“Danger will follow me now

Everywhere I go

Angels will call on me

And take me to my home”

Everywhere I Go— Sleeping At Last

— Será que você pode parar de agir como se o mundo estivesse conspirando contra você? — se pronunciou Lara, finalmente perdendo a paciência — Madre mía, não vê que isso não tem nada a ver com covens, artimanhas ou qualquer coisa do tipo?

Rafaela ficou um minuto sem responder, em choque com a interrupção ríspida de Lara. A Anadyr estivera tentando se manter de fora dessa conversa, mas, depois de ouvir a outra falando absurdos um após o outro por longos minutos, não conseguiu mais segurar a língua.

O clima na sala reservada para as selecionadas estava tenso. Quer dizer, estivera tenso desde o primeiro dia. Podiam não estar competindo pelo afeto do czareviche como a mídia estava dizendo, mas havia algo em disputa ali. Era inevitável que as relações ali dentro sofressem as consequências de uma rivalidade tão antiga e presente no subconsciente de todas como a entre os clãs, de um jeito ou de outro.

Era por isso que as amizades estavam se formando devagar. Era por isso que, inconscientemente, no primeiro dia, a sala tinha se dividido, e se mantido assim desde então. As dominadoras de fogo sentavam-se nos sofás ao lado da porta, as dominadoras de água no lado oposto, abaixo das grandes janelas. As dominadoras de terra se encontravam no lado direito da sala, na mesa redonda grande o suficiente para caberem todas as vinte garotas. As dominadoras de ar, por fim, ficavam do lado esquerdo da sala, perto de onde estavam os armários que deveriam guardar jogos e outras coisas ótimas para uma socialização que não parecia muito próxima de acontecer.

Veja, não era como se estivessem a ponto de voar no pescoço uma da outra sempre. Lara não tinha certeza absoluta, mas, pelos olhares e expressões de uma boa parte das garotas, nem todas concordavam com aquela animosidade estúpida. A própria Lara achava isso imbecil, mas… Mas, mesmo assim, havia um senso de proteção ainda mais forte se ficava perto das outras dominadoras de ar, porque tinha certeza de que pelo menos uma coisa tinham em comum. Estavam todas necessitadas de algum tipo de refúgio naquele lugar que era uma armadilha gigante para elas, e esse refúgio seria suas dominações enquanto não conseguissem ligar-se umas às outras de um jeito diferente.

Enfim. A tensão na sala, apesar de constante, agora estava inegavelmente maior. Alguém finalmente falara sobre o elefante na sala, a eliminação dupla, e a discussão não estava bonita. Lara entendia. Lógico que entendia. Quem esperaria que fossem acontecer eliminações tão cedo, com só uma semana e meia de Seleção, ainda mais logo depois do primeiro baile? Era normal que estivessem se sentindo nervosas, mas existia uma diferença entre ficar preocupada e falar quinhentas besteiras por estar se sentido ameaçada.

— Como é? — Rafaela finalmente respondeu, voltando os olhos verdes e ofendidos para Lara — Ah, claro, imagino que saber que sua dominação agora está em vantagem de número deve te tranquilizar o suficiente para não se importar, não é?

“É isso” pensou Lara, incapaz de articular qualquer resposta imediata “Essa mulher é maluca.”

— Você deveria se acalmar — Yanna, que estava sentada do lado de Rafaela, se pronunciou durante o silêncio de Lara, e era claro para qualquer um que, apesar do tom diplomático, a garota estava julgando a outra com força — Se você falar mais alto, os guardas vão te ouvir.

— Você… — ela começou a responder, mas percebeu a altura de sua própria voz e parou. Revirou os olhos e começou de novo — Vocês todas estão muito bem, aí, agindo como se não houvesse nada para com que se preocupar. Como vocês explicam uma eliminação tão de repente?

— Uma conversa ruim, algo terrivelmente ofensivo, um vestido da cor que o czareviche odeia, um formato de nariz de que vossa alteza não gostasse… — Lara começou a enumerar, recuperando a fala, a dramaticidade e a ironia — Qualquer coisa pode ter causado essa eliminação. Qualquer coisa exceto o tipo de magia que Olivia e Isidora manipulavam. Eu sei que é uma situação muito estressante, mas você com certeza ainda se lembra de que o czareviche não faz ideia da nossa condição diferenciada aqui.

— É claro que eu me lembro, não sou estúpida — Rafaela retrucou — Mas só porque o czareviche não é consciente da nossa magia, não quer dizer que isso não possa o estar influenciando.

A reação à frase foi uma exclamação geral.

— Garota, você não pode estar falando sério — falou Virginia, com uma expressão de descrença que refletia bem o que Lara estava sentindo.

— Se começarmos com essas teorias conspiratórias agora, estamos perdidas… — reclamou Evelina.

