I'd rather choke on my bad decisions

Than just carry them to my grave

You're in my head

Always, always, always

Always — Gavin James

Era um fim de tarde especialmente agradável para a Czarina, o verão finalmente chegava trazendo com ele o vento morno que soprava pelos corredores do palácio. Sentia-se feliz, aproveitando a quietude do fim do dia, sem nenhum assunto político para resolver. Damian voltaria de sua viagem diplomática naquela noite, depois de duas semanas fora, para a alegria do coração saudoso da Czarina. As notícias sobre as colheitas eram todas excelentes, e por todo o país o povo se preparava para celebrar o solstício de verão. Catherina dormia um sono profundo que daria a Yeva algumas horas de sossego. Sua filha era um amor, mas cuidar das maluquices dela estava ficando cada vez mais difícil. Se era assim com apenas cinco anos, a Czarina só conseguia imaginar com o que teria de lidar durante a adolescência de Cat, mas não se incomodava realmente. A vivacidade da garota era algo que Yeva nunca queria ver se apagar.

Ao passar pelos jardins que se situavam no centro do palácio, Yeva avistou Aleksei. Parecia muito concentrado em algo, tanto que nem reparou em sua chegada, e a Czarina não pode deixar de notar o quanto se parecia com o pai quando franzia as sobrancelhas daquele jeito. Na verdade, Aleksei se parecia com o pai em um número considerável de características, mesmo sendo tão novo, mas, de alguma forma, conseguira combinar a seriedade de Damian com o riso frouxo e o gosto por dança da mãe. Era uma criança maravilhosa, tanto que Yeva tinha que tomar cuidado para não mimá-lo demais.

— O que está fazendo, querido? – perguntou Yeva, chegando perto do filho e acariciando seus cabelos castanhos gentilmente.

— Descobri uma coisa nova – respondeu ele, sem tirar os olhos do chão, concentrado em algo que Yeva não conseguia entender bem o que era – Quer ver?

— Claro! – disse ela, agachando-se para ficar da altura de Alek. O czareviche tinha uma visão de mundo bastante peculiar, e Yeva ainda não se decidira se era a idade ou seu jeito de ser simplesmente, mas suas “descobertas” sempre rendiam assuntos muito bem humorados entre ela e o marido.

— Tá. Segura isso aqui pra mim – pediu ele, estendendo uma pedra um pouco maior que a mão de Yeva. Instruiu que ela segurasse a pedra um pouco acima do chão, de modo que os dois pudessem ver a sombra irregular que se formava na grama. Ela fez como ele mandou, curiosa para ver onde aquela história iria parar.

Com tudo pronto, Yeva observou Aleksei esticar a mão e concentrar-se. A princípio, não percebeu nada de especial, mas, de repente, viu um movimento no chão. Sua mão estava segurando a pedra firmemente no mesmo lugar, mas a sombra embaixo dela tremia, se expandindo e diminuindo consideravelmente de vez em quando. E era Aleksei quem estava fazendo aquilo.

– Tcharam! O que achou? – perguntou Aleksei, com um sorriso orgulhoso.

Yeva mal sentiu a pedra escorregando de seus dedos enquanto um arrepio gelado lhe percorria o corpo inteiro. Não. Não, não, não, aquilo não era possível. Não deveria ser possível. Deveria? Tinha a sensação de que toda a sua falecida família ria daquela reviravolta cruel do destino. Talvez merecesse aquilo, mas seu filho definitivamente não merecia. Não, aquela criança doce na sua frente não merecia a crueldade que o mundo prometia lhe dar a partir daquele instante.

— Aleksei, você nunca pode mostrar isso a ninguém. Ninguém, está me entendendo?

O sorriso de Alek deu lugar a um olhar confuso. Nunca falara com ele de forma tão dura.

— Mas, mamãe...

— Quieto. Não discuta comigo. Você não deve e não vai fazer nada assim de novo. Vai respirar fundo, contar até quantos números quantos forem necessários, mas vai trancar dentro de si qualquer vontade que tiver de brincar com algo assim – ver as lágrimas que se formavam nos olhinhos claros de Aleksei estava estilhaçando o coração de Yeva, mas ela não tinha escolha – E nunca, nunca mesmo, conte sobre isso a ninguém. Se sentir algo, venha até mim. Se não me achar, esconda-se até a sensação passar. Você está entendendo, Aleksei? Isso é importante.

Aleksei mordia o lábio inferior para se impedir de soluçar, enquanto anuía com a cabeça. O que estava fazendo com seu garotinho? Num impulso, envolveu-o em seus braços, mentalmente pedindo perdão pelo que fazia, e rezando para ter forças para continuar. Porque, agora sabia, a estrada seria tortuosa. Seus fantasmas do passado não aceitaram continuar enterrados, no fim das contas.

Yeva acordou com lágrimas nos olhos. Damian dormia um sono profundo ao seu lado. Desde o pronunciamento da Seleção, e isso já fazia quatro dias, Yeva não conseguia ter uma noite sequer de sono decente. Pesadelos, memórias, continuavam a conturbar suas madrugadas, e a pior parte é que não se contentavam com as noites, os pensamentos tinham passado a perturbar seus dias também.

Vinha tentando enterrar esses pensamentos obscuros há anos, e, agora percebia com um remorso maior do que era capaz de fazer caber no peito, só conseguira porque Aleksei fazia parecer que estava tudo bem. Só conseguira porque seu filho seguira seus conselhos egoístas e ela se encarregara de cegar-se para qualquer sinal que ele deixasse escapar de que algo estava errado.

