The Kostroma Dynasty

Aos Que Deixamos Para Trás


“Over the mountain, across the river, to my hometown

I came looking for you in these backwoods

On the day that the balloon flowers blossomed

I left leaving you with a promise”

Backwoods — BaeHo, versão do Mamamoo

Era estranho ter tanto tempo livre. Na realidade, estranho tinha sido nos primeiros três ou quatro dias. Tinha sido até relaxante, de uma maneira. Agora, porém, Kira já estava quase subindo pelas paredes. Depois de tantos anos carregando a empresa dos pais nas costas, mais de uma vez se deparando com problemas para os quais não tinha resposta, tendo que aprender muita coisa ali, na hora, ela tinha se acostumado ao ritmo indolente do dia a dia. A inércia a que aquela vida no palácio estava obrigando-a a ter era insuportável.

E já que tinha tanto tempo livre para ficar fazendo absolutamente nada, Kira tinha chegado a duas conclusões: a primeira era que, se estivesse em casa, não desgostaria tanto assim de estar sem responsabilidades. Porque estaria junto de Maksim, de Sasha, e gastaria suas horas com eles. Não conseguia imaginar isso como algo ruim.

A segunda conclusão era a de que, se a vida como czarina fosse parecida com aquilo, ela definitivamente não servia para aquilo. Não sabia bem como as funções eram divididas agora. Se os dois governantes de Aldan estavam encarregados de partes iguais de burocracia para cuidar daquele país, então não precisaria se preocupar. Administrar uma nação era bem mais trabalho do que administrar uma empresa. Agora, se esperavam que ela fosse um enfeite e uma dama da sociedade apenas… Faria as malas nesse instante. Aliás, será que esperavam que ela abdicasse da empresa? Haveria um momento em que poderia fazer essas perguntas?

Ficar pensando tanto não estava lhe ajudando. Empurrou o corpo para fora da cama num impulso repentino. Precisava falar com alguém, e precisava que fosse naquele instante.

— Sasha? O quão ocupada você está?

O holograma projetado da lâmina translúcida na mão de Kira exibia a imagem de Sasha, os cabelos presos para trás e usando um terno azul escuro, indicando que estava no trabalho. A mulher abriu um sorriso para Kira.

— Nunca estou ocupada demais para você — mentira, diversas vezes Sasha havia desmarcado compromissos por alguma emergência no trabalho. Kira não tinha o direito nem a vontade de reclamar: fazia o mesmo — Está tudo bem parado por aqui hoje. E então, como está sendo aí? Vi as gravações do baile, achei uma abertura digna para o evento.

Kira teve que concordar, o baile realmente tinha sido algo para encher os olhos - e a revelação surpresa de que o czareviche tinha se infiltrado na multidão fora algo… Interessante. Fizera Kira repensar um pouco o que esperava do herdeiro da coroa. Talvez não fosse tão previsível quanto imaginara.

— Bom, sim. Tudo aqui é lindo, para falar a verdade. Lindo e terrivelmente parado. Estou para morrer de tédio, Sash.

Sasha riu, e Kira sentiu a saudade apertar um pouco no peito. Já estava nostálgica e não fazia nem um mês que estava naquele palácio, credo.

— Imaginei que isso fosse acontecer. Apostei com Maksim que você ia demorar um mês para surtar, ele deu duas semanas — ela deu de ombros — Acho que vou ter que pagar os 50 rublos que eu prometi pra ele.

— Vocês são ridículos — reclamou Kira, rindo — Como Maksim está, aliás?

— Está muito bem cuidado, fique tranquila. — a expressão de Sasha ficou séria por um momento — Anya não deu as caras ainda, acho que por enquanto está tudo de acordo com o que ela espera. Estou atenta, se ela começar a ficar de graça pode deixar que eu mesma cuido dela.

— Não se ponha em risco à toa, não quero ver você comprando briga com um coven de fogo sozinha — advertiu ela, mas, mesmo assim, está muito agradecida pela prontidão da outra. Se não podia estar lá para proteger Maksim, só conseguia ficar tranquila sabendo que Sasha estava em seu lugar — Obrigada, mesmo assim.

