The Kostroma Dynasty

Madrugadas e Tempestades


And all of the lies we've lied

And all of the time thats timed our lives

How do we know whats wrong or right this time

Goodnight and Goodbye— Mree

Era a primeira vez em muitos anos que Aleksei estava tendo noites de sono tão tranquilas. O que seria ótimo, se ele não tivesse todos os motivos do mundo para estar dormindo mal.

Havia tanta coisa para resolver pós-Ouvidoria, e a cada questão resolvida apareciam três mais difíceis, mais caóticas, mais sem solução de fato. Seu pai estava no automático há dias, com um cansaço que não podia ser só por conta da burocracia. Sua mãe aparentava estar pela metade nos lugares, em uma presença pálida e incerta completamente anormal para ela. Catherina parecia estar a duas palavras erradas de explodir com alguém o tempo inteiro. E havia os preparativos para o baile, os encontros com as selecionadas, com os quais Aleksei estava começando a se divertir, mas ainda requeriam muita preparação da parte dele para não estragar tudo.

Não conseguia fazer nada para ajudar qualquer um de seus familiares, cada um lidando com uma crise interna que era evidente para Aleksei, mas todos se recusando a dividir com ele o que estava se passando. Não levara para o lado pessoal, já estivera do outro lado daquela situação vezes demais para fazê-lo. Estava fazendo o que podia, se metendo no serviço do pai para que ele pudesse descansar mais cedo, encontrando as conversas mais frívolas para ter com a mãe e puxá-la para a realidade de vez em quando, checando se Catherina estava dormindo pelo menos algumas horas em algum momento do dia.

Épocas menos estressantes tinham lhe rendido noites mal dormidas ou insones. No meio de todo esse caos, contudo, Aleksei só precisava deitar o corpo cansado na cama e fechar os olhos para ouvir o tilintar que tinha o embalado no sono plácido que tivera nos últimos dias.

A memória do estranho sonho que tivera nas ruínas tinha se tornado um acalento mais estranho ainda. Além de fazer Aleksei cair no sono depressa, as memórias pareciam ser um convite para sonhos bons. Era algo radicalmente diferente de seus padrões, passar a noite na companhia de histórias agradáveis, e se lembrar delas quando acordava, ainda por cima.

Aleksei bem sabia que aquele também deveria ser mais um fator piorando seu estresse. Sabia, só não conseguia sentir. Quer dizer, não era como se a situação não estivesse o deixando um pouco nervoso. Aquela sensação que experimentara nas ruínas, de uma calmaria antes da tempestade, ficava mais forte a cada dia que passava. Os sonhos que tinha mais se pareciam com narrativas mesmo, como se, toda noite, alguém se sentasse na ponta de sua cama e lhe contasse uma história que durava a madrugada inteira. Eram sempre tão triviais, sobre um companheiro, uma filha, um amigo, uma viagem. Talvez por isso eram tão calmantes.

Era como se os sonhos estivessem preparando-o para alguma coisa. Aleksei não conseguia se atentar para o que, e se sentia um tanto estúpido por isso, se deixando levar pelo caminho que algo tão abstrato quanto uma sensação estava lhe apontando. Claro, era menos alarmante porque tudo indicava para que ficasse calmo, descansado, equilibrado. Mas não ficaria assim para sempre. Na verdade, era como se as histórias que estivesse ouvindo fossem só o começo, o que ele podia ouvir no momento para continuar em paz. Não gostava de imaginar que tipo de ruptura precisaria de tanto preparo, nem que tipo de sonhos o aguardariam depois.

A pesquisa com Andrey e Nastya não trouxera as explicações que ele esperava, apesar de tudo que tinham conseguido descobrir. Os Festivais Chetyzre eram bastante antigos, bem antes de qualquer registro de aparição da magia. Eram uma celebração sazonal, acontecendo no dia em que a natureza acolhera a nova estação completamente, o que costumava ser o meio dos três meses daquele inverno, outono, verão ou primavera. A tradição sumiu com o passar dos séculos, mas foi adotada novamente pelos covens, sendo, a partir daí, que o nome de Festivais das Quatro Vidas começou a ser usado. Pela ligação com a bruxaria, a informação sobre o que acontecia nesses festivais era rara, mas pareciam seguir o mesmo padrão: eram celebrações à natureza e à possibilidade de renovação que cada estação oferecia. Andrey sugerira que cada estação poderia estar ligada a um elemento dominado pelos bruxos, o que fazia sentido. Não encontraram material algum comprovando isso, porém, e, dessa vez, Nastya não tinha conhecimento a mais para dividir com eles.

