People who matter don't mind

They don't need all of my time

Somebody told me to light up every room

Make them remember you

But nobody here knows what I'm going through

No they never do

Old Friends — Jasmine Thompson

Após um mês e meio de preparação intensa, faltava somente uma semana para o início da Seleção. O palácio estava permanentemente envolvido em um burburinho animado, cheio de expectativa com a chegada das vinte garotas escolhidas. Era compreensível, raramente recebiam gente nova, especialmente tantas e, com certeza, tão diferentes. Aleksei não se juntara ao coro alegre, mas já não via a Seleção como o fim do mundo. Enquanto o mês passava, a poeira foi baixando, e alguns desentendimentos se resolveram. Embora lhe irritasse um pouco saber que Catherina contara sobre Leonor para o pai e a mãe dos dois, admitia que a tentativa atrapalhada de Damian de se desculpar lhe tirara um peso dos ombros. Não parecia, mas ter brigas sérias com seu pai - afinal estavam sempre tendo pequenas discussões, eram parecidos demais e mexiam com questões delicadas demais diariamente para terem uma relação totalmente pacífica - o deixava inquieto. O volume de trabalho o impedia de pensar na princesa espanhola, e seus amigos se encarregavam de fazê-lo rir de vez em quando. De alguma forma, estava tudo equilibrado, em um estado de quase paz.

E, embora estivesse tudo bem, Aleksei andava pelos jardins que faziam divisa com a floresta aos fundos do palácio, às duas da manhã, sofrendo da mais profunda insônia. As preocupações que tinha eram persistentes, aproveitando-se da quietude noturna para avolumarem-se em sua cabeça. Depois de tantos dias convivendo com a ideia de uma Seleção, Aleksei acostumara-se com o fato de que ela aconteceria, até mesmo começara a acreditar que poderia esforçar-se um pouco para que desse certo, não só para salvar o país, mas para tirar alguma felicidade daquilo tudo. Uma parte sua temia uma reação como a de Leonor por parte das selecionadas, mas não se via tornando-se expansivo e falante da noite para o dia, francamente nem tinha vontade de fazê-lo. Ter um descontrole da "coisa" com uma câmera a cada esquina do palácio seria como jogar uma bomba na paz frágil que estavam tentando manter. Esse, na realidade, não era o problema que o mantivera acordado naquela noite. Convivera com esse impasse quase a vida toda. Não, o problema daquela madrugada lhe parecia muito mais abstrato e sem sentido, mas ainda assim estava ali, andando a esmo no escuro.

Na noite anterior, as selecionadas haviam sido anunciadas para toda a população e para ele, afinal não participara da escolha. Embora tivesse sorrido e tentado fazer comentários bem humorados sobre cada uma das garotas, algo foi se avolumando dentro dele, uma sensação forte demais e pouco comum demais para que ele conseguisse identificá-la perfeitamente. As garotas eram lindas, sorridentes... Não fora à toa que Andrey e Isaach tinham passado a manhã implicando com ele, mas não fora nada disso que o impressionara, não tão profundamente. Aquelas garotas tinham algo nos olhos, como se refletissem muito mais idade do que tinham de verdade. Achava que estava ficando paranóico, eram só um punhado de fotos bem tiradas, no fim das contas. Esperava que se provasse errado quando elas chegassem ao palácio, fossem iguais às moças que ele conhecia, e que esse "mistério" que parecia rodeá-las fosse invenção de seu cérebro ansioso. Enquanto elas não chegavam, ali estava ele, perdendo seu sono.

A luz da lua refletia na neve, tornando o mundo um pouco mais claro para Aleksei, que se esquecera de levar uma lanterna, mas não se preocupara muito com isso, era tão familiarizado com a escuridão quanto era com seu próprio quarto. Preferia não lembrar-se de quantas vezes passara escondido em algum canto escuro quando era criança, sentindo a "coisa" revoltar-se furiosamente dentro dele e esperando que aquilo se aquietasse.

Um ruído quebrou a quietude imóvel e alva do jardim, tirando Aleksei de seu estado pensativo e o colocando em alerta. Da escuridão não tinha medo algum, mas com pessoas deveria ter cuidado. Eram passos lentos, tão distraídos quanto os seus eram há poucos segundos, mas ele não relaxou até visualizar a figura envolta em um sobretudo azul escuro que vinha em sua direção.

— Aberash — disse, à meia voz, chamando a atenção da garota. Mal conseguiu conter o sorriso que ocupou seu rosto. Abe tinha esse efeito instantâneo nele.

