“You want me to be

Like most creatures down here on the ground

I’m composed of the elements moving around

But i grow and change

And i shift and i switch

And it turns out

I’m actually kind of a bitch”

Sweet As Whole — Sara Bairelles

Eis a questão com os lugares grandes, ainda mais tão grandes quanto aquele palácio: tudo tendia a ficar vazio. Não havia nada de assustador naquela solidão de quartos vastos, contudo. Aquilo não era um castelo medieval de história de terror, afinal. As janelas amplas, as cores bem colocadas, a delicadeza de tudo não inspiravam nada além da constatação de grandeza e tranquilidade.

No momento, por exemplo, na vasta sala designada às selecionadas, só três mulheres ocupavam o lugar. Virginia, com as pernas esticadas no sofá, lia o novo livro de sua autora favorita. Em uma poltrona à sua esquerda, Nastya Morozova lia algo também. Virginia não prestara muita atenção, mas parecia ser algo sobre filosofia. E, por fim, na mesinha que ficava perto da janela, Alexandra Tremblay rabiscava alguma coisa em um caderninho, distraída.

Já fazia um bom tempo que Virginia estava submersa na história do livro, e, ao perceber isso, piscou os olhos algumas vezes, voltando à superfície. Deu-se conta, nesse momento, que havia uma música baixinha tocando. Alexandra devia ter ligado o aparelho de som, mas ela estivera tão concentrada que nem percebera.

— Quem é essa? — perguntou para ninguém em específico.

— Hã? — a resposta veio em forma de pergunta, das duas outras garotas, tão distraídas quanto ela estivera.

— Quem é essa cantora que está tocando? — repetiu.

— Você não conhece ela? — falou Alexandra, descrente — Esteve vivendo debaixo de uma pedra ou o que?

A alfinetada acertou em cheio na paciência curta de Virginia, mas Nastya interviu antes que devolvesse alguma resposta mal educada.

— O nome dela é Lyra — explicou — Ficou famosa nessa rádio independente aí, a Mercury.

— Não está tão independente assim mais, né — completou Alexandra — Mas, sim, é isso. Pensei que fosse conhecimento geral, é bem famosa, sabe.

— Bom, eu não. Nunca liguei muito para essas coisas, além do mais, tinha mais o que fazer. Nem todo mundo tem um papai rico para bancar dias de ócio, sabe? — respondeu Virginia, sem conseguir segurar a língua. Certo, a frase em si não tinha sido muito, mas já faziam alguns dias que Virginia tinha ficado ciente do evidente nariz empinado de Alexandra, e nunca tivera saco para gente assim.

A sala voltou à quietude, mas agora num silêncio desconfortável. Nastya, em uma persistência louvável pela paz comum, interviu novamente:

— Não culparia ninguém por não conhecê-la, a única coisa que conhecemos dela é a voz.

— Uma cantora sem rosto? Vocês tem certeza que não é algum programa de voz?

— Bom, ela apareceu em alguns programas da rádio, deu entrevistas… Não sei. — admitiu Alexandra, dando de ombros — Certamente tem gente mais empenhada em descobrir esse grande segredo, mas eu preferi gastar meu ócio em outras coisas.

— Em que, por exemplo? — perguntou Nastya. Virginia não incentivou a outra, mas enxergou ali uma tentativa frágil de entendimento, e ela decidiu pelo menos não atrapalhar.

Em resposta à pergunta de Nastya, a outra simplesmente levantou o caderno em que escrevia. Não estivera desenhando, como Virginia esperara. Escritas nas páginas estavam inscrições que, apesar de não serem todas conhecidas para Virginia, eram familiares: encantamentos.

— Ah. E porque tanto foco em estudar, hã… — Nastya parou um momento, procurando uma palavra que servisse. Tinham acordado não falar de magia, pelo menos não de forma clara. Não tinham como saber até a que ponto estavam sendo vigiadas. — Em estudar teoria, a prática não era mais fácil?

Virginia tinha um chute para a resposta, mas duvidava muito que Alexandra fosse dizê-lo. Bruxa nenhuma gostaria de admitir que, por falta de habilidade em lidar com sua dominação, tivera que recorrer ao estudo de feitiços para balancear a falta de poder.

— Meus professores sempre prezaram muito pela teoria, é menos volátil que a prática, e eu concordo — respondeu, e havia uma certeza no que ela dizia que quase fez com que Virginia risse. “Seus professores estão te enganando, querida”.

Viu, pela expressão conflitada de Nastya, que a outra estava pensando na mesma coisa, mas, provavelmente, com mais pesar do que Virginia estava sentindo. Como em qualquer outra instância do mundo, na bruxaria também haviam os mal intencionados. Veja, Alexandra não era uma dominadora ruim porque nascera assim - ninguém era -, mas porque fora treinada do jeito errado. Algumas vezes o tutor fazia por não saber uma maneira melhor, e, às vezes, era deliberado.

— Você tem algum irmão, Alexandra? Ele estuda como você? — perguntou Virginia.

— Um três anos mais novo. E sim, meu pai também está educando-o — ela franziu as sobrancelhas — Por quê?