Tinham descoberto, também, que as celebrações não eram realizadas todas num lugar só. A tradição era construir praças nos quatro pontos cardeais da maior cidade ou vila da região. A ruína que tinha visitado com Catherina devia ser o local do festival dedicado à primavera, mas essa foi uma suposição que guardou para si mesmo. Só tinha seu sonho estranho para justificar essa ideia, afinal. Difícil saber se os outros três pontos ao redor da capital tinham sobrevivido e mais difícil ainda era saber quantos poderiam existir espalhados pelo país. Com a tradição abandonada pela segunda vez após a guerra, era bem possível que nem mesmo as gerações de bruxos atuais soubessem como os festivais aconteciam.

Tudo isso era interessante, tanto que rendera uma tarde de leitura e conversa animada entre os três, mas não resolvia nada. Tudo ainda indicava para magia, mas não como costumava manifestar-se nas mãos dos bruxos. Não que Aleksei soubesse muita coisa sobre o assunto. Tinha se afastado de propósito dessas questões, não só porque era proibido fazê-lo, mas porque a possibilidade de encontrar algo com que poderia se identificar seria grande demais. Não queria saber nada sobre a coisa que mantinha acorrentada dentro de si, tanto para não passar a temê-la mais quanto para não cair na tentação de afrouxar as amarras um pouco.

Apesar disso tudo, Aleksei tinha que admitir que estava curioso. O que as palavras que ouvira queriam dizer? De quem seriam aquelas vozes? Fantasmas, seres mágicos desconhecidos? O que queriam dele? Poderia ser óbvio que tudo aquilo tinha algo a ver com sua própria magia, mas, na verdade, não era. Outros bruxos não dominavam aquela coisa obscura à qual ele estava atado. A magia dos outros era perigosa, mas não era vil por natureza, não como a sua. Que tipo de ser poderia incentivá-lo a usá-la, se não fosse ruim também? Se não eram maus, então tinham errado ao se comunicar com Aleksei, ao pedir tão gentilmente que ele parasse de se esconder. Mas será que entidades mágicas eram capazes de errar?

Aleksei passou a mão pelo rosto, desejando poder retirar aqueles pensamentos de seu cérebro com os dedos. Devia ser quase uma da manhã, e ele não olharia o relógio para ter certeza. Demorara mais tempo que o esperado para finalizar os trabalhos do dia, a cabeça rodando por mil lugares diferentes. Não era para seu quarto que tinha se dirigido, contudo.

Vencido pela curiosidade, Aleksei se encontrava dentro da biblioteca, que tinha o seu silêncio comum amplificado durante a noite. Cada passo que o czareviche dava, cada livro que retirava da prateleira e folheava parecia fazer um barulho que ecoava em cada canto do lugar. Ciente disso, Aleksei continuava sua busca devagar, com o andar leve de quem já estava mais do que acostumado a lidar com a quietude espectral alojada entre aquelas estantes enormes.

Estava procurando por livros com transcrições de canções tradicionais. Depois de dias sonhando com a música que ouvira nas ruínas, alguma coisa ali lhe começava a parecer inteligível. Precisaria de muito tempo e muita sorte para encontrar alguma letra que se parecesse com o que tinha rabiscado num papel depois da quinta noite escutando a melodia, agora familiar, e mais sorte ainda para encontrar qualquer informação relevante ligada à canção, mas era a única pista que tinha.

Já tinha dois livros nas mãos quando o som repentino de passos o arrancou de sua busca concentrada. Aleksei seguiu o ruído, sem muito receio. Estaria completamente tranquilo se não tivesse dispensado Viktor logo depois de sair do escritório do pai, quando terminara o serviço. Embora já fosse quase impossível passar por todos os guardas do palácio despercebido, por Viktor nem mesmo uma sombra ficaria indetectada. Não que realmente acreditasse que alguém tivesse se infiltrado na morada real; os passos eram altos demais para serem de um invasor.

