The Kostroma Dynasty

Movimentações Silenciosas


"Hold your breath

Count to ten, it’s okay to feel so small

Let it out, take it in

And do it all over again"

quiet motions— mxmtoon

Quando um raio riscou o céu, iluminando os jardins envoltos na meia luz de começo de noite, Victoria decidiu que era hora de voltar para dentro do palácio.

Estivera andando pelo jardim leste, que terminava em um penhasco digno de nota. A garota tinha gastado suas últimas tardes em passeios desinteressados pela área que o palácio ocupava. Quer dizer, eram desinteressados aos olhos do guarda que era obrigado a segui-la em suas saídas todos os dias. Victoria sabia muito bem o que estava fazendo.

Verdade seja dita, por mais que ela tivesse algum nível de confiança na palavra de Aberash quando ela prometia que estaria protegendo-as, Victoria não era capaz de ficar tranquila só com isso. Conhecer o terreno em que se está pisando lhe parecia a maneira mais fácil de se sentir um pouco mais segura. E, bom, pelo que tinha observado até agora, as pessoas que arquitetaram a construção da morada da família real também concordavam com isso.

Os tempos modernos trouxeram o problema dos ataques aéreos, mas, para um castelo que foi erguido quando os inimigos só chegariam por terra, o lugar era a fortaleza perfeita. O lado oeste era todo coberto pela floresta original, que terminava em uma montanha que se erguia íngreme demais para representar algum perigo. A parte detrás do terreno terminava em um penhasco alto o suficiente para os muros construídos perto da borda fazerem muito sentido. A base do penhasco era coberta por floresta e pelo rio que corria por toda cidade até quebrar-se em um cachoeira aos fundos do palácio e sumir por entre as árvores, vista que ocupava o lado leste do palácio. A entrada, única conexão direta com a cidade, era bem guardada por muros, torres e, para completar era ali a área de treinamentos dos caçadores, em dois blocos de prédios compridos. Encontrar a bandeira dos Caçadores de Bruxas como uma das primeiras coisas que se vê ao entrar no palácio mandava uma mensagem contundente, de fato.

Olhar para aquele padrão de construção foi bem efetivo em lembrar Victoria de que, não importava quão rico e luminoso era o interior do palácio, as intenções ali eram claras: proteger os que estavam dentro, tendo a possibilidade de atacar os que estavam do lado de fora.

Levando tudo isso em conta, porém, Victoria ainda não conseguia evitar ficar encantada com a beleza de cada canto daquele lugar. O jardim leste, com suas estátuas de mármore, fontes congeladas, e os mosaicos mais delicados que ela tinha visto decorando os caminhos entre os canteiros, em conjunto com a neve que cobria quase tudo, refletindo levemente a luz do fim da tarde, fazia o jardim parecer tirado direto de um conto de fadas. Um cenário perfeito para a cena dos flocos de neve no Quebra-Nozes, pensara, sentindo uma pontada de saudade dos ensaios regulares na companhia.

Teria ficado mais tempo vagueando pelo lugar se não fosse a tempestade que se aproximara de repente, com nuvens escuras e pesadas. Victoria estava se segurando para manter seus passos no mesmo ritmo calmo de antes. Não se prestaria à humilhação de deixar o guarda que a seguira até agora vê-la apertar o passo por medo de uma chuvinha. Mas, verdade seja dita, cada trovão que ressoava e raio que cortava o céu, sentia o coração bater mais depressa, agitada.

Estava tão distraída com sua própria pressa que só reparou na pessoa à sua frente quando estava a ponto de bater de frente com ela. Seu coração, que estava com os batimentos acelerados, pareceu ficar imóvel por um segundo.

— Alteza — ouviu o guarda atrás de si cumprimentar, e lembrou que deveria fazer o mesmo, conseguindo realizar uma reverência graciosa, mesmo sentindo as pernas trêmulas.

Catherina realmente exalava um poder diferente quando estava com o uniforme de caçadora. Caía tão bem nela que era como se tivesse nascido para fazer aquilo, pensou Victoria, sentindo uma onda de raiva se espalhando pelo corpo.

A czarevna cumprimentou os dois de volta com aceno de cabeça e um leve sorriso. Depois ficou olhando para Victoria, como se esperasse algo.