E, por Deus, estava tudo tão errado. Errado porque, dias atrás, não tivera coragem para perguntar a Alek o que acontecera, apesar de sua expressão anormalmente apática e seus olhos levemente vermelhos de choro. Errado porque não sabia mais como penetrar a armadura que seu filho criara, ou melhor, a armadura que ela o ajudara a criar. Errado porque observara, sem dizer uma palavra, seu filho concordando em fazer algo que definitivamente o estava fazendo infeliz.

Era verdade que funcionara. Damian, Catherina ou qualquer outra pessoa naquele palácio nunca desconfiara do tipo de força que Aleksei guardava dentro de si. O próprio Aleksei não sabia de muita coisa, já que Yeva o proibira de procurar informações. A czarina também não sabia muito; conhecia técnicas de controle e o básico sobre as dominações dos bruxos, tudo o que aprendera na casa dos pais, quando eles abrigavam um bruxo órfão. Saber de menos lhe dava uma certa paz, no fim das contas.

Estava inquieta demais para continuar na cama. Levantou-se e abriu as janelas, deixando que o ar frio limpasse seus pensamentos, ou ao menos tentasse. Ouviu Damian se remexer na cama, incomodado com o vento.

Yeva? Qual o problema? – perguntou ele, a voz sonolenta e rouca trazendo-a de volta do emaranhado de pensamentos ruins que se formava em sua cabeça.

A Czarina voltou devagar para a cama, ponderando sobre o que deveria dizer ao marido. Embora não merecesse, queria muito ser confortada por um momento.

— Eu não sei, eu... – Yeva respirou fundo. Havia certos níveis de desespero a que ela não podia se permitir a chegar – Ian, você acha que Aleksei tem alguma chance de ser feliz através dessa sua estratégia maluca?

Aquela não era exatamente a pergunta que ela esperara que saísse de seus lábios, mas, na verdade, era um dos medos mais profundos que andara cultivando. A perspectiva de ter condenado, mais uma vez, seu próprio filho a um futuro de infelicidade era como uma pedra de gelo em seu estômago.

Damian arregalou os olhos, parecendo um pouco mais desperto. Com cuidado, envolveu Yeva em seus braços, fazendo-a se deitar ao seu lado de novo.

— Eu não posso ter certeza de nada, Yeva – começou ele, segurando as mãos da esposa entre as suas. As alianças dos dois reluziam sob a luz da lua – Depende muito do quando Aleksei está disposto a se entregar a essa ideia. Mas espero que ele possa encontrar felicidade, senão acho que nunca mais me perdoarei pelo que estou fazendo.

Ele também está com medo, percebeu Yeva, ao receber aquela confissão inesperada. De uma forma estranha, era bom saber que partilhavam das mesmas inseguranças, ao menos algumas delas.

— Acho que tem razão. Mas acho que ele precisará de um empurrãozinho, principalmente depois de Leonor – comentou ela, pensando no que poderia fazer para ajudar o filho, dessa vez de uma forma realmente benéfica. Saber que teria o marido ao seu lado nessa empreitada aquietou seus medos, o suficiente para se sentir um pouco mais leve.

— Leonor? O que ela tem a ver com isso? – Oh, Yeva se esquecera de contar a Damian. Catherina lhe contara isso há poucos dias, e ela mesma tivera alguma dificuldade de acreditar no começo, mas, depois de pensar bem, os sinais haviam estado todos lá, só eram sutis demais para um olhar desatento. O que não deixava de corroê-la mais um tantinho, pois ela, como mãe de Aleksei, deveria ter sido capaz de tal olhar atento.

— Ele era apaixonado por ela, Ian.

Que? A relação dos dois era amistosa, no máximo – retrucou Damian, e Yeva lhe ofereceu um sorriso bondoso, esperando que a informação se assentasse no cérebro do Czar – Ah, não, eu sou um imbecil. Terminei o noivado dos dois sem nem mesmo falar com Aleksei, acho que isso explica porque ele tem parecido tão ressentido.

Yeva soltou um longo suspiro. Ela não era a única ali a ter errado com Alek, e até gostaria de acreditar que ela e o marido tinham cometido a mesma quantidade de erros, mas não podia se enganar dessa maneira. As feridas que causara eram bem mais profundas.

— Vamos ajudá-lo, certo? – disse ela, mais como a afirmação de um pacto do que como uma pergunta.

— Vamos – concordou ele, o olhar preocupado em seu rosto se atenuando um pouco – Tenho que pensar em como deveria pedir desculpas a ele, mas mal tenho certeza se isso é o melhor a se fazer.

Yeva também não tinha certeza, mas lhe aquecia o coração ver Damian se preocupando com o filho daquela maneira, pois era assim que as coisas deviam ser, e teriam sido, se uma série de eventos inoportunos não tivessem se colocado no meio do caminho.

— Eu sei que é difícil, mas você vai pensar em algo – ela lhe deu um beijo rápido, deixando os dedos passearem pelos cabelos escuros dele, brincando com as mechas de cabelo branco que começavam a aparecer – Agora durma, já tirei bastante do seu sono. Algumas soluções aparecem com o sol, sabia?

Ele sorriu, num daqueles momentos de vulnerabilidade que pertenciam a ela e somente a ela. Se tinha feito algumas coisas certas na vida, Damian definitivamente era uma delas, e isso era uma das melhores certezas que Yeva levava no coração.

— O mesmo vale para você – ele puxou-a para perto, descansando a bochecha no topo da cabeça da esposa – Acalme seus pensamentos até o dia raiar, sim? Boa noite.

— Boa noite – sussurrou ela de volta, deixando-se envolver no calor e no cheiro familiar de Damian, permitindo que lhe oferecessem o restante de uma noite tranquila.

Naquela madrugada, não teve mais sonhos.