De Tuor

O silêncio da floresta foi quebrado pelo som de passos apressados. A mulher correu por entre as folhas, protegendo o rosto dos galhos intrusivos e fazendo o possível para evitar tropeçar nas raízes. Ela ficou desesperada e não conseguiu encontrar um lugar para se esconder. Seus perseguidores logo a alcançariam. Seu coração batia forte e ela sentiu que em breve ficaria sem forças para continuar. Ao longe ouvia os gritos e as risadas dos homens que a perseguiam, entusiasmados com a caça, como se fosse ela uma presa a ser abatida.

Suas pernas não serviam mais, o cansaço tirou suas forças e ela teve que se esconder. Ela olhou em volta como um animal encurralado, viu um emaranhado de arbustos muito densos, correu em direção a ele, rastejou, recebeu vários arranhões no rosto e no corpo, além de rasgar parte da roupa.

— Como você pode ser tão lento? — Reclamou um dos homens. Ela prendeu a respiração, sentindo seus olhos expelirem algumas lágrimas desesperadas.

— Eu? Foi você quem a perdeu!

— Consegue ver para onde ela foi?

— Ah, olhe! — Ele apontou em uma direção. — Esses galhos estão quebrados. Ela passou por aqui. Não deve ter ido longe com aquele barrigão.

Eles riram de forma maléfica.

— Então vamos. — disse o primeiro homem, sorrindo com entusiasmo, já tirando uma flecha da aljava e colocando-a no arco. — Vamos caçar.

Ele só conseguiu dar um passo antes que uma flecha arrancasse o arco de suas mãos e o enfiasse em uma árvore atrás dele. Os homens ficaram assustados e olharam em todas as direções, mas não conseguiram ver de onde vinha a flecha. O outro homem sacou uma longa faca da aljava, pronta para qualquer ataque, mas foi violentamente arrancada de sua mão com um estrondo. Outra flecha estava agora cravada no chão.

— Mas que diabos...?

— São elfos. — O outro homem ficou muito assustado e mostrou-lhe a flecha que acabara de tirar da árvore. Assim que os homens viram a flecha vindo do outro lado, esconderam-se atrás de uma árvore. — Vamos, estamos muito longe nas montanhas. — O homem sussurrou, segurando a flecha na mão.

— Eu não tenho medo de fadas armadas. — Desdenhou o primeiro homem, em um tom rude. — Morgoth os destruiu em Ardgalen. Agora o Norte é nosso. — Então o homem teve a coragem tola de gritar para a floresta. — Vocês perderam, elfos, esta terra agora é nossa. Nós destruiremos todos vo...

E antes que ele pudesse terminar a frase, uma terceira flecha lhe atravessou a garganta. Seu amigo encolheu-se atrás da árvore, espantado, largou a flecha que tinha na mão e correu o mais rápido que pode para longe dali. E aquela, certamente foi a ideia mais sensata que teve.

Um elfo saltou de uma árvore na direção oposta à que eles estavam, caminhou até o corpo estirado do caçador e recolheu as flechas que com ele foram desperdiçadas, limpando-as na própria roupa e as guardou de volta na aljava. Depois voltou-se para o local onde a mulher estava escondida e agachou-se próximo à moita.

— Você já pode sair. Eles não vão mais te machucar.

Ela estava tremendo e temerosa, mas fez o que ele dissera, aceitando a mão que o elfo estendeu para ajudá-la a se levantar. Respirou fundo o ar límpido da floresta, mas sentiu seu corpo fraquejar novamente e o elfo a ajudou a sentar-se sobre uma pedra. Ela pôs a mão sobre a barriga, angustiada, sentindo uma curta pontada de dor.

— Está tudo bem agora, não precisa se preocupar. Seu filho está bem. Ele nascerá quando for a hora e será saudável e forte como poucos de seu povo.

Ele lhe entregou um cantil com água e ela aceitou, bebendo logo em seguida, pois estava com muita sede, então finalmente o encarou. Seu olhar era de tristeza e pesar.

— Eu ouvi falar a respeito do dom de previsão dos elfos. Isso já me deixa mais tranquila.

Ele assentiu.

— Apesar disso, meu dom não me mostra quem você é e por que vagueia sozinha pelas florestas montanhosas de Mithrim com uma criança na barriga.