Victoria estava ciente de que aquele caminho em que estavam andando era estreito, e para que Catherina passasse, teria que dar passagem a ela, como o guarda atrás de si já havia feito. Nada demais. O problema é que sentia como se seus pés estivessem pesados. Inferno, cada nervo em seu corpo pedia para que ela não se movesse, que convencesse a czarevna a entrar de novo, que a segurasse ali para não sair pelos portões para prender e matar pessoas como Victoria.

Mas, bem, tinha que se acostumar com o fato de que agora fazia parte dos que estavam abrigados naquela fortaleza, e deveria obedecer as regras dali. Agora não fazia mais partes dos “outros”. Foi por isso, então, que retribuiu o sorriso da czarevna e deu dois passos para o lado, deixando-a passar.

(***)

Yeva percebeu, surpresa, que devia fazer uns bons anos que não entrava naquela sala. Usara-a bastante no começo de sua estadia no palácio, tentando criar laços na elite, mas, depois que a necessidade disso passara, também deixara de frequentar o lugar.

Fora algumas mudanças na cor das paredes ou de alguns móveis que com certeza seriam antiquados para os padrões atuais, era quase tudo igual. A diferença, na realidade, estava nas pessoas que agora ocupavam os sofás e cadeiras do salão, quer dizer, estavam ocupando até um segundo atrás, quando ela entrara e todas as garotas tinham se levantado para reverenciá-la.

— Sentem-se, por favor — pediu a Czarina, abrindo um sorriso terno — Desculpem por interromper a tarde de vocês, mas já era hora de cumprimentá-las pessoalmente.

Era claro que a maioria delas não sabia o que fazer, inquietas. Como começar uma conversa com a governante do país?

Yeva se sentira da mesma maneira quando conhecera a mãe de Damian, Evgenia. Na época sentira-se pequena como uma formiga. O primeiro encontro fora turbulento, estranho e desconfortável. As coisas se ajeitaram depois, mas Yeva gostaria de não passar a mesma primeira impressão para as vinte mulheres sentadas ao seu redor, lhe olhando em expectativa.

— Bom, devo confessar que não vim aqui me apresentar, somente — começou, decidindo que o melhor era ir direto ao ponto — Como sabem, teremos um grande evento daqui a cinco dias, e creio que já estão cientes de que participarão de tudo.

Elas assentiram, como Yeva esperava. A Ouvidoria já era uma tradição conhecida de Aldan, e poderia apostar que muitas delas já haviam tido participação ativa no evento, enviando elas mesmas sugestões e críticas ao governo.

— Muito bem. Como a Ouvidoria não é um simples evento social, será necessário que façam mais do que manter conversas agradáveis com os convidados. Claro, é essencial que seja mantido um clima de cordialidade, mas a intenção principal é que vocês conversem com as pessoas, vejam se elas tem algo a dizer, se os pontos levantados por elas batem com o de outra pessoa, e fazer com que se falem, formando grupos de discussão sobre o mesmo assunto — parou por um momento e, depois de averiguar se elas estavam acompanhando, continuou — A família real e a nobreza ficará no auditório do começo do evento até à noite, para ouvir os representantes de cada cidade, então não poderemos auxiliá-las.

— Mas… Perdão, Majestade, teremos alguém nos auxiliando, não? — perguntou Abigail Rodríguez, justificavelmente nervosa com o tamanho da tarefa.

— Sim. Parte da nobreza prefere estar do lado de fora. O auditório não é grande o suficiente para todos, então normalmente só ficam ali quem tem cargos de liderança ou herdeiros e aprendizes para algum título ou cargo. A srta. Tigist também estará envolvida, ela vem trabalhando na Ouvidoria há anos, e, como uma das administradoras da Seleção, estará especialmente voltada a ajudá-las.

As garotas pareciam um pouco mais tranquilas, mas Yeva percebia uma tensão estranha na sala. De fato, vinha sentindo isso desde quando entrara na sala. Nunca vivenciara nada como uma Seleção, então desconhecia que tipo de relações teriam, mas estava esperando alguma competitividade entre elas. Aquilo parecia diferente, contudo.

