“We laid our names to rest

Along the dotted line

We left our date of birth

And our history behind”

Mars – Sleeping At Last

Depois dos cinco anos de faculdade de Direito, Theresa acreditava que tinha entendido o conceito de “tédio” plenamente. Aquelas aulas de etiqueta obrigatórias, contudo, reconfiguravam essa sua noção a cada semana que passava.

Por duas horas, três vezes por semana, todas as dezoito selecionadas eram reunidas para as lições essenciais e preciosas de Lady Burjak, a senhora que ensinara grande parte da geração de nobres da idade de Tessa, incluindo o czareviche e a czarevna. Com certeza, o mais efetivo daquelas aulas era ensiná-las a como parecer concentradas e sem sono enquanto ouviam a ladainha da professora — o que, pensando bem, era uma habilidade bem útil para a realeza.

O assunto da vez era a genealogia das famílias mais importantes de Aldan, e seus respectivos títulos. Já estavam nisso há três aulas, e, tendo começado das famílias mais célebres, agora estavam no tópico dos nobres com um prestígio praticamente decadente. Era impossível dizer se Lady Burjak achava o assunto tão enfadonho quanto Tessa, portando a mesma expressão neutra e tom firme, mas desprovida de emoção, desde o primeiro dia em que tinham sido apresentadas à professora.

Se qualquer mulher naquela sala dissesse que não achava o assunto no mínimo chato, estaria mentindo. Por outro lado, Tessa sabia que aquelas aulas eram mais úteis para algumas delas do que para outras e por isso, só por isso, não tecia comentários sarcásticos diante de certas afirmações da tutora. Os tempos podiam ter mudado e a rigidez da realeza podia não ser mais a mesma, mas era fato que não daria para sobreviver naqueles ambientes sem a base mais mínima de etiqueta, não sem causar desconfortos e conflitos a cada reunião. Claro que sempre haveria as mais extrovertidas, combativas e adaptáveis que se dariam bem com algum jogo de cintura ou as com treinamento prévio, mas, se esperavam que uma delas se tornasse Czarina de fato, então deveriam prepará-las para o ambiente em que a escolhida passaria o resto da vida, não contar só com sorte ou talento natural. E, lógico, para que não causassem vexames nacionais durante a Seleção.

— Encerramos por hoje, senhoritas. Na semana que vem revisaremos o assunto, depois da aula práticas — anunciou a professora, e, só para ter certeza, Tessa levantou os olhos para o relógio ao fundo da sala. Quinze para as quatro em ponto, como todas as outras vezes. Aquela mulher deveria ter algum tipo de sexto sentido. — Alguma questão?

Foi com certa surpresa que Tessa viu Virginia levantando a mão. A garota pouco se pronunciava naquelas aulas, numa postura crônica de desinteresse.

— Diga, senhorita Minayeva.

Theresa esperou pela pergunta, curiosa. Apesar da postura de tranquilidade na maioria das aulas, naqueles últimos dias havia uma inquietude em Virginia, algo que parecia raiva. Difícil saber o que seria o catalisador daquilo, e mais difícil ainda saber o que a outra planejava fazer.

— Não vamos falar sobre as famílias extintas?

O silêncio que caiu na sala chegava a ser opressivo. Tessa conseguiu impedir que o impacto da pergunta transparecesse em sua expressão, mas não tinha sido o caso de algumas garotas, virando o rosto para Virginia com os olhos arregalados. Ela, por sua vez, permaneceu inabalada. O que quer que estivesse fazendo, era planejado.

— Não sou professora de História, senhorita Minayeva — disse Lady Burjak, finalmente se pronunciando. A neutralidade estava de volta agora, mas Theresa tinha visto sua expressão vacilar por um segundo. Não com surpresa, mas com ultraje, ofensa. — Estou aqui para educá-las com o que será útil para suas vidas na corte, e o que me pergunta é inútil nesse caso.

— A senhora disse que algumas famílias mudaram de sobrenome depois da guerra — continuou Virginia. Se tinha notado o estado de nervosismo em que colocara as outras garotas, não demonstrou. — Não deveríamos saber quais e de qual linhagem morta essas famílias vieram?

— Já lhe dei minha resposta, senhorita. O que gostaria de fazer com esse tipo de informação, recitar a história dos antepassados de um dos duques no próximo baile? Não será um assunto agradável para ninguém e recomendo que não o faça — respondeu a tutora. O que diabos Virginia estava tentando fazer, testar em que ponto a paciência de Lady Burjak cederia? — Famílias extintas estão mortas por um motivo, e é do melhor interesse de todas vocês que procurem esquecer da existência delas.

— Nem todas as famílias extintas eram bruxas — continuou Virginia, para o desespero de cada pessoa naquela sala. Saindo do choque inicial, algumas garotas tentavam fazer a outra parar, aos sussurros. — Muitas morreram na guerra lutando pelo bem do país, ao lado dos Caçadores. Não deveríamos lembrar dessas famílias, por respeito? Além do… — Ela parou quando Kira, sentada ao seu lado, agarrou seu braço. Theresa estava perto o suficiente para ver as unhas da outra fazendo força sobre a pele de Virginia. O instante de silêncio foi o suficiente para Lady Burjak.