— Disponha — o sorriso voltou ao rosto dela — Voltando a assuntos mais felizes, já que você me ligou para se distrair, não para ficar preocupada. Como são as outras garotas? Se deu bem com alguém?

Conversaram por uma boa hora, até Sasha ser chamada para resolver um problema. Depois de desligar, mais feliz, mas ainda em busca de distração, Kira decidiu explorar a biblioteca. Andava passando bastante tempo por lá, e, bem, não havia como culpá-la por isso. Bibliotecas como aquela tinham o ar e a aparência de um conto de fadas, e, para alguém que amava ler tanto quando Kira, seria impossível não se apaixonar pelo lugar.

(***)

Leena ouviu as portas da biblioteca abrindo. Certo, não tinham sido as portas propriamente, porque aqueles blocos maciços de madeira escura eram estranhamente silenciosos. O que Leena ouvira fora o repentino som do lado de fora por um segundo, voltando, logo depois, para a quietude espectral que aquele lugar tinha. Isso no tempo de um abrir e fechar de portas.

A garota, depois de algumas visitas à biblioteca, já tinha escolhido seu canto preferido ali. Era tão grande que raramente se esbarrava com alguém ali dentro, com quatro andares e mesinhas espalhadas por todo canto. Para Leena, o lugar perfeito era no terceiro andar, em uma escrivaninha localizada entre duas estantes, debaixo de uma grande janela. Àquela hora da tarde a iluminação era perfeita, e Leena tinha pegado o hábito de desenhar ali.

Podia desenhar em qualquer canto, claro. O diferencial ali, porém, era ter acesso aos livros com imagens espetaculares. Leena tinha permissão para pegar as obras emprestadas, mas, se podia usá-las ali, preferia fazer assim. Imagine, perder ou esquecer um livro que devia ter mais de 500 anos? Não iria arriscar.

Era incrível descobrir o que aquela biblioteca guardava. Havia obras em todas as línguas e de tempos tão longínquos que pareciam quase uma história. Os livros raros ficavam trancados em uma sala especial. Leena ainda não tinha se aventurado por lá, mas sabia que a grande maioria tinha uma versão digital tão realista que só lhes faltava o peso que os livros tinham. Havia livros em um milhão de línguas, algumas mortas. A garota sabia que havia outra biblioteca, essa de vídeos e filmes dos últimos séculos. Nunca fora particularmente curiosa sobre tecnologia, tanto recente quanto antiga, mas não desperdiçaria a oportunidade de visitar o lugar em algum momento. Aquele palácio estava tão carregado de memória que era impossível não começar remexer em suas próprias lembranças ali dentro.

Depois de dias volteando uma seção específica, Leena finalmente tivera coragem de entrar no lado da biblioteca nomeado “Zhongguo (中果)”, antiga China.

Explorar aquele pedaço de seu passado lhe parecera arriscado, um salto no escuro. Não sabia que tipo de sentimentos iria encontrar em revisitar uma parte de sua cultura, a cultura de sua mãe. Para sua própria surpresa, porém, tudo que tinha encontrado até o momento era um tipo de nostalgia que nunca tinha sentido na vida. A saudade de algo que estava em seu sangue, embora tivesse vivenciado muito pouco. E esse sentimento estava fazendo com que a arte saísse de suas mãos com uma facilidade até assustadora.

Não podia levar - obviamente - tinta para a biblioteca, então geralmente se contentava em fazer os esboços ali e pintar mais tarde, em seu quarto. Tinha começado a tentar aprender a arte tradicional chinesa há uns dias. No começo tinha sido o mais completo desastre. Não importava o quanto se esforçasse, todas as linhas ficavam duras, rígidas. Agora, já estava começando a ter uma fluidez, e não desgostava de todos as pinturas que fazia. Ainda estava estudando a teoria com cuidado, mas estava fazendo mais sentido.

