O Cativeiro

Tuor finalmente despertou, sentindo o chão duro e frio abaixo de si. Surpreso por não estar morto, ele abriu os olhos e percebeu que o céu estava coberto por uma espécie de teto feito de madeira e palha. Seus pés estavam presos por correntes e o som do metal arrastando no chão ao seu lado fez com que se levantasse rapidamente. Haviam mais alguns homens com ele. O primeiro, parecia ter para lá de seus sessenta anos, e haviam outros dois, mais jovens. Um o olhava irritado e com desprezo, murmurando algo sobre estarem ferrados por sua presença alí.

— Olhe só, ele está vivo! — Disse o homem mais velho com uma expressão amigável.

Tuor levantou-se rapidamente, sentindo uma tontura acometer seu corpo. A cabeça latejava e demorou um pouco até sua visão recuperar o foco.

— O que…?! Onde eu estou?

— Bem vindo ao acampamento de férias, cabelos dourados! — Disse o jovem mau encarado. — E nós somos a diversão principal.

— Não o atormente, Galmod! — O velho estendeu a mão para Tuor apoiar-se e ele hesitantemente aceitou sua ajuda. — Qual é o seu nome, meu rapaz?

— Sou Tuor. Meu pai, Huor, da casa de Hador, caiu na batalha das lágrimas incontáveis.

— Assim como o pai de todo mundo. — Bufou Galmod.

— Não pode ser tão estúpido assim! — Repreendeu o outro jovem que estava com eles na cela. — O pai dele é Huor, irmão de Húrin! Eles lutaram com Fingon e os elfos contra o próprio Morgoth!

— Grande Merda. Que idiotice você fez para ser capturado?

Tuor estava em silêncio, e não teve tempo de lhe responder, pois com um brusco movimento, um homem alto de pele morena e longos cabelos negros moveu a grade da cela e puxou Tuor violentamente para fora.

— O que vão fazer com ele? — Indagou o detento mais velho, recebendo um olhar ameaçador do lestense.

— E é da tua conta, velhote? — Então olhou para o jovem Tuor, que embora ainda fosse um adolescente, não tendo completado sua plenitude de corpo e mente, já era mais alto que o lestense. — O chefe quer te ver, cabelos dourados.

Ele então o empurrou para frente, onde outros guardas acorrentaram suas mãos e o levaram para fora. O local parecia um acampamento militar, com cabanas de madeira e palha, e crianças pequenas carregando bagagens e alimentando os animais. Todos usavam correntes em volta dos pulsos e pescoços. Eles eram escravos. Ao passar por uma cabana, sentiu-se mal e um dos soldados percebeu seu desconforto e riu.

— O cheiro de gente morta! seu povo — Sua expressão divertida irritou Tuor, mas o garoto continuou andando. — Nós os matamos quando não são mais úteis.

— Claro que não as mulheres! Elas sempre têm alguma coisa para oferecer! — disse outro, que estava com eles, em voz alta e zombeteira.

Tuor não falou com eles. Ele seguiu o caminho que eles o fizeram seguir, ouvindo as provocações cruéis dos soldados, olhando ocasionalmente com piedade para aqueles que estavam lá há muito mais tempo, tentando não se perguntar em que horrores essas pessoas haviam caído.

Homens, mulheres, crianças e velhos olharam para ele com curiosidade enquanto Tuor era conduzido ao maior edifício do acampamento, a fortaleza dos Orcs e Lestenses. Lá dentro, os orcs o desamarraram e o libertaram. Mas não havia para onde correr. Um deles deu um soco na boca dele e seu corpo caiu no chão. Ele tentou se levantar, mas só conseguiu agachar-se; ele foi chutado por um orc que o empurrou para frente. O salão mantinha a beleza dos antigos senhores nas paredes e vigas ornamentadas, mas as mesas e móveis já haviam sofrido com a crueldade dos novos proprietários, e o chão estava coberto de restos de comida e manchas de bebidas secas. Um homem corpulento, muito bem vestido e de barba farta, desceu de uma cadeira maior, elevada para imitar um trono. O orc empurrou Tuor para perto do patamar.

— Então não é um elfo. — disse o homem com desdém.

— Mas ele estava com os elfos, meu senhor. - disse um dos lestenses.