Quando encontrou a origem do som, entre as estantes do segundo andar da biblioteca, era difícil saber quem estava mais surpreso. Certo, talvez quem ganhasse nesse quesito fosse Kira, que praticamente pulou de susto ao ver o czareviche.

— Como conseguiu chegar até aqui? — Foi a primeira coisa que saiu da boca de Aleksei, perplexo com o fato de ela ter conseguido evitar os guardas que ficavam na entrada da ala das selecionadas, e todos espalhados pelos corredores. Só depois do silêncio prolongado de Kira que ele percebeu como deveria ter soado acusatório, mas ela respondeu antes que ele pensasse um jeito de consertar seu tom.

— Eu convenci um dos guardas a me deixar sair. — Aleksei achou um pouco de graça do leve brilho de orgulho que ela tinha nos olhos ao dizer isso. Era impressionante, mas continuava sendo uma infração. Ela sabia disso, claro, e a próxima coisa que disse confirmou o fato. — Ele não vai ser punido por isso, vai?

— Talvez. — respondeu, sincero. Dependendo do rumo daquela conversa, Aleksei decidiria se deveria transformar aquilo em um problema. — E os guardas nos corredores? Convenceu todos eles também?

— Não precisei, fui gentilmente escoltada até aqui. Ele está me esperando no andar debaixo para voltarmos. — Parecia uma medida de contenção minúscula, se recusar a dizer o nome do guarda que Aleksei reconheceria assim que pusesse os olhos nele, mas o czareviche admirava o esforço. — Sei que estou violando as regras, vossa alteza. Se uma punição for necessária, gostaria que se limitasse a mim, por favor.

Aleksei desistiu de analisar todos os detalhes da situação. Estava cansado e, sinceramente, entendia o tipo de sentimento que empurraria alguém a sair da cama em busca de distração. Uma das melhores qualidades das madrugadas era a possibilidade de esquecimento, a efemeridade dos momentos, afinal.

— Não vou punir ninguém, senhorita Drozdova. Mas gostaria de saber por que decidiu vir à biblioteca tão depois do toque de recolher.

— Ler me ajuda a dormir, e hoje essa ajuda ficou muito necessária — respondeu, dando de ombros. Ele se sentiu um tanto culpado pela postura tensa que Kira adotara. Não podia só passar por cima do ocorrido, porém.

— Disso eu entendo bem — respondeu, levantando os livros em suas mãos como prova. — Mas seria bom que isso não se repetisse. Nenhum de nós realmente sabe as repercussões que uma Seleção pode ter, e tê-las perambulando pelo palácio durante a noite é um risco que decidimos não tomar. — Ele abriu um sorriso fino, ciente da ironia da situação. — Eu mesmo não deveria estar por aqui a essa hora, mas o alvo nas minhas costas já é velho o suficiente para não causar tanto alarde aqui dentro.

Kira soltou uma risada curta diante do comentário de Aleksei, parecendo ter sido pega de surpresa pela sinceridade. Ele nem sabia o que estava dizendo direito, mas ficou feliz em ver que ela relaxou ao menos um pouco.

— Não acho que eu conseguiria convencer mais nenhum guarda a me trazer aqui no meio da noite, de qualquer forma. — Ela falou bastante sério, o que deixou Aleksei imaginando quanto tempo ela tinha gastado argumentando com o pobre sujeito. — Mas obrigada por desviar o olhar dessa vez, vossa alteza.

Aleksei dispensou o agradecimento com um gesto de mão, tomando aquele assunto como encerrado. Já que estavam ali, lembrou a si mesmo, poderia tirar algo daquele encontro inesperado, não querendo terminar a interação em uma reprimenda.

— Está procurando por algo em específico? — perguntou, se aproximando da estante em que Kira procurava algo antes.

— Meu plano era pegar o primeiro livro em que eu botasse as mãos, mas esse método acabou que não deu muito certo — disse, virando a capa do livro que tinha nas mãos para Aleksei, diante do que ele levantou as sobrancelhas, reconhecendo a obra como uma leitura que fizera várias vezes.