— Chega. — Havia a mais leve rispidez na voz da tutora, mas, para seus padrões, era alarmante. — Permita-me dar um conselho a você e a todas as outras: esqueçam sobre essas famílias. Não há um único nobre que vá apreciar esse tipo de “respeito” aos antepassados deles. Na melhor das hipóteses, irão encarar como uma insolência e, na pior, como algo criminoso. Fui clara?

Um “sim, senhora” uníssono tomou conta da sala, mais firme do que qualquer uma delas estava se sentindo. Lady Burjak, sem esperar mais nada, pegou seus materiais e foi saindo. Já na porta, se dirigiu mais uma vez a Virginia:

— Reportarei seu comportamento ao czareviche, senhorita. Se ele for bondoso o suficiente para deixá-la ficar, sugiro que pense muito bem em como se portará daqui em diante.

Apressaram-se para sair da sala, quietas. Diferente das outras vezes, nenhuma desviou o caminho para outro canto do palácio. Deveriam ser uma visão e tanto, andando em bando em direção ao salão comunitário na ala dos quartos delas. Não precisavam dizer nada para saber que coisas muito semelhantes passavam pela cabeça de cada uma.

Foi só entrarem no salão, longe de qualquer câmera ou escuta - finalmente tinham certeza disso - para a falação começar. Metade eram perguntas e acusações direcionadas a Virginia e a outra metade eram xingamentos dirigidos a ninguém em particular. Tessa não ia se deixar entrar em pânico por algo assim, mas estava perplexa. Era difícil medir que tipo de consequências o showzinho de Virginia teria. Talvez não tivesse nenhuma, se a conversa morresse em Aleksei somente. Mas será que podiam contar com isso?

— Ei! EI! — gritou Kira, num tom alto e impositivo que Theresa nunca a tinha visto usar. Sua persona de presidente finalmente tinha dado as caras. — Vocês querem que apareça um guarda aqui na porta daqui a pouco? Abaixem o tom.

Aproveitando a deixa, Theresa decidiu ajudar aquela conversa a tomar o rumo certo.

— O que foi aquilo? — perguntou, seca. Virginia lhe encarou com um olhar raivoso de volta, diante do que Tessa nem reagiu. Não tinha medo de um pouco de fogo.

— Nada — respondeu ela,cruzando os braços. — Curiosidade, só.

— Jura? Porque aquilo tudo me pareceu muito pessoal — apontou Yanna, sendo apoiada por um murmúrio de concordância das outras. — Você é uma Reminiscência, Virginia?

Era uma boa suposição. Ser uma Reminiscência, a última sobrevivente de uma família extinta, era um peso que poderia ser responsável por aquele tipo de atitude irresponsável. E a pergunta a abalou. Foi momentâneo, mas deu para vê-la demorando meio segundo para encobrir o sentimento — indeterminado demais para Tessa identificar — que surgiu no meio da belicosidade que ela estava apresentando. A raiva voltou depressa, porém:

— Não, não sou nobre. Mas é pessoal. — Uma mentira e uma verdade na mesma frase. Boa maneira de desorientar um observador atento, mas Tessa era mais do que “atenta”. Não podia julgá-la pela desonestidade, não era hipócrita a esse ponto, só que a culpa era toda dela de ter se colocado sob o holofote daquela maneira. Que lidasse com as consequências agora. — Claro que é, e deveria ser pessoal para todas vocês também, não? Como passamos horas e horas ouvindo sobre uma nobreza tão decadente que está a dois passos de desaparecer, mas com famílias históricas assassinadas não se pode gastar nem cinco minutos?

— Você realmente acha que foi divertido para alguma de nós ouvir aquela baboseira por três dias? — reagiu Elizaveta, soando mais cansada do que irritada. Algo, ali, também era bastante pessoal. — A maioria aqui nem nobreza é. Não há debate, não há esforço para esquecer uma história, porque ninguém nunca quis lembrar em primeiro lugar. E mesmo assim nenhuma de nós fez o que você fez. Você pelo menos entende como pode ter nos exposto?

Silêncio, de novo. A promessa de exposição era assustadora o suficiente até para esfriar aquela briga. A competitividade e desentendimento entre elas só podia ir até certo ponto. Estavam irremediavelmente acorrentadas umas às outras e se uma afundasse, todas iriam junto. Afinal, a realeza não tinha sobrevivido até aquele momento apostando em meios termos.

— Não há como acusar Virginia de nada, a não ser de falta de decoro — falou Nastya, em sua atitude conciliadora comum. A garota não costumava apostar em falso otimismo nesses momentos, então ainda dava para levar os pontos dela a sério. — Em teoria, todas passamos pelos testes escrupulosos para acusar magia sem nenhum problema. Estamos bem, mas não dá para abusar da sorte. Exibições como a de hoje não podem acontecer mais.