— Já me disseram. — Respondeu rispidamente Lorgan, voltando sua atenção para Tuor e analisando-o. — Cabelos dourados… — Ele riu. — O sangue é o pior inimigo de um homem. Teus cabelos te denunciam, menino. Seria o filho que a mulher de Huor esperava quando fugiu de meus homens? — Ele não respondeu, mas direcionou um olhar furioso para Lorgan. — A grande Casa de Hador. — Desdenhou, irritando-se com o silencio do garoto e agarrou seu rosto, levantando-o para que o encarasse. — Sabe quem sou eu? Lorgan, Senhor das terras de Hitlum. O próprio Morgoth me deu estas terras. Tudo aqui me pertence. E todos.

Tuor , por sua vez, cuspiu no rosto de Lorgan.

— Você não é nada!- ele disse no final. – Apenas um cachorro sujo de Morgoth.

O Soldado, que estava logo atrás dele, bateu nele.

— Como ousa dizer algo assim para Lorgan, o senhor do norte!

Tuor riu e o homem ergueu a espada para cortar a cabeça dele, mas Lorgan o deteve e ergueu a mão.

— É isso que ele quer, uma morte rápida e indolor. — Ele se aproximou cada vez mais do rosto do garoto. — Mas não vou te dar esse prazer, cabelos dourados. — Ele se levantou e disse aos companheiros com escárnio: — Levem-no para o quartel dos escravos. Dê-lhe comida e água. Então levem-no para girar a roda e bombear água para as cisternas. A mula precisa descansar, rapazes! — Uma explosão de risadas encheu a sala. — Se ele não aguentar, podem chicoteá-lo.

Muito tempo Tuor passou no acampamento dos Lestenses. E sua presença tornou a vida de seu povo, de alguma maneira menos sofrida. Ele era forte e sempre os ajudava no trabalho quando podia, e por saberem que vinha do sangue de Hador, os algozes impunham sobre ele maior carga do que aos outros.

Um Lestense atarracado bateu a porta da cabana atrás de si e seguiu em direção ao pátio. Era dia claro, portanto, os orcs não estavam à vista, uma vez que odiavam a luz do sol. Mesmo assim, a atmosfera deprimente do lugar permanecia, fossem nas paredes manchadas e sujas, ou no ferro e madeira empilhados em montes desajeitados. O Lestense passou por um homem magro, sofrendo para carregar um balde de água. Este deve de se desviar com todo o seu peso, caso não quisesse ser atropelado pelo guarda. O lestense seguiu mais alguns passos e, imponente, chegou ao pátio central. Num canto, perto da fogueira, um grupo de escravos comia com as mãos em tigelas sujas uma comida pastosa, que retiravam do caldeirão pendurado sobre o fogo.

— E, Tuor! — Gritou o homem. — Chega de moleza, hora de alimentar os animais e limpar os estábulos.

Um homem alto, forte e de longos cabelos louros, que lhe desciam aos ombros, e uma barba rala, virou-se para responder-lhe, não com palavras. Apenas assentiu com a cabeça.

— Vou passar mais tarde para inspecionar. Ai de você se não estiver tudo em ordem.

Depois, saiu do pátio, olhando ao redor e procurando outro escravo para atormentar. Um dos escravos que comia ao lado de Tuor, sussurrou depois que o guarda se foi?

— Não sei como aguenta esse imbecil. Acabamos de chegar da floresta, meus braços estão doendo pelo peso das árvores e o corte da lenha.

— Bom, temos que aguentar…

— Eles te invejam. Fazem isso para te humilhar por causa de tua família. E você poderia matar pelo menos cinco deles só com as mãos. — Riu e Tuor fez o mesmo.

— Ele acabaria morto! — Disse Hathaldir. — Não enchas a cabeça do rapaz com estupidez.

— Eles também mataram meu pai. — Disse Galmod, olhando para Tuor com irritação. — Violaram minha mãe e minhas irmãs diante de mim e as mataram também. E depois me transformaram em escravo. — Bufou. — Estupidez é continuarmos vivendo essa vida miserável para fortalecer o nosso inimigo. Vocês são uns covardes! Prefiro morrer lutando, do que aos poucos nesse tormento.

Todos ficaram em silêncio, após Galmod dizer estas palavras, como se ponderassem a verdade no que ele dizia. Tuor raspou a última porção de comida da tigela com as mãos e comeu.

— Eles nos mantêm alimentados e fortes, pois somos bons em fazer o trabalho pesado, a maioria dos escravos passa fome e mal tem forças para fazer o que lhes é mandado, morrendo açoitados ou famintos.