— Não gosta de terror?

— Antes de dormir? De jeito nenhum, gostaria de ter algumas horas de sono hoje ainda.

— Acho que li todos os livros dessa autora durante o fim da adolescência — disse ele, a expressão se iluminando um pouco com a nostalgia que aqueles livros lhe traziam. — A maioria durante a noite, se me lembro bem.

— Meus pesadelos já são ruins o suficiente, muito obrigada — respondeu ela, devolvendo o livro na estante. Aleksei se limitou a rir. Não achava que era apropriado contar que nenhum daqueles livros conseguira o assustar a esse ponto. Tinha se tornado uma espécie de desafio, na verdade, procurar o que conseguisse lhe causar pesadelos piores do que já tinha. — Deixando de fora o terror, vossa alteza tem alguma sugestão?

Aleksei se pôs a pensar, um tanto animado com a oportunidade. Era uma das primeiras conversas que conseguia tocar com uma selecionada sem tantos tropeços, em uma área em que se sentia confortável para falar por bastante tempo.

— Algumas. O que você costuma ler?

Foram caminhando por entre as estantes, com Aleksei ajustando suas indicações à medida que Kira revelava seu gosto para literatura. No fim, ela saiu com quatro livros nos braços, três da escolha do czareviche e um dela.

Se despediram ainda no segundo andar da biblioteca, e ele a viu saindo com um guarda tão jovem quanto nervoso pelas portas do lugar. Só de ver a expressão dele de longe, Aleksei ficou grato de ter decidido não acompanhar Kira de volta, pelo menos não explicitamente. O rapaz que escoltara a selecionada provavelmente teria um piripaque se soubesse que o czareviche descobrira da infração que ele ajudara a realizar, e Aleksei preferia não causar esse tipo de reação.

Em vez disso, saíra da biblioteca pouco depois dos dois, seguindo-os a uma distância segura. Podia estar disposto a deixar aquela quebra de conduta passar, mas só ficaria tranquilo depois de ver que tudo estava dentro dos conformes novamente.

Assim que constatou que tudo estava bem, desistiu de voltar e continuar sua pesquisa. Estava tarde, ele já tinha dois livros em mãos para começar e, se fosse sincero, já estava ansiando por sua cama e pela história que chegaria aos seus ouvidos naquele resto de noite.

*

Victoria não costumava pensar muito sobre conceitos como sorte ou azar. Talvez devesse, uma vez que sua vida tinha sido pontuada por momentos em que, por um milésimo de segundo, o tempo parecia parar para que o destino decidisse sua sina. Era até bom que não pensasse muito nisso, na realidade. Se o fizesse, não demoraria a chegar à amarga conclusão de que fora favorecida poucas vezes nesse jogo.

Contudo, ilhada naquele coreto em meio ao jardim real junto ao czareviche, rodeados por uma chuva tão espessa que mal dava para ver o caminho pelo qual tinham andado para chegar até ali, Victoria só conseguia pensar no quanto era azarada.

Fora ela mesma quem sugerira a caminhada como o encontro dos dois, jamais passando a oportunidade de esticar as pernas e olhar para horizontes mais longos que as paredes bem decoradas do palácio. E as coisas estavam indo até que bem, numa conversa amena sobre as últimas semanas de estadia dela no palácio, sua impressão da Ouvidoria, dos bailes… Victoria não tinha impressões fortes de Aleksei, e aquele encontro não estava fazendo com que mudasse de ideia. Apesar da aparência excepcional e do poder misterioso, a presença forte do czareviche se diluía na neutralidade da qual ele parecia se armar. Não que Victoria quisesse lidar com um herdeiro genioso ou cruel, mas eram tantos rumores sobre Aleksei que era impossível não criar expectativas.

Isso tudo, claro, tinham sido reflexões que ela articulara quando ainda dava para ver o sol do fim da tarde no céu e as nuvens de chuva não passavam de uma ameaça chegando do sudoeste. Agora, tudo que ela conseguia fazer era respirar fundo continuamente, incapaz de tirar os olhos da tempestade, mas se recusando a mostrar o desconforto que estava sentindo. Estava até que se saindo bem quando sentiu a mão de Aleksei em seu ombro. O toque foi leve demais para o susto que a acometeu, o que deve ter ficado muito aparente em seu rosto, pois o czareviche recolheu o braço imediatamente, apesar de ainda se manter mais perto de Victoria.