— E o czareviche? — perguntou Lara, apontado a única variável desconhecida daquela equação. — Será que podemos contar que ele não pense nada do ocorrido e não o passe para frente?

— Bom, se ele decidir me eliminar, pelo menos todas vocês terão uma ideia do tipo de pessoa com quem estão lidando — disse Virginia, agora parecendo mais calma, sentada em uma das poltronas perto da janela. Todas tinham eventualmente desistido de continuar brigando em pé, e os ânimos pareciam ter acompanhado o movimento. — Um tipo intolerante à mais mínima pisada fora da linha.

Theresa contemplou a hipótese. Estava muito longe de confiar em Aleksei, e ele era, de fato, rígido, sério. Intolerante, contudo, não parecia uma boa possibilidade. Se fosse, havia algum sentido no que estavam fazendo ali? Gostaria de acreditar que Aberash não tinha as jogado em uma armadilha mortal, nada apontava para isso. Lhe parecia mais que o czareviche vivia em um meio termo, congelado para não ter que tomar um posicionamento. Não odiava sua magia o suficiente para queimar o mundo e a si mesmo junto, expurgando-o do mal que ele mesmo perpetuava, nem a amava o suficiente para desbravar seus poderes e fazer algo para parar o assassinato das pessoas como ele. Seria uma discussão na aula de etiqueta importante o suficiente para fazê-lo decidir? Soava muito absurdo que a resposta fosse sim, e Theresa não se deixava emocionar por absurdos.

— Duvido que seja o caso, mas posso descobrir o que esperar — disse Tessa. — Meu encontro com ele é amanhã. Tenho certeza que até lá Lady Burjak já terá repassado a informação.

Houve uma concordância geral, indicando para a finalização do assunto. Tessa bem sabia que aquela confusão não acabava ali; depois que o cansaço do estresse passasse, veriam as repercussões de tudo que fora dito nos próximos dias. A tensão no ar se mantinha, afinal.

— Sabe — disse Leena, depois de alguns momentos de quietude desconfortável —, eu nunca mais vou reclamar das aulas de etiqueta serem um tédio depois dessa. Que Lady Burjak dê cinco aulas sobre o tipo certo de porcelana num chá da tarde se eu falar alguma coisa.

Katherine foi a primeira a rir, depois de murmurar um “meu Deus”. O resto logo acompanhou, e Tessa se pegou abrindo um sorrisinho diante das piadas e das reclamações do quão enfadonhas as aulas eram. Logo o ambiente ficou leve o suficiente para que pudessem voltar às suas vidas, saindo do salão ou continuando na conversa. Era irônico, para não escolher outra palavra, que tivessem que seguir o conselho de Lady Burjak, ignorando a existência das famílias extintas, para que as coisas voltassem a ser suportáveis.

*

— Não achei que fosse ser pego de surpresa pela senhorita de novo, não tão cedo — confessou Aleksei, parando a caminhada a passos lentos que estavam realizando para se sentar em um dos bancos no caminho. — Mas talvez eu tenha me superestimado.

A surpresa a que o czareviche se referia fora tão mínima que poderia passar indetectada. Tudo que ele oferecera a Tessa foi um levantar leve de sobrancelhas, seguido de uns segundos de silêncio. Theresa, que pudera identificar Aleksei pelos movimentos refinados mesmo sob uma fantasia, via que o controle que ele exercia sobre si mesmo era ainda maior sem ela. Do seu ponto de vista, era até um tanto admirável.

— Minha promessa de honestidade foi séria, vossa alteza — disse ela, sentando-se ao lado dele. — Assim como falei a verdade quando conversamos no baile. Não sou uma boa opção para Czarina, mas acredito que posso ajudá-lo a fazer a melhor escolha possível, ou pelo menos a mais informada.

— Se pensarmos na Seleção como um jogo, o que você está me oferecendo é trapaça. Digamos que eu acredite que o que você está me propondo é sem interesse próprio, ainda estarei recebendo informação sobre as outras selecionadas que elas não me deram. O que é ótimo para mim, mas não seria justo com elas. Se a senhorita pode escolher o que me contar, elas também deveriam ter a mesma chance. — Ele tinha falado sem olhar para Tessa, os olhos perdidos entre as árvores que os rodeavam. Parecia estar pensando alto, e, ao se dar conta disso, voltou-se para Theresa com uma expressão preocupada. — Ah, não estou ofendido nem nada do tipo, só…

— Quis ser honesto. — completou Tessa, com um sorriso tranquilo, com o que ele concordou. Claro que ela sabia que ele não estava ofendido ou na defensiva, teria intervido bem antes se achasse que era o caso. — Não espero que vossa alteza acredite em mim sem provas. Também não gostaria de fazer algo que acabaria o deixando desconfortável, a intenção é ajudar, afinal.

— O que está propondo, então? — perguntou ele, assumindo, corretamente, que ela ainda não tinha a intenção de desistir da ideia por completo.

— Podemos estabelecer algumas regras: só responderei ao que vossa alteza perguntar, nada mais, e me limitarei a falar sobre as atitudes de minha colegas, não suas histórias pessoais. E só quebrarei as duas últimas regras em casos muito graves.

