A demanda Real



Idril parou diante da fonte, na praça do Rei. Seu sapato a incomodava, alisou o vestido e respirou fundo. Estava atrasada. Maldita idéia de ficar na estufa até tarde, esquecendo-se de que ficava literalmente do outro lado da cidade. Teria sorte se seu pai não notasse seu atraso. Mas considerando quem era, o rei não demoraria mais meia hora para mandar todo o contingente de guardas atrás dela. Um sino tocou anunciando o início da cerimônia, e ela retirou os sapatos, para correr, tornando a colocá-los no alto da escadaria. Entrou no salão do trono com pressa, tentando não chamar atenção, escondendo-se entre os presentes. Diante do trono estava o Rei, parado e de frente para ele, oito elfos de pé, alinhados um ao lado do outro, dentre os quais, seu amigo Vorowë também estava.

Turgon iniciou seu discurso, fazendo menção da história antiga, sobre como Ulmo, senhor das águas, o incumbira da missão de construir Gondolin, à imagem de Tírion, a cidade de sua família, no antigo Oeste. Lembrou-se de Fingon, deu irmão e antecessor, que perecera na batalha contra Morgoth, “a batalha das lágrimas incontáveis”, passando para ele o governo dos Noldor e sua sina.

— Mas por mais fortes que sejam nossos exércitos, a Maldição de Mandos governa o destino dos Noldor, e por isso envio hoje, esses oito mensageiros à Baía de Balar, com a missão de pedir auxílio aos elfos armadores, que construam navios e enfrentem o grande mar. Pois a nossa esperança reside nas terras do Oeste…

Idril estreitou os olhos, sentindo um aperto no peito ao ouvir aquilo. Ele os enviaria para longe? E Voronwë com eles?

Droga! Voronwë era de longe o único amigo que tinha.

— Não acredito que meu pai fez uma coisa dessas! — Ela reclamou ao amigo, após a cerimônia. — Com tantos elfos sobrando nessa cidade, ele precisa enviar você?

— Ah… Você sabe… Seu pai me escolheu por meu parentesco com Círdan, o Armador. Ele espera que isso ajude.

— Seria mais fácil ele começar a recrutar elfos Teleri nas florestas de Doriath, então. — Bufou furiosa.

Voronwë riu.

— Vou sentir falta de dar nomes aos animais e às plantas com Vossa Majestade.

Ela não disse nada. Em vez disso, abraçou-o e chorou pela difícil despedida.

Aquela seria a primeira vez que Voronwë deixava Gondolin para ir tão longe, mas estava confiante de sua missão. Ele e seus companheiros deixaram a cidade em duplas, e logo depois, separaram-se, seguindo o restante da viagem sozinhos para não levantar suspeitas. Encontrariam-se na Baía de Balar, ao sul daquela região. Voronwë fez o caminho das encostas da floresta de Brethil, alimentando-se das frutas que encontrava no caminho, evitando fazer fogueiras, poupando ao máximo os suprimentos que trazia de casa. Não durou muito sua viagem antes que se deslumbrado totalmente com a beleza das terras entre o Rio Sirion e as Montanhas da Sombra. A primavera celebrava sua chegada e haviam pássaros, borboletas e pequenos animais que Voronwë se viu sem coragem para prosseguir, mas forçou-se a sua jornada mais para o Sul, até Andram, a longa Muralha, que era uma linha de penhascos íngremes que cortava parte de Beleriand.

Lá do alto, podia-se ver as terras verdejantes que se perdiam na distância. No penhasco abaixo de seus pés, as águas do Sirion despencavam e jorravam de três túneis, unindo-se logo à frente, formando um imenso rio, fazendo seu caminho até o mar. A visão o alegrou, pois além de bela, indicava que estava perto de seu destino.

Voronwë adormeceu sob as árvores e quando acordou, não conseguiu mais despedir-se daquele lugar. Tamanha era a beleza e natureza de Nan-tath-ren, a terra dos salgueiros, onde enormes Salgueiros de um verde pálido enchiam o campo e flores como jamais puderam ser vistas em eras que vieram após. Noites e dias se passaram e ele via-se apaixonado por aquele lugar, não podendo abandoná-lo, esquecendo-se assim do mar, de Círdan e da sina do seu povo.

Certo dia, enquanto navegava em uma jangada de juncos sobre o Sirion, a água tomou a forma de um homem e vendo-o adormecido sobre a pequena embarcação sussurrou:

— Teu amor pelas coisas que crescem te tomou tempo demais, Voronwë. Mas ainda há tempo. Vá e cumpra tua missão, amante dos mares.

Então, o ser feito de água sobrou a jangada e ela desceu veloz o rio, enquanto o homem voltava a misturar-se com o rio, desaparecendo por completo. Quando amanheceu, Voronë viu o céu pálido e sem nuvens, e um grupo de cisnes que migrava para o Sul. Virou-se na direção deles e viu pela primeira vez, as fozes do Sirion e a baía de Balar, na distância. Ainda tentava entender o que estava acontecendo, quando viu ao longe, seus companheiros de missão e com eles, Círdan, o armador, que viravam o barco para resgatá-lo.

— Finalmente chegaste, meu parente. — O elfo sorriu para ele e o abraçou. — Já faz tempo que teus conterrâneos chegaram, estavam aflitos, imaginando o que poderia ter te acontecido. — Voronwë não respondeu. Estava pesaroso por tê-los feito esperar, mas não arrependia-se de ter ficado na terra dos salgueiros. — Venha! Te mostrarei os barcos

Eles foram até uma parte do porto onde um lindo navio em forma de cisne estava atracado e as ondas do oceano batiam contra um cais de pedra. Voronwe sentiu seu amor pelo mar crescer novamente em seu coração. Ele respirou fundo e sentiu o vento frio trazido pelas ondas.