Aberash vivia no palácio há muito tempo, desde que fora contratada, aos quinze anos, para cantar em uma festa real. Abe tinha chegado à cidade com um grupo musical viajante, mas acabou decidindo ficar na capital, após ser contratada como cantora para diversas festividades futuras. Já que não tinha nem família nem onde ficar, lhe ofereceram que ficasse no palácio por um tempo, mas esse "por um tempo" acabou se tornando anos e anos, à medida a afeição da família real pela moça crescia. Pouco demorou para que começasse a dar aulas de música por toda a cidade, era um talento crescente. Tinha até tentado ensinar Aleksei e Catherina uma vez, mas ele não tinha aptidão e ela não tivera a paciência.

— Aleksei — respondeu ela, sorrindo de volta — Pensei que seria a única insone nessa noite, qual o seu motivo para estar fora da cama tão tarde, mocinho?

— Os pensamentos gostam de me encurralar a essa hora da madrugada — respondeu, ciente de que ela não pediria por explicações profundas. Talvez por isso se dessem tão bem — E você, não tem uma viagem para fazer logo que o Sol raiar?

— Exatamente. Acabei de arrumar as malas e se dormisse perderia a hora. É mais seguro passar a noite em claro e dormir no avião, já me bastou uma sessão de broncas de Cesar para aprender a nunca me atrasar quando ele está envolvido no compromisso.

Aleksei soltou um riso curto, entendendo o que ela queria dizer. Cesar, um dos conselheiros de confiança de Damian, era um dos principais encarregados por tudo que envolvia a chegada das selecionadas e, se já era pontual normalmente, àquela altura estava ficando histérico. Aberash estivera ajudando na organização também, o que surpreendera Aleksei, já que a garota trabalhava com música, não com política, mas ela se provara extremamente competente, sendo indicada para viajar com Cesar para encontrar-se com as selecionadas a partir daquela manhã.

— Tome conta de Cesar, tenho quase certeza de que o cabelo dele ficou mais branco depois desse mês — comentou Alek, falando bem mais sério do que esperava. Cesar vivera naquele palácio tempo o suficiente para que o czareviche se preocupasse com ele, apesar (ou por conta de?) das piadas de tio e a mania de reclamar dos nós de gravata tortos de Aleksei.

— Tem duas caixas de chá de camomila na minha bolsa, não se preocupe — Aberash parecia saída de um quadro daquele ponto de vista, com a cor forte de seu casaco e o tom escuro de sua pele contrastando com a neve, em um choque de cores que parecia quase planejado — Tem mais algum pedido? Algo relacionado às selecionadas, talvez?

Aleksei se assustou. Será que ela percebera o conflito incomum que se agitava em seu interior? Hum, não. Provavelmente só estava o importunando, como todos os seus amigos.

— Que tipo de coisa eu poderia te pedir, Abe? Você não vai descobrir a personalidade escondida de cada uma delas em meia hora de conversa. — brincou ele, e se preocupou um pouco ao ver que Aberash não reagira nem com meio sorriso. Não que parecesse brava, longe disso, Abe era a pessoa mais calma que Aleksei conhecia. Era bem peculiar, na verdade, pois Aberash era uma pessoa tão reservada quanto ele, mas, no caso dela, escondia seus segredos (quaisquer fossem) debaixo de serenidade e sorrisos fáceis. A doçura dela era bem mais convincente do que a frieza de Aleksei.

— Existem bem mais coisas para se descobrir com um olhar do que com um bocado de palavras, Alek, e você sabe disso — certo, agora ele estava ficando realmente preocupado. Aquilo era coincidência demais para uma conversa só — Ahá! Pela sua cara eu cutuquei o ponto certo. Fale, fale.

Deveria? Parecia imprudente pedir o que ele queria, mas, por mais que pensasse, Aberash parecia ser a pessoa mais indicada para dividir aquela informação.

— Eu... Certo, isso é provavelmente a coisa mais estranha que vou dizer na vida, mas, você poderia tentar perceber se elas são... Comuns? Tão comuns quanto cada dama que já frequentou esse palácio? — Aleksei não acreditava no que estava dizendo — Aberash, ouça os absurdos que você me faz dizer, sinceramente.

Ah, agora ela sorrira. E parecia um sorriso... De orgulho?

— Na verdade, faz muito, muito sentido. Seu pedido será atendido com muito prazer, meu czareviche preferido.

— Eu sou o único czareviche que você conhece — resmungou ele, ainda tentando entender aonde aquela conversa fora parar.

— Certo, eu admito que às vezes fico em dúvida entre você e Valentim II, mas você ganha por não ter um bigodinho estranho — disse ela, com uma seriedade incrível, como se não o estivesse comparando com um antepassado de Aleksei que vivera há quase cem anos.

— Eu vou fingir que não ouvi isso — disse ele, sem conseguir se impedir de sorrir de orelha a orelha — Mas, hã, obrigado. Por me prestar esse favor bizarro.