— O que a senhorita consideraria como “casos graves”?

— Traição, violência ou preconceito — disse, sem nem pensar duas vezes.

Aleksei aquiesceu, pensativo, e Theresa o deixou estar. Era até ali que pretendia ir; se o czareviche decidisse recusar sua oferta, que assim fosse. Não estava preocupada com o que ele achava dela depois daquela conversa franca, afinal, se estivesse preocupada com algo assim, não teria puxado o assunto em primeiro lugar.

Estavam sentados na orla da floresta, por onde passava um caminho de pedras ligado ao jardim. Era um bom lugar para ficar perdido em pensamentos e um lugar melhor ainda para conversas possivelmente comprometedoras. Por conta das árvores, ali era ainda mais frio que o resto da região, mas Tessa nunca tivera problemas com isso. O ar gelado sempre parecia descer mais limpo para seus pulmões, purificando todo o caminho, no sentido mais literal possível. De um ponto de vista mais espiritual, Theresa seria maluca de acreditar que algo tão banal quanto o ar frio poderia limpá-la das marcas queimadas a fogo dentro de si.

— Posso aceitar sua proposta — pronunciou-se Aleksei, e era até engraçado o quanto ele estava conduzindo aquilo como uma negociação de fato. Tessa não podia dizer que não gostava da atitude, mostrava que ele estava levando aquilo, e ela, a sério. —, mas tenho mais duas condições.

— Sou toda ouvidos.

— Em primeiro lugar, não podemos falar apenas sobre as outras selecionadas, gostaria de conhecê-la também. Em segundo lugar, me prometa que me dirá quando deixar de se sentir neutra em relação a alguém, de maneira positiva ou negativa.

Theresa soltou um riso curto, incrédula. “Quando”, não “se”?

— Posso prometer isso, vossa alteza, mas será o suficiente para que minhas respostas sejam confiáveis?

— Claro que não, mas certas lacunas posso preencher sozinho — respondeu ele, com uma sombra de sorriso nos lábios, e lhe estendeu a mão — De acordo?

Theresa abriu um sorriso torto, aceitando o aperto de mão. Ah, aquilo seria bem mais interessante do que ela tinha previsto.

— De acordo. Espero ser de ajuda para vossa alteza daqui em diante. — Com a contextualização feita, agora Theresa podia tratar do assunto mais emergencial. — Já teria algo em mente no momento?

Theresa não tinha intenção de fazer sua proposta ao czareviche tão cedo. Nunca tivera a menor pretenção de competir a sério, não depois de constatar que haviam mulheres ali que seriam competentes no cargo de Czarina, bem mais do que ela jamais seria capaz. A ideia de se voluntariar a ajudar Aleksei a separar o joio do trigo surgira em algum momento das primeiras semanas no palácio, assim como a promessa de sinceridade total — ou, pelo menos, sinceridade sobre o que podia dizer sem que um caçador estivesse com uma arma em sua cabeça no próximo segundo. Esperava poder analisar o czareviche por mais tempo, prever qual seria sua reação antes de agir ou mesmo decidir se ele era digno de tal ajuda de fato, mas a questão com Virginia acelerara as coisas.

— Na realidade, não — disse ele, e não havia mentira ali. — É cedo demais para fazer qualquer suposição e ainda não há necessidade para pressa.

— Vossa alteza pareceu ter pressa com a eliminação depois do baile — cutucou Theresa, diante do que ele se limitou a balançar a cabeça, concordando.

— Acredito que aquelas eliminações cairiam em uma das suas três categorias de “casos graves” — Tessa bem sabia disso, e há tempos. Comemorara sem arrependimentos a eliminação das duas e Abby, apesar de não ter se juntado ao coro, também não a repreendera. — Mas desde então nada do tipo aconteceu. Não tenho qualquer intenção de eliminar alguém por ter faltado com a etiqueta ou ter desrespeitado o toque de recolher por alguns minutos. Gostaria de acreditar que não sou mesquinho a esse ponto.

Tessa anuiu, satisfeita com a resposta. No momento, não havia maneira de conseguir uma resposta direta sem soar suspeita ou, pior, fazer Aleksei dar mais importância ao ocorrido do que fizera inicialmente. Era bom o suficiente para acalmar as ansiedades das outras garotas, e, mais importante, também era um indício que sua aposta em Aleksei não fora infundada. Havia ali, no mínimo, a base para alguém capaz de um bom governo. Alguém digno das guerras que estavam sendo travadas em seu nome, mesmo que ele não soubesse ainda.

— É bom saber que pensa assim, vossa alteza — disse ela, mais relaxada depois de ter cumprido sua pequena missão, e decidindo que era hora de puxar outros assuntos. O restante do encontro fluiu bastante bem, sendo fácil conversar com Aleksei. Não poderia ser diferente, depois de Theresa ter estilhaçado qualquer oportunidade para embaraços de primeiras impressões com aquela conversa franca. Preferia assim, de qualquer maneira. Quanto mais rápido pudessem passar pelas cerimônias iniciais, mas brevemente as verdades interessantes chegariam à superfície. Que peculiar, uma mentirosa inveterada com tanto apreço pela verdade, não?