— Curiosidade — respondeu, e ignorou por completo o olhar confuso de Alexandra, pedindo mais respostas. Como explicar para a garota que nascera em berço de ouro que seu pai provavelmente estava a treinando errado para ter uma desculpa para escolher seu filho mais novo, e, mais importante, homem, como herdeiro? Ela que lidasse com suas questões quando a hora chegasse.

— Falando em curiosidade — começou Nastya, que, se entendeu o que se passava, também não parecia com vontade de entrar naquele assunto com Alexandra — Andava me perguntando sobre seu… — Nastya parou para pensar um minuto. Não era fácil ficar achando códigos para cada elemento do mundo bruxo — Seu… lugar de aprendizado? Reunião? Colégio? Me diz que você entendeu, por favor.

Virginia acabou rindo um pouco, achando graça da dificuldade de Nastya. Vinha esperando essa pergunta fazia um tempo. Já sabia o coven de origem da maioria das garotas. Não havia risco em mencionar isso, em questões de competição. Se por um lado revelava de que maneira tinham sido treinadas, também revelava que as protegia, o que, na grande maioria das vezes, era um desencorajamento a sabotagens, por exemplo.

Por outro lado, Virginia sabia perfeitamente bem o tipo de reação que seu coven traria. Observou as expressões de Alexandra e Nastya, descrente que aquelas duas senhoritas tão bem educadas e simpáticas, dominadoras de água, seriam capazes de não a julgarem. Todas as dominações reprovavam a linha que o coven dela seguia, mas os de água eram especialmente reprovadores ou assustados com a realidade em que Virginia fora treinada. Não tinha vontade de ficar guardando segredo mesmo assim.

— Eu não acho que consigo achar sinônimos o suficiente para explicar isso. — disse simplesmente, e as outras entenderam.

Veja, estavam naquele palácio já iam fazer duas semanas e não eram estúpidas. Já haviam, com sutileza, verificado que não haviam câmeras na sala das selecionadas, mas que no corredor havia. Também não encontraram escutas na sala, mas tinham guardas vigiando as portas, guardas que com toda certeza escutariam algo se uma porta fosse aberta no momento errado. Para conversas rápidas um código inventado funcionava, mas para realmente falaram do que importava, precisavam tomar cuidados extras.

Em comum acordo, as três murmuraram o feitiço básico de silenciamento, e, no mesmo instante, sentiram o domo de proteção sonora ao envolvendo. Recorrer a essa solução sempre seria um erro. Instalar um silêncio permanente naquele quarto, além ser algo que chamaria a atenção rápido - quando há vinte pessoas em uma sala, espera-se ouvir pelo menos algumas conversas, não? -, também tinha efeitos colaterais. Magia, principalmente a vinda de feitiços, sempre tem uma consequência. No caso do silêncio, o efeito colateral era que, depois de um certo tempo na “bolha”, começava a ficar difícil ouvir o que acontecia do lado de fora, o que claramente tinha riscos para elas. Era por isso que limitavam o tempo de conversa dentro do feitiço em dez minutos, contados no relógio.

— Meu coven é do lado noroeste, em Averin. A líder é Leona Yuliy.

Sem surpresa, Virginia viu os olhos das duas se arregalarem. O reconhecimento do coven de sangue foi imediato.

Sem uma palavra, Alexandra se levantou. Estava pálida. Já ia se dirigindo para a porta quando mudou de ideia e voltou. Era difícil dizer se o que ela tinha nos olhos era medo ou raiva.

— Não acredito que mandaram um tipo igual o seu para algo tão importante. Imagine, uma assassina no trono! Eu… E pensar que eu…

— Que você o que? Falou comigo? Pelo amor dos deuses, garota, você acha que eu faria alguma coisa com você?

— Não duvidaria de nada vindo de alguém que aceita fazer esse tipo de atrocidade.

Virginia revirou os olhos, sem paciência. Alexandra encarou isso como o fim da conversa e foi embora, em passo rápido. Assim, que ela fechou a porta atrás de si, o feitiço de silêncio foi quebrado.

Virginia voltou os olhos para Nastya, que continuava sentada ali, embora fosse visível que estava inquieta. A garota tinha refeito o feitiço de silêncio, o que era um sinal que queria continuar a conversa, o que era, no mínimo, interessante.

— Escuta, tudo que eu ouvi foram boatos, mas eu sei bem que tipo de fama seu coven tem. — começou Nastya. Havia uma seriedade nela que fez Virginia descartar aquela ideia primeira da garota como uma criaturinha simpática e inocente — Mas imagino que tenha mais do que eu sei. Me conta.

— Dos boatos que você ouviu, sinto lhe dizer que a maioria deve ser verdade — começou Virginia, pesando o que ia dizer. Nunca tinham lhe deixado falar sobre isso — Mas não tem essa veia de maldade que todo mundo acha. É só mais um ritual, uma coisa antiga e tradicional. Dominar sangue não é anti-natural. Chega a ser hipócrita essa rejeição a uma parte do poder que todo dominador de água tem, só não quer usar por moralidade. Como se não estivéssemos em guerra há mais de duzentos anos.