— Desculpe, não quis assustá-la — disse ele, o volume de sua voz mais alto que o normal para conseguir se sobrepor ao ruído da água desabando sobre eles. Talvez ele estivesse chamando-a a algum tempo e ela, já distraída, não tinha conseguido ouvir, percebeu. — Mas o vento está mudando de direção, devíamos mudar de lugar.

Victoria quase quis rir, não sabendo o que era mais absurdo: se o fato de estar tão perturbada que Aleksei percebera a mudança nos ventos, seu elemento, antes dela ou o fato de que era plenamente capaz de empurrar aquela chuva para longe com um movimento de mãos, mas não podia fazê-lo. Que inferno.

Acabou balançando a cabeça em concordância ao que Aleksei apontara, e seguindo-o para o lado esquerdo do coreto. Não confiava em si mesma para falar nada, com a mente se enchendo de memórias que ela preferia evitar e que transbordavam em dias de chuva.

Aos oito anos, Victoria não odiava a chuva. Como a maioria das pessoas, gostava do cheiro da terra molhada, da umidade do ar. E como muitos bruxos, gostava da possibilidade de brincar com seus poderes, longe da vista da mãe, realizando os padrões mais absurdos no vento do lado de fora, vendo as gotas girando em redemoinhos tortos.

Depois daquele dia, porém, a chuva tinha cheiro de morte para ela. Chuva era a sensação da eletricidade dos raios que seu pai manipulara estalando no ar e o som do vento uivando nas mãos de sua mãe, sempre tão quieta, sempre tão contra demonstrações de poder. Chuva era o que tinha envolto os caçadores que mataram seus pais naquela noite, protegendo-os, dando a eles a vantagem naquela luta. Chuva fora o que lavara o sangue dos dois naquele dia e o que impedira que ela os visse pela última vez antes de ser carregada para fora da casa e entregue à sua avó, que subornara um dos caçadores por aquele minúsculo ato de decência. A chuva impedira seu grito e choro desesperados de serem levados aos ouvidos da população e dos caçadores que tinham marchado até ali, evitando que qualquer um deles entendesse o que tinham arrancado dela.

Mas nem a chuva tinha impedido que ela visse o rosto do caçador que a “salvara”, como uma memória marcada a ferro em sua mente. A imagem que só ficava cada vez mais nítida à medida que crescia, avolumando a necessidade de vingança que tinha lhe empurrado a vida inteira.

— Você está bem? — A voz de Aleksei a arrastou para a realidade mais uma vez. Ela acenou com a cabeça de novo, imaginando que ele só estava perguntando aquilo por educação. Surpreendentemente, ele não aceitou a resposta dela dessa vez. — A senhorita está tremendo. Está com frio?

Victoria constatou, perplexa, que suas mãos estavam tremendo de fato. Fazia tempo que tinha uma reação adversa dessa, mas também era a primeira vez em anos que não estava segura dentro de casa quando um temporal daqueles caía.

— Não — respondeu, depressa. Não sabia muito bem como reagir a Aleksei, encarando-a com uma preocupação que ela não tinha antecipado que ele lhe estenderia. Também não sabia muito bem como explicar o tremor e o fato de ele não ser de frio ou medo, mas de raiva. — Não gosto muito de tempestades… Só isso.

— Deve passar logo, já está começando a diminuir — apontou ele, depois de um momento em silêncio. A água estava menos espessa, realmente. — Mas posso voltar e buscar um guarda-chuva para sairmos daqui mais depressa, se a senhorita preferir.

A imagem do czareviche se submetendo a ficar ensopado naquela chuva gelada só para ajudá-la trouxe o mais fino dos sorrisos aos lábios de Victoria, metade por achar engraçado e metade por gratidão. Quanto dos pensamentos obscuros dela ele conseguia adivinhar? Sabia muito bem que estava falhando miseravelmente em reprimir seu desconforto, mas não achava que ele fosse se importar. Seria tão mais fácil acreditar na resposta meia boca que ela dera antes…

— Ah, não precisa. Consigo aguentar mais alguns minutos. É só uma chuvinha boba de qualquer forma, quem tem medo dessas coisas? — acabou respondendo, a mentira comum saindo de sua boca com familiaridade. Realmente, quem se incomodava tanto com um pouco de chuva?