***

Nove anos atrás, quando Abigail pressionara o botão de “gravar” pela primeira vez, não tinha a menor noção do que aquela escolha significaria quase uma década depois. A rádio Mercury, que nas primeiras transmissões não tinha nem nome e se manteve com a audiência firme de duas ouvintes, Cassie e Tessa, por meses, agora crescera o suficiente para ter vários programas, funcionários e uma sede. Tudo isso porque Abby tinha muita coisa que queria dizer, mas, sozinha, não conseguiria alcançar quem ela gostaria que ouvisse.

Agora, sentada no chão de seu quarto, em frente ao microfone que contrabandeara com muito sucesso para o palácio, se via em um impasse. O roteiro para o programa da vez, aberto na tela de seu computador, só não estava fluindo. Não estava ruim, mas Abby se via com vontade de falar de algo inteiramente diferente. Algo de que não sabia se conseguia falar sem sair da área cinza pela qual havia transitado tão bem nos últimos anos.

As famílias extintas. O assunto vinha rodando em seu cérebro sem pausa por dois dias, desde a discussão na aula de etiqueta. Desde então era complicado passarem tempos juntas - o assunto parecia estar pesando sobre suas cabeças, isso quando alguma briga não estourava. Abby sabia que a tensão estava se dissipando, a ausência de uma eliminação tinha ajudado muito, mas ainda era difícil aguentar os dias enquanto a poeira assentava. No momento, era até algo positivo: vendo seu padrão de comportamento nos últimos dias, ninguém questionaria o porquê de estar trancada em seu quarto por tanto tempo.

Fazia tanto tempo, percebeu, que já não conseguia escutar o que se passava do lado de fora, envolta no silêncio artificial do feitiço que colocara no quarto. Não que precisasse se preocupar com isso; posicionado à sua direita, um aparelho retangular do tamanho de um isqueiro mostraria em sua tela, agora escura, caso algum som alto, anormal ou muito próximo fosse feito. Não era tão preciso quanto o que deixara em casa, o que usava para as gravações no conforto de seu próprio quarto, mas era mais portátil e tinha dado conta do trabalho até o momento. Era bem mais funcional do que se esperaria de algo que ela construíra três dias antes de viajar para o palácio, depois de se dar conta que teria que continuar com os programas durante a Seleção.

Se fosse uma rádio normal, ela poderia ter anunciado que entraria de férias por uns meses, mas não era esse o seu caso. Desde o primeiro momento a Mercury fora criada para se opor à postura anti-bruxaria do governo, mesmo que isso nunca fosse dito de fato. Esse era o foco principal do programa de Abby, debater questões de Aldan e as consequências de preconceitos de todo tipo. Como a que mais se expunha, sabia que o mais inteligente era se manter anônima. Anunciar férias logo antes da Seleção seria suspeito demais, mesmo se não tivessem certeza da vigilância pesada a que a rádio era submetida.

Abby respirou fundo, fechando o arquivo do roteiro e finalmente apertando o botão de gravar. Ouviria a gravação cinco vezes e a deletaria se percebesse que dissera algo muito incriminatório. Como gravara vários programas com antecedência, aquele provavelmente só iria ao ar dali três ou quatro semanas. Teria tempo para procurar todos os defeitos que um caçador encontraria.

— Boa noite, caros ouvintes! Sou Calíope e estarei com vocês durante a próxima hora — começou ela, o pseudônimo e a voz de locutora saindo de sua boca com familiaridade. Só porque usaria um programa de voz para distorcer o som depois, não queria dizer que não deveria usar a impostação certa durante a gravação. — Hoje vocês terão que ouvir mais um monólogo meu, mas prometo que é interessante.

Ela sentia falta dos programas ao vivo, lógico. Todo o ponto de seu programa era abrir espaço para debate, entrar em ligações com ouvintes e escutar o que eles tinham a dizer. Não tinham sido poucas as vezes que ela escutara opiniões absurdas, mas, felizmente, também não tinham sido poucas as vezes que conseguira plantar ao menos uma semente de dúvida sobre algumas certezas cruéis. Conseguira fazer um programa ao vivo na semana anterior, mas não podia contar com a disponibilidade do horário sempre. Assim, seus ouvintes teriam que aguentar seus discursos unilaterais por algum tempo.

— Vamos falar um pouco de História hoje — continuou, grata pelo tom pausado que tinha aprendido a usar. Lhe dava tempo para pensar direito. — Aquela com H maiúsculo, que a gente aprende na escola. Já pararam pra pensar quanta coisa fica de fora dessas aulas no colégio? Um historiador pode passar a vida estudando um período histórico de dez anos, mas, do fundamental até a formatura, cobrimos da pré-história até os dias atuais. É lógico que algumas coisas fiquem de fora, não é? Em alguns dias simplesmente concordo, mas, em outros, eu me lembro que houve uma escolha sobre o que seria ensinado e o que não seria. E por trás de toda escolha há intenção.