— Não que eu concorde, mas entendo — disse ela, e Virginia se viu sentindo um pouco de respeito pela outra. Tinha andando muito distraída para não perceber que de inocente a garota na sua frente não tinha nada. Se perguntava como não tinha reparado até o momento o quão óbvio era o fato de que Nastya sabia exatamente o que era essa guerra antiga a que se referira — Eu entendo.

(***)

À medida que crescemos, vamos adotando hábitos. Alguns são saudáveis, outros nem tanto. Às vezes, os hábitos são consequência de situações repetidas com frequência, e se tornam tão presentes que é difícil saber se são uma característica ou adquiridos. Abigail, por exemplo, à essa altura de sua vida, já não tinha a menor ideia se sempre lidara bem com a solidão ou se simplesmente se habituara.

O fato é que, de tão acostumada, ela nem sequer se fazia esse tipo de questionamento. No momento, contudo, a única coisa de que ela tinha certeza era de que com certeza preferia estar sozinha naquele momento.

— Isso é realmente necessário? Está de dia ainda — disse finalmente, se virando para o guarda parado às suas costas.

Dean lhe abriu um sorriso torto e sem humor, o sorriso que, depois do incrível tempo de convivência de duas semanas que tinham, enviava ondas de irritação pelo corpo de Abby.

— Estou somente seguindo as regras, senhorita. E as regras são que você deve ser acompanhada quando sair de dentro do palácio, de dia ou não.

Abby respirou fundo, tentando acalmar a si mesma. Era só acabar rápido com aquilo que logo estaria livre da criatura insuportável que era o guarda que fora designado a ela.

Veja, Abby não costumava ser tão irritadiça assim com ninguém - nem com os que mereciam - mas, a cada dia que passava, pensava cada vez pior de Dean. Jesus, quem aquele homem pensava que era? Depois dos primeiros dias, Abby tinha achado a palavra certa para descrevê-lo: pavão. Exibido, provavelmente se achava o homem mais atraente do universo. Tudo o que Abigail conseguia ver quando olhava para ele era o quanto era insuportável. Nunca fora realmente grosseiro com ela, tudo o que achava de Dean se baseava nas interações que vira ele ter com os outros. Com ela, seus comentários se mantinham numa linha tênue, que por enquanto estava mais para o lado de um semi-profissionalismo seco.

Abigail voltou a atenção para o que estava fazendo. Depois daquelas primeiras semanas no palácio, percebeu que a vigilância pesada sobre elas não daria trégua, e ela precisaria pensar em uma maneira de contornar isso e dar escape à sua magia em algum momento. Foi com isso em mente que começou a fazer aqueles passeios pelo jardim e pela orla da floresta no fim da tarde. Com ou sem guarda nos seus calcanhares, estar rodeada por seu elemento já a acalmava, conseguindo brincar com seus poderes um pouquinho, e pacificar sua magia retida. A princípio ela se preocupara com a neve, mas, na realidade, era bem fácil. Movimentos na terra adormecida sob o gelo era algo que passaria despercebido para qualquer um, guarda ou caçador.

Abby foi retirada de sua aparente distração por um pigarro atrás de si, seu pequeno momento de paz acabando rápido demais.

— Sim? — perguntou, conseguindo segurar a língua, mas não a expressão de impaciência quando se virou para Dean.

— Me parece que você está se divertindo muito apreciando os montes de neve e as árvores mortas pela terceira vez só essa semana, mas já está escurecendo e não posso deixar que fique aqui fora de noite.

— E provavelmente terá uma quarta. Nada lhe impede de me esperar na entrada principal por mim com seus colegas, pelo que percebi é tudo perfeitamente visível de lá — rebateu ela, recebendo um levantar de sobrancelhas irônico como resposta.

— Para ser advertido depois por ter sido irresponsável? Acho que não — disse, e Abby quase riu. Como se ele não tivesse perdido-a de vista um punhado de vezes por ter parado para flertar com metade das pessoas por quem passavam. Sinceramente, Abigail só não reclamava formalmente para alguém pela parte mínima dela que se sentiria terrivelmente culpada se ele fosse demitido. Além do mais, não realmente queria um guarda que fosse observador, observador demais — O que tem de tão interessante nesse jardim, no fim das contas?

— Fora a arquitetura clássica, as estátuas que devem valer mais do que minha casa e espécimes de plantas que só uma equipe de jardineiros conseguiria manter? Nem imagino — Abby ficava assustada, de verdade, com o tanto que sua paciência se esvaía na presença de Dean.

O que ele disse não foi realmente para que Abby ouvisse, mas, no tom de chacota murmurado dele, ela conseguiu entender algo nas linhas de “mais uma deslumbrada”.

Abigail quase respondeu, quase. Mas, ao invés disso, aproveitando do lusco fusco e da neve fofa na qual estava pisando para sair da floresta e voltar para a trilha de pedras que levava de volta ao palácio, se contentou em levantar um pequeno monte de terra e ouvir, com muita satisfação, Dean tropeçando e quase caindo de joelhos no chão.