— Disponha. Agora, não acha que está na hora de entrar? Nenhum de nós dois deveria adoecer tão perto da Seleção.

Aberash tinha razão, mas Aleksei tinha pouca vontade de voltar para dentro do palácio. A solidão que a natureza lhe oferecia trazia uma espécie de tranquilidade que só alguém constantemente preocupado com o olhar alheio poderia entender. Mas, se havia uma coisa que Abe podia lhe oferecer, era compreensão. Eram tão iguais e tão opostos ao mesmo tempo, construindo uma das relações de amizade que Aleksei mais zelava por.

— Está bem, está bem. Eu vou, desde que você me aceite como seu companheiro nessa madrugada passada em claro. Não acho que vou conseguir dormir, de qualquer forma.

— Pois bem, fazer maratona de filmes nem tem tanta graça se for sozinha. Seus comentários azedos melhoram em 100% meus filmes água com açúcar — alfinetou ela, caminhando ao lado de Aleksei até as portas que ligavam o jardim ao interior do palácio.

— E seus comentários pacifistas melhoram em 100% meus filmes de ação — devolveu ele, percebendo, agradecido, o quão mais quente estava dentro do palácio. Aquela não seria uma noite gasta somente com preocupações, no fim das contas. Aleksei não tinha certeza se devia temer aquele período de calmaria, como se fosse uma preparação para tempos turbulentos e complicados, mas decidiu tentar esquecer-se disso, pelo menos naquela madrugada.

*

Aleksei adormecera na metade do segundo filme, o que ele escolhera, inclusive. Aberash ainda se surpreendia com como, de vez em quando, tudo de que o czareviche precisava para relaxar o suficiente para cair no sono era saber que havia alguém ali, zelando por ele. Era comum encontrá-lo cochilando ao lado de Catherina, enquanto ela lia algo, ou de Isaach enquanto ele trabalhava em algum projeto de arquitetura, por exemplo. Partia o coração de Abe imaginar o estado de alerta constante em que o rapaz deveria estar para que tivesse esse padrão de comportamento, mas com a vida que Aleksei levava, ela não poderia esperar coisa melhor.

Abe sinceramente estava tentada a dormir também, mas falara sério quando dissera que não pretendia irritar Cesar com seu atraso na manhã seguinte. Sempre fora uma pessoa matinal, mas dormir tarde e acordar cedo era um suplício para ela.

Com cuidado para não despertar Aleksei, levantou-se da cama. Estavam no quarto de Alek, já que o de Aberash estava inabitável, com malas em um canto, papéis espalhados por todos os lados e as roupas que desistira de levar na viagem empilhadas sobre sua cama. Desligou a televisão, prometendo terminar de ver o filme depois, acabara se interessando pela trama, no fim das contas. Andou silenciosamente até a sacada, decidida a aproveitar os momentos de sono profundo de Aleksei para se realinhar para a viagem.

Quem visse Aberash naquele momento, movimentando-se delicadamente pela sacada coberta de neve, nunca diria que aquela dança era, na verdade, seu ritual para balancear e cuidar do poder que carregava nas veias. Era de extrema importância que estivesse em plena forma para encontrar-se com as selecionadas, pois, ao falar com cada uma delas, falaria com cada um de seus Covens, e precisava deixar clara sua posição firme naquela história.

Fora relativamente fácil se meter na organização da Seleção, tinha a confiança, merecida, da família real depois de ajudar em alguns outros projetos. E conseguira. Mal podia acreditar, mas conseguira. Vinte bruxas estariam adentrando aquele palácio dali alguns dias, e isso fora graças ao trabalho exaustivo que Aberash tivera para mexer vários pauzinhos. De forma alguma compactuava com a ridícula guerra entre os quatro clãs, e, embora a maioria dos líderes dos Covens assim achassem, não fizera isso para ajudar a “desempatar” a guerra. Não. Fizera porque era a hora certa, e lhe doía que o momento tivesse chegado, pois Aleksei sofreria com tudo o que o futuro prometia reservar, mas não havia mais tempo. Amava Aleksei, Catherina, Damian e Yeva como a família que ela um dia tivera, e sabia da dor que enfrentariam daquele momento em diante, mas acreditava, com toda a sinceridade, que os Kostroma seriam capazes de evoluir e transformar aquele mundo para melhor. Era a hora do começo de uma nova era naquele país, ou sucumbiriam mais uma vez ao sangue e à destruição.

Com um longo suspiro, Aberash continuou sua dança silenciosa e ritualística, rezando para que o destino a ajudasse e agradecendo pelo primeiro raio do sol que começava a despontar no horizonte.