As famílias extintas não eram algo de que bruxos gostavam de lembrar, também. Era um lembrete, vil, de que a proximidade com a coroa era sinônimo de morte. Pelo menos fora assim séculos antes, durante a guerra civil, quando famílias nobres inteiras foram destruídas por ligação com bruxaria. Chamavam o acontecimento de Primeiro Massacre da Aristocracia porque houve um segundo, logo depois de Ivan I assumir o trono e assassinar as famílias que tinham restado em um banquete para comemorar o fim da guerra. Ninguém gostaria de imaginar que forma um Terceiro Massacre tomaria. Até porque não-bruxos haviam morrido em ambos os massacres, e esquecidos junto com o resto. O trabalho de separá-los era tão impossível quanto perigoso para um governo que só queria que aquilo sumisse.

— Grande parte da nossa história, como humanidade, é horrorosa — continuou Abby. — Temos páginas e páginas de guerras, massacres, genocídios. Mais horroroso que isso, eu acredito, é esquecer voluntariamente de tais tragédias. É virar o rosto porque a visão é dolorosa ou, pior, obrigar os outros a fecharem os olhos para que não façam perguntas diante do que veriam.

A nobreza bruxa que tinham agora era uma sombra pálida do que tinha sido antes. A segurança estava na irrelevância, então se esconderam às margens da alta sociedade por décadas. Somente nos anos mais recentes, com o mundo bruxo sendo revitalizado, que nobres bruxos se permitiram mais importância. Era sempre uma corda-bamba, descobrir os novos métodos dos caçadores para detectá-los e evitá-los. Sempre havia uma causalidade no caminho e, às vezes, mais uma família se extinguia.

— Mais do que apontar o dedo para quem escolhe o que aprendemos e dita o que é apropriado ser estudado ou não, gostaria de lembrá-los que a história não se firma só por meio de registros escritos e oficiais — Abby teve que sorrir um pouco antes da próxima frase, lembrando, com carinho, de sua casa e suas tradições. — Nossa memória coletiva, geracional, é o que torna possível contestar a memória oficial, a tal História com H maiúsculo.

A coroa tinha se mantido intocável durante todos esses anos. Buscar se infiltrar na família real era um desejo de morte, e tinham tentado o suficiente para saber disso. Alguns nobres não-bruxos eram maleáveis ou tolos, permitindo que bruxos fossem aumentando seus títulos e se espalhando pela sociedade. Na família real não havia esse tipo de brecha. Era por isso que Aberash ter se infiltrado no centro da realeza era irreal, e as selecionadas ocuparem aquele palácio, como possíveis noivas do czareviche, era uma oportunidade em um trilhão. E era por isso que Aleksei era a coisa mais bizarra que já tinha acontecido naquele país. Um milagre, alguns diriam.

— Contestar a história oficial pode soar um tanto radical e, em alguns casos, é. Tem que ser. Mas em outros pode significar repassar para a geração seguinte a jornada de imigração de seus pais, que logicamente não consta em um livro da história do país. — Mais tranquila, Abby já sentia que daria conta de sua ideia de última hora. Contaria histórias de sua família, pediria aos ouvintes que enviassem as histórias deles e talvez as leria futuramente. Não era muito, mas era o que ela poderia fazer. Algum não-bruxo a escutando pensaria na história oficial de Aldan com mais desconfiança. Algum bruxo se lembraria dos seus que foram apagados dos registros, e a memória deles seguiria em frente. Se conseguisse isso, já conseguira muito. — Lembrar, quando tudo te pede, ou melhor, ordena para esquecer precisa ser algo treinado. Uma prática tão arraigada no nosso cérebro que vira um instinto. Eu mesma preciso praticar me lembrar, e, como incentivo a todos vocês, vou começar agora. Espero que gostem das histórias não oficiais que eu carrego comigo.

***

As semanas que sucediam a Ouvidoria costumavam ser as mais atarefadas do ano. Por um certo período, elas deixaram de ser desesperadoras para se tornarem meramente cansativas, como um fruto bem-vindo dos anos de experiência. Com a piora da situação política do país, porém, desespero era um sentimento que voltava a rodear Damian, por motivos bem mais preocupantes do que um volume de trabalho infinito.

Em meio ao caos de situações para as quais não havia solução de fato, o Czar ainda podia se valer do conhecimento que adquirira depois de mais da metade de sua vida com a coroa na cabeça para impedir a si mesmo e aos outros de ficarem aflitos demais e pararem de pensar direito. Era por isso que, nos últimos anos, ele exigia uma reunião a sós com quem estava encarregado de lhe passar as informações recolhidas pelos Caçadores antes da reunião com todos os conselheiros. Não para censurar ou esconder qualquer informação, mas para não se chocar com as notícias ruins junto com os outros. Quanto mais impassível pudesse se apresentar, melhor para os nervos dos envolvidos.