— Agora sim! Mal posso esperar para partir! — Comentou ansioso.

Partiram na noite seguinte, sob as estrelas e Voronwë as admirava da proa do navio, enquanto o porto ia sumindo na escuridão.

— Varda nos abençoa em nossa partida. E com isso, sinto-me renovado. Quem sabe possamos chegar à Terra Abençoada.

••

Tuor caminhava de um lado a outro, incomodado com a quietude do lugar. Adrahil, seu amigo, aproximou-se dele com um semblante preocupado. Não adiantaram seus pedidos diante de Annael para que prestassem auxílio aos moradores ao pé da montanha. Um deles veio naquela manhã, mortalmente ferido, perseguido por lestenses, servos de Morgoth. Dissera-lhes em seu leito de morte, do jugo sob o qual seu povo estava e aquilo revoltou o coração do jovem Tuor, que embora jovem e corajoso, era precipitado, aos olhos de Annael.

— Muitos de nosso povo já pereceram. — Dissera-lhe o elfo. — Não o perderei também por uma causa há muito perdida.

— Estou cansado de ver meu povo sofrendo e não fazer nada. — Tuor lhe disse com os olhos ardendo em ira.

— É minha palavra final, Tuor. Seu destino está longe daqui e não consiste em morrer de forma tão precipitada. — O menino se silenciou, segurando-se para não chorar, como fazia quando criança. Annael suspirou e prosseguiu. — Os orcs estão subindo cada vez mais as montanhas. Tomei há alguns dias a decisão de partirmos para o sul.

Tuor assentiu, ouvindo as instruções de Annael. Viajaram à noite, por caminhos desconhecidos a outros povos até Annon-in-Gelydh, o Portão dos Noldor, feito pela habilidade de sua gente, há muito tempo, nos dias do Rei Turgon.

— Turgon… — Tuor repetiu o nome mencionado por Annael.

— Sim, Turgon, Alto Rei dos Noldor. Amigo de teu pai Huor e de teu tio, Húrin. Eles deram a vida para defendê-lo durante a batalha das Lágrimas Incontáveis. Quem sabe, o rei lhe conceda teu desejo, e atenda a necessidade dos homens que lutam por sua vida nas mãos dos lestenses e dos orcs. Mas devo informar-te, que a fortaleza de Gondolin está oculta aos Homens e Elfos, e nem nós sabemos onde se encontra. Então. Irás conosco?

Ele pareceu querer dizer algo, mas eles foram interrompidos por um elfo vigia, que vinha da floresta, ofegante.

— Meu senhor, é chegada a hora. Devemos partir. Os orcs sobem a encosta da montanha.

Os elfos apressaram-se em organizar-se em caravanas, pequenos grupos de Elfos, com Elfas e crianças Élficas, sumiam aos poucos entre as árvores da floresta, andando em fila, cobertos pelas capas, em silêncio vigilante. Tuor saiu da caverna e foi até Annael.

— Esse é o último grupo, meu senhor.

— Perfeito. Os liderarei à frente, tu e Adrahil seguirão na retaguarda. Lembra-te, se houver um ataque, defende o povo enquanto foge. Não fiques para a batalha. Não poderemos voltar por ninguém.

O jovem Tuor assentiu com a cabeça. Adrahil logo parou ao seu lado e olhou ao redor. A floresta estava silenciosa.

— O que está errado?

—Não vejo nada. Está escuro e silencioso. Nosso inimigo pode estar em qualquer lugar.

Então, como se fosse uma resposta à observação de Adrahil, uma agitação foi ouvida pelo meio da floresta. Um elfo vigia fez um sinal para eles de que vinham inimigos do Leste. Tuor tirou o machado da cintura, preparando-se para a batalha, mas as palavras de Annael vieram como o som de sua própria consciência.

— Estamos sob ataque! — Gritou o mais alto que pode e logo, a caravana se adiantou. Alguns se dispersaram em meio ao medo e o pavor, ouvindo os gritos de guerra dos Orcs.

Adrahil e Tuor ficaram para trás a fim impedir que os inimigos alcançassem o povo e eram mui numerosos, embora eles não pudessem contar exatamente quantos, em meio à escuridão da noite. Tuor ergueu seu machado furiosamente, atacando-os sem hesitação, enquando seu amigo, Adrahil os acertava com flechas, e a resistência os fez recuar.

— Temos que ir! — Gritou Adrahil. — Agora ou seremos mortos!

— Vá você! Eu vou distraí-los para que vocês fujam!

Adrahil queria retrucar, mas viu que não havia mais tempo. Os inimigos os alcançavam, armados e ferozes, como uma grande alcateia pronta para abater um frágil rebanho de ovelhas. Tuor ficou para trás e ele gritava furioso enquando matava os orcs com seu machado. Montes de cabeças e membros se fizeram ao seu redor e ele estava encharcado de sangue negro de orcs. O tempo, entretanto, não estava a seu favor e um poderoso temporal açoitou a floresta, enquanto pelejava só contra um enorme exército. O som estrondoso dos raios misturavam-se a seus gritos e injúrias e a àgua da chuva lavava o sangue negro de seu corpo. Tuor parecia incansável, e insaciável, pois cada orc que matava era vingança por um de seu povo. Mas tamanha era sua sede de vingança, que ele ficou cego para um orc grande que veio pela retaguarda e acertou-lhe com o cabo da clava. O mundo escureceu ao redor de Tuor e ele desmaiou, pedindo silenciosamente aos Valar, que protegessem Annael, Adrahil e seus companheiros.