— E eu acho que até sei qual o motivo real do czareviche ter eliminado aquelas duas… — disse Abigail, em uma observação tímida, mas a frase acabou perdida entre o falatório instalado na sala. A garota não tentou se sobrepor ao rumor e falar de novo, mas Lara ouviu, e manteve em mente que perguntaria o que ela tinha querido dizer.

— Espera, espera, fiquem quietas um instante — disse Leena, conseguindo falar mais alto que o resto e fazer algum silêncio — O que exatamente você está querendo dizer, Rafaela?

— Não é um raciocínio tão difícil — ela falava com uma irritação na voz, como se estivesse fazendo um favor de explicar seu pensamento torto, que estava dando nos nervos de Lara, mas a Anadyr manteve a boca fechada e ouviu — Nós sentimos a magia um do outro, isso é fato. Somos atraídos pela magia dos nossos e sentimos de imediato a diferença de uma magia oposta à nossa. Não é racional imaginar que o czareviche sinta isso também?

Um silêncio caiu sobre elas. A ideia da outra não era tão absurda, no fim das contas.

— Continua não sendo um motivo válido, acho — disse Lara, de repente se dando conta do furo ali — Aleksei não é como nós. Não temos quase nenhuma informação sobre a dominação dele, mas sabemos que é diferente do que qualquer uma de nós faz. Claro, poderiam ter níveis de afinidade e oposição entre a dominação dele e as nossas, mas me parece muita prepotência querer saber como o que ele carrega nas veias funciona.

— Resumindo: para de ver o que o czareviche faz sob as lentes da magia. Não tem fundamento e vai te preocupar à toa — completou Victoria.

Rafaela se deu por vencida, cruzando os braços e se recostando no sofá. Díos, como ela se parecia com uma criancinha mimada. Porém, embora Lara jamais fosse admitir, o que a outra dissera estava levantando ideias tão interessantes quanto preocupantes em sua cabeça sobre a magia de Aleksei. Procurou se distrair com outra coisa. Ir nessa linha de pensamento provavelmente a deixaria paranóica.

Ainda havia uma conversinha fluindo pela sala. Talvez aquela pequena discussão fosse resultar nas fronteiras invisíveis que haviam traçado finalmente começarem a se dissolver. Isso alegrou Lara. Sabia que as coisas demorariam bastante para realmente mudarem, mas aquilo parecia um começo. Queria uma amiga. Passar por aquele processo todo sozinha seria possível, mas lhe parecia cansativo só de pensar.

E, bem, tinha aprendido que o melhor jeito de que as coisas acontecessem era fazendo-as. Assim, Lara levantou-se, cruzou a linha implícita que as dividia e se sentou ao lado de Abigail.

— Então — começou, dando seu melhor sorriso de “oi, desculpa a intromissão, vamos nos amigar” — que tal me contar sobre seu palpite do porque Aleksei eliminou aquelas garotas?

(***)

Yanna não conseguia ficar deitada nem mais um segundo. Vendo que já estava claro do lado de fora e, apesar de ainda cedo, já ser uma hora mais razoável para andar pelo palácio, a garota se livrou das cobertas e se pôs de pé.

O dia anterior tinha sido bom, na verdade. Finalmente os grupinhos tinham começado a se dissolver. O processo ainda estava bem devagar, com uma ou duas garotas se movimentando para conversar com as outras, mas era um começo, e já era tempo de isso acontecer. O jantar fora até mais tranquilo por conta disso, as cordialidades menos engessadas.

O problema, porém, não tinha sido seu dia, e sim sua noite.

Aqueles malditos sussurros. Yanna precisava urgentemente se lembrar de como expurgar fantasmas, não aguentava mais passar a madrugada se debatendo em um novelo de histórias. Não era como se não quisesse saber; queria. Mas, no momento, o número de coisas que estava ouvindo estava em um volume tão grande que ela não conseguia realmente entender nada. Era só barulho. E tudo o que barulho causava eram noites mal dormidas.

Ainda faltavam umas duas horas para o café da manhã, e ela não aguentava mais ficar dentro daquele quarto. A boa notícia é que tinham permissão para andar pelo palácio, e ela tinha um lugar em mente para ir.

A sala de música era um dos lugares mais bonitos daquele palácio. O isolamento era um trabalho impecável, os instrumentos à disposição era tão belos quanto a decoração requintada das paredes.

Yanna não era apaixonada por música, digamos assim. Aprendera a tocar porque era esperado que o fizesse, contribuía para sua imagem prendada e elitizada, mas não podia negar que era tranquilizante segurar o violino nas mãos e tocar algumas canções. Seu professor costumava dizer que ela era uma violinista muito metódica, mas ela não via problema nisso. Gostava da constância da teoria. Talvez não fosse a coisa mais artística do mundo para se sentir, mas ela não era uma musicista, de qualquer forma.