— Eu não gostava quando era criança — disse ele, pegando Victoria de surpresa de novo. Estava levando aquilo a sério? — Ficava tudo muito escuro, tinha muito barulho do lado de fora. Os corredores desse palácio formam correntes de vento assustadoras, sabe?

— Bom, até aí a maioria das crianças concordaria com você, mas você cresceu e o medo foi embora, imagino — retrucou, querendo saber onde Aleksei queria chegar com aquilo.

— No meu caso, foi menos uma questão de maturidade e mais um tratamento de choque. — Ele abriu um sorriso pequeno, e havia certo divertimento em seus olhos, outra coisa que ela não esperara ver. — Um amigo meu, Isaach, me arrastou para fora durante uma chuva de verão, argumentando que a água estaria mais quente e que eu precisava entender a graça de brincar debaixo da chuva.

Dessa vez Victoria não conseguiu evitar um sorriso diante da imagem nascida do que Aleksei contava.

— E funcionou?

— Surpreendentemente, sim. Só precisava me lembrar daquela tarde para ter um pouco menos de receio quando as tempestades começavam. — Ele riu baixinho. — E claro, havia a graça extra de, no dia seguinte, ele ter ficado de cama com um resfriado e eu não.

Ela acabou rindo junto. Victoria não tinha memórias boas para apagar o que acontecera naquele dia fatídico. Não acreditava que existiam memórias agradáveis o suficiente para isso. Mesmo assim, percebeu, tinha conseguido passar os últimos minutos sem afogar-se nas lembranças de anos antes. Tanto que a chuva agora estava reduzida a pingos cada vez mais finos. Dava até para ver o fim do pôr do sol, tingindo as nuvens cinza escuro com tons de laranja e roxo. Ela tinha que admitir que era lindo.

— Obrigada — murmurou para Aleksei, sem pensar muito sobre o que estava fazendo. Talvez fosse o alívio de finalmente poder sair dali mexendo com sua atitude.

— Não fiz nada demais — respondeu ele, e parecia acreditar no que dizia. Aleksei era bem menos previsível do que ela imaginava, com toda certeza. — Mas acho que deveríamos voltar antes que o clima piore de novo. Vamos?

Victoria não precisava que a proposta fosse feita duas vezes, seguindo-o de volta para a porta do palácio pela qual tinham saído. Precisaria pensar em uma palavra melhor para descrever o czareviche em sua mente dali para frente… Mas qual?

*

Leonor conseguia sentir o cheiro de álcool através da porta. Certo, talvez fosse só sua imaginação, mas qualquer um concordaria que seria uma adição coerente à cena. Estava a ponto de abaixar a maçaneta quando Pilar, a principal criada de seu irmão, parou ao seu lado, na postura reticente que costumava adotar perto da princesa:

— Seu irmão disse que não quer ser incomodado, vossa alteza…

— Ah? Antes ou depois de ele ter enchido a cara? — As bochechas da jovem ficaram vermelhas, e Leonor se sentiu só um pouquinho mal. Não era culpa dela que seu irmão era um inútil nem que a paciência da princesa com ele tivesse se esgotado há anos. Não pretendia respeitar os desejos preguiçosos de Ezequiel, contudo. — Está liberada, Pilar. Tomarei total responsabilidade por aborrecer vossa alteza tão cedo.

A moça não tentou discutir, ciente da personalidade inflexível de Leonor, se limitando a uma reverência rápida antes de partir. A princesa não esperou nem mais um segundo para escancarar as portas do quarto do irmão mais velho, fechando-as com força depois de entrar. Escutou Ezequiel soltar um grunhido em resposta ao barulho alto.

Sem nem olhar para a imagem miserável que o príncipe deveria ser, Leonor cruzou o quarto a passos largos, abrindo as cortinas das janelas altas e deixando o sol forte do meio do dia inundar cada canto do lugar. Dessa vez a resposta de Ezequiel foi mais alta.