Andava sentindo muita saudade de Niklaus quando praticava. Ele continuava aparecendo em seus pensamentos, em grande parte pela vontade que estava sentindo de compartilhar o que estava aprendendo com ele. Nik não se lembrava tão bem dos pais quanto Leena, e ela vivia fazendo esforços para que ele se mantivesse conectado aos dois. Será que estava praticando o mandarim? Ou tinha esquecido e deixado para lá como sempre fazia? Será que teria interesse em ouvir tudo o que Leena tinha aprendido até agora, e o porque era importante?

Nessa agonia, Leena teve uma ideia. Nunca conseguia falar dessas coisas quando ligava para ele, se preocupava com coisas mais imediatas do que a pintura, a primeira que saíra boa, das montanhas Huangshan que tinha feito. Mas, ora, ligações não eram o único meio de comunicação que ela tinha com seu irmão.

Chegando em seu quarto, colocou o esboço que fazia em cima da cama, e foi remexer no gaveteiro em seu armário. Estava guardando seus desenhos e materiais de pintura - tinham sido oferecidos pelo palácio, e ela mal acreditava que podia usar tintas, lápis e pincéis tão finos - em uma seção de seu guarda roupa, depois de prometer solenemente a Madeleine, a criada que lhe ajudava, que não sujaria nada.

Remexeu entre os papéis e as telas até achar um que desenho que coubesse em um envelope. Era um bem feito até, na verdade, do tamanho da mão de Leena. Gostava daquela pintura, um ramo de cerejeira, todo rosa e preto.

Separou o pedacinho de papel e, pegando uma das folhas de carta em sua escrivaninha, começou a escrever. Não tinha planejado nada do que diria. Se pegou explicando uma história da arte tradicional chinesa de uma maneira meio torta, lembrando o que tinha aprendido nos últimos dias com uns furos aqui e ali. Entre os furos, despontavam as memórias que tinha dos pais, que, como a tinta preta que usava, manchava cada palavra na carta. Finalizou com um pedido pouco sutil para que ele não deixasse de praticar mandarim. Riu consigo mesma um pouco. “Espero que ele esteja praticando mesmo, senão não vai entender uma palavra do que eu escrevi aqui”, pensou, desenhando a última parte do ideograma de despedida.

“有了愛,Leena.”

Sim, com tanto amor que mal podia conter-se de saudades. Conhecendo Niklaus, ele provavelmente veria isso estampado por toda a carta, mesmo que não conseguisse lê-la de primeira. E isso era, de fato, a coisa mais preciosa do mundo.

(***)

Cartas.

Aleksei tinha se esquecido delas. Tinha enterrado a existência delas tão bem que encontrar a pilha fina de cartas, amarradas por uma fita preta num laço torto, tinha lhe causado até uma espécie de susto.

Tinha tentado não abri-las, mas sua resistência tinha sido nada menos do que patética. Alguns minutos depois de encontrá-las, já tinha relido cada uma das cartas ali, e se encontrava, agora, com um peso no peito que achara, inocentemente, que não iria precisar sentir mais.

Em algum momento do noivado com Leonor, Aleksei se dera conta que a amava. Ou achava que amava, pelo menos. De qualquer forma, começou a ensaiar como lhe diria isso. Não confiava em suas palavras, ditas na hora. Então decidiu escrevê-las.

Qualquer outro meio de enviar o que escreveria parecia tolo, incorreto. Em parte porque não estava com muita vontade de receber uma resposta imediata de Leonor. Decidiu que uma carta seria a solução perfeita. Demoraria um tempo considerável para chegar e mesmo que Leonor decidisse respondê-lo no mesmo instante com uma ligação, ele teria tempo o suficiente para processar o que fizera. Ou pelo menos esperava que sim.

Fez várias tentativas. A maioria foi parar no lixo, e aquelas agora abertas em sua mesa eram as melhores. Não tinha o menor jeito para aquilo. Não conseguia olhar para o que escrevia e não se enxergar como um garotinho, coisa mais ridícula.

