava agora, ela precisaria de uma dúzia de chutes e muita sorte para acertar. Digo, o escritório de sua casa não era um lugar tão estranho, mas a situação...

Era natural para ela querer contestar tudo o que estava acontecendo. Lara Anadyr não baixava a cabeça para as ordens dos outros sem um bom motivo, nem caía em padrões sem contestá-los antes, então ela entendia o estranhamento geral ao seu esforço em convencer todos de que ela era a escolha certa para tomar a frente de seu coven e participar daquela Seleção.

Não precisava que os outros entendessem, bastava que ela soubesse seus motivos. E, por Díos, como era difícil correr daquele destino que a cercava por todos os lados. Parecia que vinha fugindo dos caminhos que queriam lhe apontar desde que se entendia como gente e, embora, não gostasse de admitir, ficava cansativo depois de anos tentando lutar pelo que realmente lhe importava.

E, uau, conseguira mais uma vez. Arrebentara uma rachadura na caixa de obrigações não requeridas que começava a enclausurá-la, e era irônico que a saída caísse justamente no plano da realeza, algo de que ela também costumava fugir.

Ficara feliz, a princípio. Conseguira, afinal, e sabia que faria seu melhor para cumprir as expectativas que ela mesma levantara, mas os dias foram passando e, com eles, vieram algumas pequenas inseguranças. Não tinha medo do futuro e costumava encarar o que viesse de peito aberto, mas ela continuava tendo suas dúvidas como qualquer outra pessoa normal teria. Quer dizer, e se estivesse jogando seus sonhos fora por uma escolha precipitada? E se aquela saída representasse, justamente, o selamento de um destino que ela renunciava com todas as forças, sustentados pelos três pilares da infelicidade, como ela costumava chamar: realeza, covens e burocracia. Tudo aquilo implicava em falta de liberdade, e Lara tinha certeza que era nova demais para renunciar às possibilidades que ainda não explorara ainda.

Sentada no escritório de seu pai, Lara se encontrava perdida em suas divagações. Esperava pela chegada do representante real, responsável por aquela Seleção toda. Imersa em sua própria linha de raciocínio, nem chegava a ficar impaciente com a demora, mas havia outra pessoa naquela sala que estava.

— Que horas eles marcaram mesmo, Lara? — perguntou Dante, deixando de caminhar pela sala para se sentar sobre a mesa diante da cadeira em que ela estava sentada.

— Você tem que ser mais paciente, pequeno gafanhoto — comentou ela, abrindo um sorrisinho para o irmão mais novo. — Por que tanto nervosismo? Sou eu quem vai ser entrevistada aqui.

— Eu sei, sua filósofa meia boca — retrucou ele, e Lara quase respondeu de volta. Afinal, era uma filósofa de ótima qualidade — E você deveria estar nervosa, é senso comum. Pode não ser o czareviche, mas é a primeira impressão que você vai passar para a família real, e você parecia bem empenhada em se dar bem nesse negócio.

— Eu vou me dar bem, Dante. A calma é o segredo para ter sucesso nas coisas. Quero ver como você vai se sair em entrevistas de emprego com essa pressa toda.

— Já me saí perfeitamente bem, ou você se esqueceu da exposição minha que contrataram? Aliás — disse, descendo da mesa e indo em direção à porta — tenho um quadro para terminar. O representante não deve demorar muito mais, e seus pensamentos estão te fazendo uma ótima companhia.

— Estão mesmo. Boa sorte, meu pintor favorito com nome de escritor.

— Isso foi específico demais para ser um elogio, Lara. — respondeu, já fechando a porta — Boa entrevista.

Alguns minutos depois, bateram na porta e dessa vez ela sabia que não era seu irmão com uma provocação na ponta da língua.

Lara não estava nervosa. Não, não estava. Mas se perguntava o quanto aquele responsável revelaria sobre como aquela Seleção se desenrolaria. Ela bem sabia que a realeza nunca escolhia seus representantes de maneira aleatória, e eles sempre mostravam muito sobre o evento ou pessoa que representavam. Seria humano e preconceituoso? Bruxo e moralista? Mente fechada? Frio? Extrovertido?

Quando Lara abriu a porta para dar de cara com uma mulher jovem, negra, com uma aura de calmaria e a capacidade de fazer a magia nas veias da Anadyr saltar em reconhecimento, ela teve certeza de que aquela Seleção seria muitíssimo interessante e não tão óbvia quanto ela imaginara.

*

Damian Kostroma era muitas coisas, e ser pai era uma das que mais amava. Tinha seus mil e um defeitos na hora de demonstrar esse amor, tantas vezes desejava poder ter feito diferente, mas, ainda assim, era um sentimento puro e inegável. E, por causa desse sentimento, é que fora tão difícil ver seus filhos crescerem naquele palácio. Era tudo lindo e maravilhoso, suas crianças se desenvolvendo com o privilégio único que tinham, prometendo ser dez vezes melhores do que ele ou a esposa, esperando mudar o mundo... Até o momento em que pisavam nas reuniões e nos bailes e Aleksei e Catherina se tornavam os alvos da nobreza interesseira.