— Acompanho a Ouvidoria há muitos anos, vim pessoalmente no ano passado com minha família — se pronunciou Lara Anadyr, parecendo pesar bastante o que queria dizer — É um evento excelente, não me entenda errado, só me preocupa realizá-lo nesse momento… Quero dizer, há segurança o suficiente para isso?

Yeva suspirou, entendendo o problema. Era nessa situações que o tamanho do improviso que era aquela Seleção ficava óbvio. Lógico que não era um bom momento. A Ouvidoria se baseava em, literalmente, trazer a população para dentro do palácio e dar-lhes espaço para expor os problemas que estavam tendo em sua províncias. Com o país no estado tenso em que se encontrava, a possibilidade de terem discussões mais acaloradas que o normal e explosões de violência era real.

Tinham pensado em cancelar por completo o evento presencial, e manter a coleta de informações virtualmente, até realizar as conferências via vídeo. Damian e metade do Conselho tinham sido contra essa estratégia. Fazê-lo era anunciar que a situação estava fora de controle, quando aquela Seleção e tudo que a rodeava era para fazer parecer exatamente o contrário.

Yeva também detestava que aquele fosse um dos primeiros grande eventos das garotas. Mal tinham tido tempo para se acostumar com sua estadia no palácio e já estavam sendo jogadas em um dos eventos mais difíceis do ano, que consistia em ter a mais fina diplomacia do começo ao fim. O desastre parecia escrito, mas Yeva não podia deixar isso transparecer para as mulheres à sua frente de maneira alguma.

— Duplicamos a segurança do evento, os Caçadores também estarão agindo como guardas dessa vez — por algum motivo, Yeva sentiu que isso não as acalmou tanto quanto ela esperava — A Ouvidoria é realizada há mais de noventa anos, sem falta. Não há registros de problemas sérios, e prometo que estamos preparados para interromper qualquer imprevisto. Se concentrem em se conectar com as pessoas e auxiliá-las, e tudo acabará bem.

Houve um murmúrio de concordância, e Yeva se deu por satisfeita. Tinha total intenção de manter a promessa que fizera, por mais que metade do que aconteceria estaria fora de área de ação.

Tendo finalizado sua tarefa como governante, Yeva começou sua segunda tarefa: conhecer aquelas mulheres, e fazer o possível para deixá-las confortáveis. Sabia bem o que era adentrar na imensidão que era aquele palácio e suas regras sem ajuda ou guia, e não pretendia deixar o mesmo acontecer com elas.

— Muito bem, tendo finalizado isso — começou, abrindo um sorriso — Como está a estadia de vocês? Já se cansaram de ter tempo livre?

O burburinho estupefato e animado que recebeu em resposta lhe mostrou que tinha acertado no assunto. “Graças aos céus a biblioteca é grande.” “Acho que eu não ficava tanto tempo deitada desde… Nossa, nem sei desde quando.” “Não é? Eu estou conseguindo cochilar de tarde. Cochilar”. Yeva riu diante da reação das garotas, entendendo cada uma delas. Só estava um pouco surpresa por aquela parecer ser a primeira vez que conversavam sobre algo assim entre si. Quer dizer, já haviam se passado duas semanas de convivência, meu Deus.

— Posso afirmar que a ociosidade acaba quando colocam uma coroa em sua cabeça — disse, lembrando-se da papelada que a esperava em seu escritório — Me contem sobre seus empregos de antes da Seleção, imagino que tenha sido uma enorme diferença deixá-los para trás.

Conversar com aquelas garotas era se lembrar do tipo de vida que existia do lado de fora daqueles muros e, para Yeva, isso era tão nostálgico quanto perigoso. Teria que tomar cuidado, pensava, ao escutar as mais variadas respostas de todas elas.

(***)

Elizaveta estava parada no meio da sala, forçando a mente a se lembrar de qual era o próximo passo daquela variação quando ouviu as portas abrindo, dando de cara com um figura loira, parecendo igualmente surpresa com a presença da outra ali.

— Ah… Desculpe, achei que não tinha ninguém aqui — disse Katherine Maxeviche, já se virando para sair da sala.

— Fiquei um tempo extra hoje — explicou Eliza — Você queria treinar? Acabo em um minuto.

Katherine, em seu jeito tímido que Elizaveta tinha se acostumado a ver nas últimas semanas, acabou concordando e se sentando no banco no canto da sala de dança.