Na época, contudo, tinha sentido essa animação tímida de tentar expressar um sentimento tão quietamente cultivado. Havia uma espécie de beleza em colocar no papel o porquê da felicidade que vinha sentindo, parecia mais real, assim.

Agora, porém, lembrar dessa felicidade era doído. Estivera ativamente evitando pensar em Leonor e em seu sentimentos por ela, na esperança de que, em algum momento, não precisaria mais fazer força para mantê-la longe de seus pensamentos. Fizera isso tanto para proteger a si mesmo quanto por um respeito pelas vinte garotas que agora ocupavam sua casa. A questão é que tudo que queria no momento era se afundar nas memórias que tinha dela.

— Aleksei? — uma voz familiar soou atrás da porta, e o czareviche foi puxado para fora de sua agonia.

— Abe — cumprimentou, abrindo a porta e um sorriso pequeno — Não imaginei que ia ter ver aqui no mesmo dia em que voltou de viagem.

A garota tinha acabado de fazer alguns shows em uma cidade próxima da capital, e Alek tinha suposto que ela iria querer dormir até o dia seguinte depois da noite cheia. Estava aliviado de tê-la ali, contudo.

— Queria te ver primeiro, não conseguimos conversar sobre o baile e… — começou ela, entrando no quarto sem cerimônia. Parou de falar quando viu as cartas espalhadas pela mesa — Eu interrompi alguma coisa?

— Não exatamente — Aleksei não fez menção de impedir Aberash de alcançar uma das cartas, se limitando a fechar a porta.

A expressão risonha da garota se desmanchou quando ela começou a ler.

— Desculpa — disse, devolvendo o papel no lugar — Não deveria ter lido sem permissão.

— Não tem problema — disse, colocando-se ao lado dela. Aleksei tentou encontrar forças para mentir. Para dizer que estava achando até graça do que escrevera ali. Não conseguiu, e ficou evidente em seu rosto.

— Ah, Alek — Aberash encostou a cabeça no ombro do rapaz e passou os braços em volta dele. O reflexo instantâneo dele foi pender a cabeça para o lado, apoiando-a sobre a de Aberash — Quer conversar sobre isso? Acho que já evitamos esse assunto por tempo o suficiente.

Aleksei respirou fundo. Ter Aberash ali ao seu lado deixava a tristeza em seu coração um pouco menos assustadora.

— Não sei se deveria falar dela, Abe. Não sei nem se consigo.

Ela o soltou e olhou-o bem no fundo dos olhos, como costumava fazer. E abriu o sorriso tranquilo que passava uma confiança capaz de derrubar até as paredes maciças que Aleksei construíra para si.

— Você deve e você pode, Alek. — disse, puxando-o para que sentasse na cama dele — Eu sei, por experiência própria, que mágoa guardada só dói, acumula e se esconde, mas nunca vai embora.

Você guarda mágoa de alguém? — perguntou ele, surpreso.

— História complicada, um dia eu te conto — disse ela e, não pela primeira vez, Aleksei enxergou que, por trás da franqueza luminosa de Aberash, havia algo embaçado e guardado — Enfim. Me fala sobre ela. E não precisa ser com raiva. Pode ser com amor, com todo o amor que eu sei que ainda está aí.

E foi assim que ele fez. Deixou-se afundar nas memórias mais bonitas e felizes que tinha de Leonor. Nem sempre achava as palavras certas, às vezes tinha que parar porque tinha vontade de chorar. Mas aquele novelo de sentimentos foi saindo, fio a fio.

E, no fim, havia mais espaço no peito de Aleksei. As palavras que vinha guardando agora estavam jogadas no mundo e ele tinha espaço para encher o lugar que elas ocupavam com outras, para outra pessoa, de outra maneira.

Percebeu que não seria fácil nem instantâneo. Teria recaídas, ondas de ressentimento e muita saudade. Contudo, parecia que tinha andado mais um passo naquele caminho sem uma direção certa, mas que esperava que fosse bom.

Mais tarde naquele dia, queimou as cartas.