— Me deixa em paz, Leonor! — gritou ele, tentando se esconder da luz debaixo dos lençóis de sua cama. Patético.

— Eu adoraria, mas você tem uma reunião com um grupo sindical de Salamanca — respondeu, puxando os cobertores e jogando-os no chão para evitar que Ezequiel os alcançasse de novo. — Em duas horas.

Leonor observou o irmão reclamar, rolar na cama e piscar várias vezes, tentando ajustar o cérebro de ressaca ao mundo. Estúpido menino mimado. Ainda não acreditava que estava ali mais uma vez, bancando o papel de babá porque os criados não ousariam ir contra as ordens de Ezequiel, e os pais dos dois estavam em uma viagem diplomática.

Não pela primeira vez, considerou deixar Ezequiel queimar mais essa conexão, piorar o descontentamento geral com sua incapacidade de fazer as coisas direito. Diferente do irmão, porém, Leonor sabia medir o peso das decisões políticas que ele fazia. Podia querer a coroa que era destinada a ele, mas gostaria de tê-la em um país que não estivesse aos frangalhos. Se deixasse Ezequiel fazer o que queria, não demoraria a ter uma revolução se formando nas ruas.

— Ezequiel, você tem três segundos para sair dessa cama.

— Ou o que?

Leonor nem se dignou a responder, estendendo a mão para o delicado jarro de vidro sobre a mesa de centro a poucos passos da cama de Ezequiel. O fez sem pressa nenhuma, com tempo suficiente para o príncipe perceber o que ela planejava fazer. Foi o bastante para ele sair aos tropeços da cama:

— Pronto, satisfe-

Ele foi interrompido pela água que lhe atingiu no rosto e peito.

— Que merda, Leonor? — gritou ele, tirando a água dos olhos. Ela constatou, com satisfação, que ele estava tremendo um pouco por conta da temperatura fria do líquido.

— Demorou demais, e eu ainda lhe dei um segundo extra — respondeu, sem reprimir o sorriso satisfeito que lhe ocupava o rosto, e pousou o jarro na mesa de novo.

Ezequiel, bem mais acordado agora, se recuperou da raiva rápido, abrindo o sorrisinho convencido ao qual ela estava tão acostumada.

— Que mau humor, irmãzinha — disse ele, se dirigindo para o banheiro. Só parou para ver a cara de Leonor ao jogar sua alfinetada. — Está tão chateada de ter que rever seu ex-namorado?

Eu devia ter jogado o jarro junto, pensou Leonor, enquanto o sorriso sumia de seu rosto. Sem dar a ela uma abertura para responder, Ezequiel fechou a porta do banheiro atrás de si, mas ela ainda pôde escutar sua risada antes do som da água do chuveiro encobri-la.

Apesar da vontade de chutar alguma coisa, Leonor se forçou a dirigir-se à sala adjacente ao quarto do irmão e sentar-se em uma das poltronas, determinada a cumprir o estúpido trabalho de babá a que fora relegada. Só estava se sujeitando àquilo em grande parte pela situação que seu adorável irmão mencionara.

Detestava que Ezequiel soubesse tão bem quais pontos cutucar para irritá-la, assim como detestava não conseguir se controlar quando era dele que as provocações vinham. Quando se tratava daquela família, na verdade, Leonor passava mais tempo sentindo e reprimindo raiva do que qualquer outra coisa.

Desde o fim do noivado, a corda bamba em que estava acostumada a andar se tornara mais fina. Nada que ela não esperasse, na verdade, tudo estava se desenrolando exatamente como ela previra que aconteceria. O problema, percebia agora, era que subestimara quanta paciência precisaria para aguentar. Ou talvez ela estivesse se tornando amarga e ranzinza de fato, como a mãe gostava de apontar.

Meses antes, quando a carta do Czar chegara, pedindo um momento para discutir com a família real o encerramento do noivado dela com Aleksei, Leonor sentiu uma onda de alívio que a atingiu da cabeça aos pés. Tanto que não mediu esforços para domar o gênio esquentado do pai, usando todas as cartas na manga que tinha (lê-se: todos os escândalos de Ezequiel que tinham acobertado) para garantir que a negociação fosse pacífica.