Segurar um violino que não fosse o seu era sempre meio esquisito. Tomou um tempo afinando o instrumento, conferindo com as notas do grande piano preto que ocupava um dos cantos da sala. Depois, dirigiu-se à uma das prateleiras da estante enorme que ocupava dois terços das paredes da sala com livros e partituras, e escolheu uma obra de um compositor de que gostava.

Seus olhos se alinharam às notas na partitura e seus dedos seguiram o que ali estava escrito. Enquanto a música prosseguia, Yanna ia sentindo-se mais calma, desligando-se do barulho que lhe atormentara a noite inteira.

Ouviu a porta se abrir e interrompeu a música com um deslizar desafinado do arco nas cordas.

— Ei, não pare por minha causa — disse o rapaz, fechando a porta atrás de si — Não pensei que fosse ter alguém aqui a essa hora, mas acho que ter mais gente no palácio muda a rotina, não?

— Imagino que sim — Yanna não tinha muito ideia do que fazer. Ficava ali, ia embora…? O rapaz percebeu sua falta de jeito.

— Finn Gleeson, muito prazer — disse, alcançando um outro violino ali guardado, e o afinando com uma destreza que Yanna vira poucas vezes. Tinha um sorrisinho bem humorado no rosto — Você é uma das selecionadas de Aleksei, não é?

— Sim. Yanna Kazantseva — o nome dele soava familiar, mas não conseguia se recordar de onde — Você vai ensaiar? Posso sair, se quiser.

— De maneira nenhuma — respondeu ele, finalmente achando o que estava procurando na prateleira, e colocando a partitura na estante ao lado da de Yanna — Eu costumo ensaiar à essa hora porque é o único horário que eu tenho, mas seria muito mal educado te mandar embora por causa disso. Temos três opções para isso funcionar, então.

— Ah, é? — perguntou ela, achando um pouco de graça da desenvoltura dele — Quais?

— Primeira opção — começou ele, levantando um dedo — você vai embora por conta própria porque não gostou muito da minha presença. Ofensivo? Sim, mas quem sou eu para julgar?

Yanna deu um sorriso, intrigada para ver onde aquilo ia parar.

— Segunda opção — mais um dedo levantado — nós revezamos. Eu toco uma vez, você toca outra e por aí vai. E a terceira, e melhor opção, na minha humilde opinião, é tocar alguma coisa juntos.

— Sinto lhe decepcionar, mas eu nunca toquei um dueto, não sei como fazer isso — respondeu ela com sinceridade, a que ele respondeu com mais um sorriso de moleque.

— Já tinha imaginado isso, você toca seguindo todas as instruções.

— Hein?

— Não tem nada de errado nisso, não me leve a mal. Só quer dizer que esse instrumento é seu hobby, não seu maior amor, e está tudo bem. Mas alguém que ama, que se apaixona por seu instrumento, se sente livre para tornar aquilo seu. Pelo menos sempre foi assim pra mim. — a verdade do que ele dizia brilhava em seus olhos, e era um tanto inspirador — Enfim, tem alguns duetos tranquilos, se você for boa de leitura à primeira vista.

Yanna pensou por um momento, pesando a situação. Finn parecia uma dessas pessoas capazes de alegrar qualquer um, e ela não estava dispensando a distração no momento.

— Tudo bem. — disse — Aceito. Não me responsabilizo por estragar sua prática, contudo.

— O que vale é experiência, não? — disse, e começou a explicar para ela como aquela peça iria funcionar.

Foi bem bagunçado, mas foi uma das vezes em que Yanna mais se divertiu com a música. E teve que dar razão a Finn: ele tocava com uma desenvoltura, um gosto, que ela não tinha nem se propunha a ter. Mas que era bonito de ver, isso era.

Finalizaram quando já era hora do café da manhã ser servido, e andaram juntos pelo corredor até terem que seguir caminhos separados. Logo antes de ele ir, Yanna se lembrou de perguntar:

— O que você faz aqui no palácio? Tenho a sensação de que já ouvi seu sobrenome em algum lugar…

— É porque você já ouviu. Não é para me gabar nem nada — disse, com um sorriso e postura de convencido —, mas eu sou famoso. Membro dos Caçadores de Elite à sua disposição.

Sorte que ele já estava descendo as escadas quando disse isso. Senão teria visto a expressão de Yanna se desmanchar. Teria visto o rosto dela empalidecer e os olhos se arregalarem por um instante. Teria visto o momento de puro medo que tomou conta da garota por aquele segundo. E, mesmo se tivesse visto tudo isso, não teria sido capaz de entender o tipo de alarme que soou na mente de Yanna naquele instante.