Seus filhos suportavam olhares gananciosos a tempo demais. Cada um com sua própria batalha, Catherina por ser mulher numa cultura com pensamentos arcaicos que não saíam da cabeça das pessoas com facilidade, e Aleksei por ser o herdeiro. E ele não podia fazer nada, era parte daquele ambiente, a consequência por todas as dádivas que lhes eram oferecidas.

Depois que tinham crescido, Damian passara a ficar mais tranquilo quanto a essas preocupações, já eram adultos e sabiam erguer suas barreiras, mas, naquele fim de tarde durante a reunião do conselho, a indignação antiga se agitava dentro dele.

Aleksei era quem falava, pragmático como esperado e inovador como sempre. Os conselheiros o miravam com olhos de coiote. Não se davam conta de quão óbvias eram suas intenções? Bajulando o herdeiro, tentando ganhar sua confiança para poderem manipular seu governo quando Damian deixasse o trono. Os líderes se renovavam, mas as intrigas políticas continuavam exatamente as mesmas, era ridículo. O Czar não deveria se preocupar com Alek, o rapaz sempre fora habilidoso em identificar as intenções reais das pessoas, e Damian tinha se certificado para que desde criança soubesse ser cauteloso com suas relações, mas era um instinto paternal forte demais para que conseguisse aplacá-lo racionalmente.

A reunião acabou, os nobres conselheiros deixaram a sala, e Damian relaxou na cadeira. Mal reparara em seu estado de tensão, fazia tempos não ficava desse jeito, recorrente quando Cat e Alek ainda eram crianças. Com a Seleção e tudo que a envolvia se adicionando a rotina de trabalho, o Czar sentia as emoções à flor da pele, mais estressado do que o normal. Esperava não perder cabelo nessa “brincadeira”.

Levantou os olhos, se deparando com o czareviche ainda sentado — ou melhor, agora esparramado — em sua cadeira. Aleksei parecia recuperar o fôlego, assim como Damian estava fazendo. Se aquilo estava sendo estressante para o Czar, imagine para seu filho. O garoto não parara de trabalhar por um minuto sequer, e Damian duvidava que sua mente andasse pacífica, as olheiras que começavam a se pronunciar eram a prova disso. Pensando nisso, uma onda estranha de saudade inundou o governante de Aldan. Saudade da criança que queria atenção de vez em quando, entre um dever e outro, para contar a história nova que aprendera, para pedir para brincar um pouco ou que simplesmente queria um pouco de colo. Fazia anos que Aleksei deixara de precisar de Damian por perto, e, de repente, isso parecia mais real e dolorido do que nunca.

— Aleksei — chamou, impulsivamente. O czareviche levantou a cabeça – estivera tombada sobre o encosto da cadeira – com um olhar profundamente sonolento.

— Senhor.

— O que vai fazer agora? — Damian sinceramente não fazia ideia de onde ia com aquela conversa, só sentia uma vontade tremenda de ficar com Alek por um momento, sem ter que ter um motivo político para isso.

— Dormir é minha maior fantasia no momento — respondeu, com um sorriso torto — Mas provavelmente vou tentar resolver o problema da estação de trem abandonada em Meleuz. Por quê? Precisa de algo?

— Na verdade, — disse Damian, se levantando. Tivera uma ideia — ia sugerir uma pausa da política. Não posso deixar você entrar em parafuso por trabalhar demais a poucos dias da Seleção.

Aleksei arregalou os olhos. Se nem mesmo o Czar esperava fazer aquele convite, imagine o garoto. Damian não sabia o que faria se Alek recusasse, mesmo que seu filho não tivesse realmente muitos motivos para aceitar. Apesar da trégua dos últimos dias, a relação dos dois andava em constante atrito.

— Uma pausa fazendo o que?

— Bom, – respondeu, pesando as palavras para ver que reação teriam em Alek – o vinho português que ganhamos ainda não foi aberto e temos um jogo de cartas abandonado há muito tempo para desempatar.

Damian sentiu o coração aliviar ao ver os olhos de Aleksei brilhando, interessados.

— Podemos apostar?

— O que vai tentar arrancar de mim dessa vez? – perguntou, sério, mas Alek abriu um sorriso vitorioso.

— Burocracia. Se eu ganhar, qualquer problema com contratos, acordos... São todos seus por duas semanas. Se eu perder, fica ao meu encargo. De acordo?

Ambos detestavam a burocracia intricada com que tinham que lidar, então era uma aposta alta o suficiente para dar um gosto competitivo — que Damian tinha de admitir que adorava — ao jogo.

— De acordo. Mas não deveria ficar tão seguro de si, se me lembro bem, quem ganhou a última partida fui eu.

— Acho que sua memória está começando a te deixar na mão, pai. — respondeu Alek, se levantando e seguindo Damian para fora da sala — Mas vou deixar passar porque eu realmente quero provar daquele vinho, e o jogo é uma desculpa excelente.

Pai. Ele dissera sem ironia, frieza ou distanciamento, descontraído, diferente de como tinha sido nos últimos dias. Riam e conversavam sem qualquer trava, como se fossem pai e filho comuns, não um Czar e seu herdeiro. Era tão apaziguador que chegava a doer. Aleksei se abrira para ele com tanta boa vontade que Damian se perguntava por que não fizera aquilo mais cedo e mais vezes. Não conseguia encontrar a resposta.