Nem ligava tanto para a coisa toda de se casar por interesses políticos. Mas Aldan… Aldan era um país gélido demais para seu gosto, protegido demais, cheio de segredos que faziam com que se sentisse sempre um pouco por fora da conversa. Sabia que, depois do casamento, viveria reclusa dentro daquele castelo, com pouca comunicação com seu país natal. O que, para seus pais, era ótimo, a maneira mais efetiva de abafar a influência dela que competia com a do irmão facilmente. Tinham escolhido uma das nações mais fechadas do cenário mundial para despachá-la, sem nem ao menos tentar esconder o propósito daquilo.

E Aleksei, que parecia a personificação de sua nação, não ajudava em nada. Não que o tempo de noivado tenha sido insuportável, mas, três anos de convivência depois, Leonor ainda não sabia como lidar com o czareviche. Em um ato de boa vontade, tinha decidido ser o mais sincera possível, e o fora do começo até o fim. Aleksei, por outro lado, estava sempre mentindo. Na maioria das vezes ela não sabia sobre o que, e às vezes percebia que nem ele mesmo atentava-se para o que estava fazendo. Intencional ou não, Leonor não confiava no czareviche, nem um pouco. E num país estranho e pouco receptivo, isso era receita para desastre. Não se submeteria àquilo se pudesse evitar e, pela primeira vez em décadas, o destino tinha lhe dado uma chance, uma saída. Tinha deixado aquele noivado sem um arrependimento sequer, e assim continuava.

A consequência óbvia tinha sido o tratamento ressentido que seus pais lhe davam e a chuva de pretendentes com que tinha que lidar em cada baile que frequentava. E, claro, o fato de que tinha que obedecer a ordens imbecis, como a de cuidar do irmão enquanto o rei e a rainha estavam fora do país. Leonor sabia bem que seu desempenho nesse tipo de tarefa afetaria diretamente em quem seria o noivo escolhido por seu pai.

No meio das ordens, estava a de comparecer ao baile de aniversário de Aleksei, dali algumas semanas. Ambas as famílias reais sabiam que era um movimento diplomático; se tinham terminado o noivado em bons termos, era óbvio e necessário que o convite chegasse. Também era óbvio que Leonor poderia recusar educadamente e enviar algum presente. A questão era que o rei não estava sendo inteiramente racional, e determinara que Leonor iria comparecer ao evento. Agora a princesa sabia de onde vinha aquele impulso vingativo infantil presente em seu irmão — e nela mesma, tinha que admitir.

Ezequiel interrompeu sua reflexão amargurada ao sair do banheiro, tagarelando sobre alguma coisa que ela não se dignou a ouvir. Não pela primeira vez, impediu-se de xingar alto o fato de ter que carregar aquele estrupício para Aldan consigo. Nem entendia muito bem por que Ezequiel insistira tanto para ir junto. Não que acreditasse que houvesse um grande mistério ali; o príncipe herdeiro não passaria a chance de frequentar uma festa tão grande e longe da vista dos pais dos dois, ainda por cima. Pelo lado positivo, poderia culpar o irmão por qualquer coisa que desse errado durante o tal baile.

— O que é? — falou, desistindo de ignorar a falação do irmão.

— Eu perguntei — começou ele, entrando na sala enquanto fechava a camisa social. Fora o cabelo molhado e desgrenhado, dava quase para acreditar que ele não tinha aberto os olhos há menos de vinte minutos — se você sabe sobre o que é a tal reunião.

Deus, me dê forças. Será que esse tipo de cena só acontecia na presença dela e com o pai ele era diferente? Não era possível.

— Não temos tempo para isso — disse, levantando-se e decidindo tomar uma atitude que ajudaria realmente. Na ausência do pai, pelo menos esse prazer ela podia ter. — Eu te explico no caminho e toco a reunião com você.

Para você seria o mais correto, mas ambos sabiam disso. Tanto que Ezequiel se limitou a segui-la pelos corredores, sem contestar. Os irmãos Agramunt, afinal, poderiam ter todos os defeitos do mundo, mas falsidade não era um deles.