Iam fazer dois dias que tinham descoberto, pela boca de Yeva Kostroma, um punhado de cantos diferentes do palácio de que podiam usar, e fora um alívio para todas, arrumar mais o que fazer. Havia uma sala de cinema, uma sala de música (essa já tinha sido descoberta por Yanna), um atelier (foi assim que descobriram, também, que a rainha pintava) e aquela sala de dança.

Com três bailarinas profissionais entre elas - todas elas dominadoras de ar, o que gerara uma piada à parte entre as selecionadas -, tiveram que debater horários, para evitar conflitos. Tinham decidido treinar juntas em alguns dias, e tinham horas reservadas para cada uma. Elizaveta sabia bem que já tinha excedido seu tempo, mas não esperava que alguém fosse aparecer, principalmente não Katherine.

— Não sabia que você dançava — disse Elizaveta, puxando conversa enquanto, sentada no chão, desamarrava as sapatilhas.

— Não danço — respondeu ela, sem jeito — Só de vez em quando, em festas, não é nada demais. Queria desestressar um pouco.

— É assim que muita gente começa, não deveria ficar se diminuindo desse jeito.

Katherine balançou a cabeça, rindo um pouco.

— Não sirvo para o palco. Quer dizer, estou dormindo mal só de pensar na Ouvidoria daqui uns dias, imagine uma apresentação, sozinha, diante de centenas de pessoas — ela fez uma pausa, e depois pareceu perceber o que dissera — Desculpe, estou te enchendo com meus problemas.

— De maneira nenhuma — respondeu Elizaveta, sem nem precisar pensar. Verdade seja dita, estivera procurando por uma chance para falar daquele evento com alguém — Também estou uma pilha de nervos. Não sei o que é pior, uma população que provavelmente nos odeio ou os Caçadores que com certeza nos odeiam.

— Sem dúvida a segunda opção — falou Katherine, abrindo um sorriso triste — Eles tem armas e treinamento.

— Com isso eu não posso discordar. Mas, enfim, acho que é normal ficar nervosa, não estamos exatamente em uma situação favorável aqui.

Katherine assentiu, quieta.

Elizaveta tinha que admitir que não gastara muito tempo analisando cada uma das garotas. De algumas só sabia o nome. Algumas tinham ficado gravadas em sua memória pela personalidade forte, explosivas, e outras no exato oposto do espectro, como Katherine, ficavam em sua cabeça como uma interrogação.

— Não é um nervosismo normal, sabe? É do tipo que paralisa. — Katherine suspirou — Eu meio que estava com essa esperança de conseguir me livrar disso enfrentando essas situações desconfortáveis, mas tudo que parece que eu vou fazer é passar vergonha e arruinar tudo.

— Eu acho… — Elizaveta parou, pesando o que ia dizer. Tendia a ser insensível e só perceber depois — Olha, não me parece que o palácio seja o melhor lugar no mundo para evoluir. Pelo menos não para gente como nós. Nesse conto de fadas aqui, se descobrirem nossa verdadeira identidade ganhamos uma viagem para a cadeia, não um casamento feliz.

— Acho que você está certa. Eu só… Não sei, esperava tirar no mínimo alguma coisa para mim mesma dessa situação toda.

Elizaveta se surpreendeu ao perceber que aquelas palavras ressoavam nela, encontrando um eco, um pensamento semelhante. Isso a desestabilizou por um instante. O que diabos poderia ganhar daquela Seleção, além de informações sobre a família real e tensão por estar em um ambiente que odiava o que ela era?

— Talvez seja pouco tempo para decidir se as coisas estão dando certo ou não — disse finalmente, se levantando e sentindo um cansaço que não pesara sobre si até o momento — Sei que não é muita coisa, mas… Podemos começar a Ouvidoria juntas. Eu não dispensaria um apoio para passar por aquilo.

— Eu adoraria! — disse ela, parecendo um pouco menos incerta — Muito obrigada.

— Imagine. Agora vou te deixar sozinha, já lhe atrasei o suficiente.

Elizaveta saiu pelo corredor, tentando manter a expressão neutra. A que pergunta estranha tinha chegado. Mais estranho e ruim era não saber bem a resposta. O que queria tirar daquilo tudo para si?