Os outros os olharam espantados, desacreditando do que dizia. Exceto por Hathaldir, que embora não presenciasse o que seus algozes faziam aos demais, não duvidava em nada de sua crueldade.

Galmod balançou a cabeça para ele.

— Está tentando nos assustar. Como sabe disso?

Tuor levantou os olhos para ele. Sua expressão era sombria e triste.

— Sou eu que levo os corpos para a vala exterior. — Então suas palavras ganharam peso e ele prosseguiu. — Uma rebelião nossa não duraria mais que cinco minutos, com apenas alguns de nós mortos e todos os outros pagando o preço da nossa desobediência.

Tuor se levantou, foi até o barril com água e limpou sua tigela como podia. Os outros ainda estavam em silêncio quando voltou. Galmod o olhava com raiva, mas ele ignoraria isso.

Foi até os estábulos, limpou as baias dos cavalos e alimentou-os. Depois fez o mesmo aos cães, pegou uma pá e uma enchada, alimentou e limpou a pocilga dos porcos porcos. Havia uma confusão do lado de fora quando deixou o estábulo e Tuor ficou parado olhando ao redor para entender o que estava havendo. Um grupo de soldados lestenses acabava de trazer uma nova família para o campo de escravos. O homem, que vinha acorrentado logo à frente, parecia ser o pai. A mulher vinha logo atrás com dois meninos pequenos de não mais que oito anos e outro nos braços e no momento em que preparavam-se para separá-los, um dos meninos correu de encontro ao pai, suplicando que não fizessem tal coisa. Um lestense alto o agarrou pelos cabelos e o jogou no chão, e indignado com a cena, o irmão dele tentou defendê-lo, acertando chutes no soldado, que apenas o ergueu pela gola da camisa e enterrou uma espada longa na barriga da criança.

Tuor ficou imóvel, ouvindo o choro daquela família em contraste com as gargalhadas dos homens, que ergueram suas espadas e perguntavam qual dos quatro seria o próximo.

— Quem será o próximo engraçadinho?! — Gritou novamente o lestense que matara o menino. — O irmãozinho encrenqueiro? — Aproximou-se do garoto, que escondeu-se atrás de seu pai. Então ele tornou a olhar para a mulher e andou até ela, tomando à força a criança que tinha nos braços. — Ou que tal o baixinho? Hein, não haverá rações o suficientes para sustentar tantos moleques. — Ele soltou uma gargalhada. — E esse aqui, em particular, não é de muita serventia para nós.

— Não, não matem! — Implorava a mulher aos prantos.

Mas os olhos do soldado encontraram Tuor, à porta do estábulo e ele o encarou furioso.

— O que está olhando, escravo?! — Tuor não lhe respondeu. Desviou os olhos para a enxada que ainda trazia em mãos e com movimentos rápidos e precisos, ele a arremessou contra o lestense forte e furiosamente de modo que a lâmina lhe decepou a cabeça.

Os outros vieram correndo em auxílio do companheiro, mas Tuor era mais alto e mais forte que eles, tomou-lhes as espadas e com elas os matou diante de todos. Um a um, eles tombaram e o espanto tomou conta dos outros escravos, que assistiam ao que acabara de ocorrer. Ele adiantou-se para soltar o homem, que vinha acorrentado, e levantou o jovem menino que pranteava a morte do irmão.

— Precisam sair daqui. Agora! — Disse Tuor a eles. — Logo perceberão o que aconteceu. O povo da vila não receberá o castigo por nós, pois longe e fora de seus limites foi meu ataque. Não posso libertá-los, mas vocês têm a liberdade.

E depois os deixou, correndo para longe do vilarejo, pois bem sabia que Lorgan viria atrás dele. A família o agradeceu e seguiu em direção Sul, enquanto Tuor se virou para o Norte, e como previra, Lorgan os esquecera, pois sua ira estava voltada em direção ao filho de Huor. Ante porém, de deixar o acampamento, Tuo pegou machados, pás e enxadas dispostas nas pilhas de ferramentas e invadiu o alojamento de escravos, onde estavam Hathaldir, Galmod e o outro jovem, libertando-os e ajudando-os a fugir, matando muitos inimigos pelo caminho.

— Retiro o que disse sobre você. — Disse Galmod a ele, antes de se separarem na floresta. — Você é corajoso, espero que possamos nos ver novamente.

Tuor o abraçou fortemente e lhe disse:

— Eu também espero, meu amigo.