Reuniões como essa eram sempre uma caixa de surpresas desagradáveis. A única vantagem era que, desde seu segundo ano como Comandante, a encarregada por aquele serviço era Catherina, por insistência da própria. Entre as notícias intermitentes de tensão social e política, pelo menos Damian podia ter a rara companhia da filha por algumas horas.

E era para isso, exatamente, que o Czar estava se preparando em seu escritório, à espera da chegada de Catherina. Logo a czarevna chegou, entrando na sala a passos largos e firmes e sentando-se à frente da mesa do pai sem qualquer cerimônia. Depois dos 15 anos, Catherina parecia estar sempre vindo ou indo para algum lugar, e sempre com alguma pressa.

— Lhe tirei de alguma coisa?

— Estava finalizando as medidas de segurança para o aniversário do Alek — respondeu ela, enquanto organizava os documentos que trouxera em cima da mesa. — Tenho uma reunião sobre isso com o chefe da guarda mais tarde.

Damian assentiu, ciente de que as preparações para a data já começavam a ficar mais urgentes. No dia anterior mesmo tinha revisado a lista de convidados, com mais atenção que de costume. Geralmente não havia necessidade de revisão, uma vez que decidia os nomes junto de Yeva. Também dividiam as decisões pós-Ouvidoria. Sua esposa, contudo, andava aérea de um jeito que ele não via há muitos anos, e preocupação era pouco para descrever o que ele estava sentindo. Depois de muitas respostas vagas e um estado que parecia piorar sempre que discutiam algo com relação à Ouvidoria, ela concordara em focar somente na organização do baile.

— Pai? — chamou Catherina, puxando-o de volta para o presente.

— Desculpe, desculpe. Estou cansado — respondeu, com mais sinceridade do que deveria. Só mais algumas horas, só mais algumas horas de foco e poderia parar de bloquear Yeva de sua mente, para impedir a preocupação de paralisá-lo. — Por onde quer começar?

— Pelo pior — disse ela, indicando qual arquivo ele devia ler. Damian quase riu com a atitude da filha, não por surpresa, mas por costume. Suas reuniões mais práticas e velozes eram com Catherina e sua eficiência de ferro. Ficaria muito lisonjeado se um quinto daquela ética profissional tivesse sido aprendida pelo exemplo dele. — Perdemos o rastro do caso 38.

Qualquer resquício de humor evaporou do corpo de Damian diante da notícia e foi o suficiente para compreender a expressão fechada de Catherina. Sabia que por trás daquele fronte meramente irritado ela estava fervendo de raiva.

— Quando?

— Há quatro dias. As últimas notícias apontavam para uma localização perto de Syana, na área rural. Houve conflito com um grupo de caçadores em patrulha — ela parou por um segundo, apertando a boca em uma linha fina. — Não houveram sobreviventes.

Damian fechou o punho da mão esquerda com força e se obrigou a respirar fundo. O caso 38 tinha se apresentado como uma bomba prestes a explodir desde o momento em que haviam descoberto as atividades do grupo, cinco meses antes. Era absurdo o quão pouco sabiam sobre eles. Tinham surgido um dia perto da fronteira sudoeste e por onde passavam não demoravam a surgir notícias de mortes ou pessoas desaparecidas. Era claro que havia bruxaria envolvida, mas muito divergente do padrão que conheciam. Covens não costumavam se mover, muito menos deixando uma trilha podre para trás. Já tinham perdido seus rastros duas vezes, e reencontrá-los também não era agradável, pois era onde o rastro de sangue ficava escuro demais para ignorar a mancha. Por enquanto estavam passando por áreas majoritariamente rurais, em uma linha de atividade que só pareceria padronizada se acompanhada com atenção, então ainda conseguiam controlar a repercussão daquilo. Difícil dizer por quanto tempo poderiam fazê-lo.

— Já tem planos para rastreá-los?

— Se eles continuarem no padrão anterior, temos três rotas possíveis. Até o começo da próxima semana terei as equipes prontas, e pretendo mandar dois grupos para o sul, caso eles tenham decidido mudar de rumo — mais uma pausa. Damian não gostou de ver a hesitação no rosto de Catherina. — Assim que os acharmos de novo, vou enviar uma equipe de observação próxima. E eu vou junto.

Damian não tentou engolir a reação que a fala lhe causou dessa vez, tirando os olhos dos papéis em suas mãos e mirando Catherina com algo que deveria parecer raiva para ela.

— De jeito nenhum. Não vou aprovar uma missão suicida, Catherina.

— E você quer fazer o que? Esperar até que eles estejam batendo na nossa porta depois de terem rasgado o país no meio?

Damian não tinha como refutar aquilo, embora quisesse muito. Depois de meses de observação, a melhor hipótese era que eles estavam fazendo uma rota vagarosa do sudoeste do país em direção ao centro, à capital e, na conclusão mais lógica, ao palácio.

— E você deve achar que eu nasci ontem para acreditar que essa seria uma missão de observação apenas. Nenhuma das equipes de caçadores sobreviveu para contar uma única informação sobre eles e você quer entrar em um combate cego?

— Não vou fugir da luta se a necessidade surgir — confessou ela —, mas precisamos de alguma coisa concreta sobre eles, pai. De que adianta ser a mais competente se quando há uma ameaça real eu fico escondida atrás dos muros do palácio? Eu preciso me envolver e o senhor sabe disso.

A raiva e preocupação do Czar esfriaram diante da teimosia de Catherina. Sabia que aquela seria uma discussão longa, mais longa do que seu cérebro exausto podia aguentar no momento. Não tinha a menor intenção de concordar com a ideia perigosa da filha, contudo.

— Não temos tempo para isso agora — sentenciou, fechando o arquivo sobre o assunto. — Se não há mais nada sobre o caso que você queira me contar, vamos passar para o próximo tópico.

— Mas…

— Podemos falar sobre isso de novo no dia que você enviar suas equipes de busca. — Ela estreitou os olhos para ele, irritada. No fundo, Damian sabia que mais do que raiva, aquilo era a impotência da situação corroendo a czarevna, assim como sabia que precisava forçá-la a esfriar um pouco a cabeça antes de tomar uma decisão. — Não estou em condições para isso agora, Catherina. Prometo que voltaremos ao assunto depois, mas agora meu tempo é contado. Por favor, continue.

Graças a Deus, Catherina aceitou a trégua. Depois de passar a mão pelo rosto, num gesto tão cansado quanto o suspiro que deu, ela se pôs a discorrer sobre as outras questões enquanto Damian lia os relatórios, enchendo-os de anotações. Não pela primeira vez, Damian constatou para si mesmo o quanto era egoísta. Porque, entre as notícias cada vez piores sobre bruxos e caçadores, havia uma parte dele que ficava aliviada de saber que aquilo ele podia resolver, mesmo que paliativamente. Que aquilo não precisaria que Catherina corresse risco de vida. Quando era mais pai do que governante, Damian era um Czar bastante incompetente.

*

Assim que o corpo de Damian encostou no colchão, ele soube que aquilo tinha sido uma escolha muito, muito imbecil. Devia ter falado o que queria de pé. Estava com tanto sono que mal conseguia abrir os olhos, quanto mais falar alguma coisa. Num esforço que lhe pareceu colossal, conseguiu articular:

— Yeva — nossa, conseguira falar um nome de quatro letras embolado. — Precisamos conversar.

Ele recebeu a risada doce dela antes da resposta.

— Nesse estado? Durma, querido, amanhã nós conversamos.

— Não — ele conseguiu se forçar a abrir os olhos, focando-os nela, sentada ao seu lado, com um livro aberto no colo e sem um resquício de sonolência no rosto, apesar de ser quase uma da manhã. — Você não tem dormido.

Depois da surpresa e de tentar abrir a boca para responder, ela desviou os olhos para longe do olhar nada firme dele.

— O que aconteceu em Elista? — perguntou ele pela enésima vez, e ela lhe deu a mesma resposta, que ficava menos convincente a cada reiteração.

— Nada. Andei um pouco pelo meu antigo bairro e visitei o túmulo dos meus pais.

No começo, Damian tentara acreditar naquilo. Não podia nem imaginar o que era a experiência de visitar os túmulos dos pais depois de uma morte tão súbita e violenta, muito menos o tipo de exaustão emocional que aquilo causaria. Mas os dias foram passando e ele sabia que tinha alguma coisa errada. Yeva não dormia, não prestava atenção em nada, parecia estar fazendo tudo no automático. Ele a vira assim anos antes, depois do assassinato, por meses a fio. Poderia passar o resto da vida tentando puxá-la daquele abismo em que ela caíra, mas não sem dor e medo. E se, diferente de mais de vinte anos antes, ela continuasse perdida naquele fosso que ele nunca entendera nem pela metade?

— Desculpa — murmurou, sentindo a visão embaçar com o sono que o atingia junto com uma vontade de chorar. — Eu queria entender melhor, mas mesmo com todos esses anos eu não… Não vou perguntar mais, essa foi a última vez, juro. — Não era bem isso que ele queria dizer. Não estava conseguindo nem pensar direito, os olhos fechando sozinhos. — Eu queria te ajudar mais, te entender fácil do jeito que você faz por mim, sabe?

— Damian, não tem problema, eu… — ela começou a dizer, mas ele estava em algum lugar entre acordado e dormindo, e precisava terminar de falar o que queria, falar alguma coisa que fizesse sentido.

— Eu te amo. Muito — tentou pensar em uma palavra eloquente o suficiente para explicar, mas ela não vinha. — Tanto. O que quer que tenha acontecido, não vai ser maior que esse amor enorme, é a única certeza que eu tenho. Mas você não precisa me contar, só me deixar estar ao seu lado enquanto isso. Qualquer que seja a coisa ruim que tem te acompanhado, fui muito cruel te deixando sozinha com ela durante todo esse tempo. Não vou mais, eu prometo…

O resto se perdeu assim que o sono o abraçou por completo. Ao seu lado, Yeva tentava controlar o choro que saía aos soluços, na primeira explosão de emoção a lhe acometer depois de Elista.