A mulher baixou a cabeça e permaneceu em silêncio por um tempo, como se fosse difícil para ela falar sobre sua sina.

— Sou Rían. Meu marido participou da batalha de elfos, anões e homens contra Morgoth no Vale de Ardgalen, de onde ele nunca mais retornou. Não sei se ele sobreviveu ou morreu na guerra... eu não aguentava mais esperar por notícias que nunca chegariam, e nossas terras se tornaram... Perigosas. Temi por meu filho e por mim. A floresta parecia ser meu único refúgio... Eu estava colhendo cerejas para comer quando aqueles homens me viram e vieram atrás de mim.

— Eram caçadores, do Leste. — Falou o Elfo. — Normalmente não sobem a montanha, mas... Estão ficando ousados. Eles foram aliados de Morgoth durante a guerra de que falou. A batalha das lágrimas incontáveis. Sou um dos elfos Cinzentos, chamo-me Annael.

Após explicar-lhe tudo a respeito da guerra, e de seu povo, convidou-a para abrigar-se com os elfos em sua morada, perto do Lago Mithrim. E seu convite foi de pronto atendido. Annael a abrigou em sua fortaleza e fez com que cuidassem dela e de seu filho. E foi numa noite bela e estrelada, após conversarem bastante sobre as antigas tradições dos elfos, que Rían começou a sentir que chegara a hora.

Os passos de Annael ecoaram tristemente por um dos corredores ornamentados. Eles conectavam os edifícios de pedra de uma fortaleza élfica no meio de uma floresta nas encostas ocidentais das Montanhas Mithrim. Um lago nas planícies distantes refletia o sol da manhã e brilhava. O elfo parou em frente a uma torre redonda. Através das janelas altas em forma de folhas, ele viu e ouviu um grupo de pequenos elfos cantando melodias calmas ao redor de uma cama larga. Rían estava adormecida sobre ela. Ao lado dela, um bebezinho dormia profundamente, enrolado em um cobertor branco. Um dos elfos viu Annael e saiu da sala para encontrá-lo.

— Ela está bem?

O elfo curador meneou a cabeça, não muito esperançoso.

— A doença avança depressa. Ela é forte, mas não está lutando. Temo que apenas tenhamos podido retardar sua partida. É como se ela não... Quisesse mais viver

— Por favor, façam o que for possível. — O elfo assentiu para Annael, e ele prosseguiu. — E o menino?

— O pequeno cabelos dourados. — Riu. — Ele é forte. E é saudável. Nunca vi um bebê humano tão resistente.

Annael deixou escapar um sorriso orgulhoso, então tornou a olhar para o elfo curador.

— Obrigado pela dedicação. Que Irmo e Estë continuem a te guiar.

A conversa foi, entretanto interrompida pela chegada de um terceiro elfo, um soldado que acabara de chegar apressado à cidade Élfica de Mithrim.

— Meu senhor, Annael?! Há dois dias, um grande grupo de lestenses passou por Eithel Sirion. Eles acampam a leste do lago. Resta saber que direção eles tomarão a seguir.

— São tantos assim?

O elfo assentiu.

— E não estão sozinhos. Com eles, vieram Orcs de Angband.

Annael bufou. Imaginava que não demoraria muito para que os imbecis do Leste começassem a aliar-se aos orcs. De uma forma ou outra, estes eram adoradores de Morgoth e tendo seu mestre perto ou longe, respiravam à sua vontade. E para adicionar, a sede dos orcs pela violência era insaciável. Quantos mais precisariam morrer defendendo seu povo, até que finalmente tivessem paz?

Rían estava sentada em seu quarto com um bebezinho de cabelos dourados nos braços. O menino sorriu para ela e segurou seus dedos entre suas pequenas mãos. A porta do quarto se abriu e Annael passou por ela, feliz com o que viu.

— Fico feliz em ver que você está bem. — Ele disse isso e a mulher olhou para ele. - Qual é o nome do garotinho?

— Seu pai queria que eu o chamasse de Tuor. Acho que é apropriado para ele.

— Isso é verdade. Estou feliz em conhecer o pequeno Tuor.

Então o sorriso de Rían desapareceu e sua expressão se encheu de melancolia novamente.

— Você sabe que os curadores apenas adiaram meu destino. E nele não está ver meu filho crescer. — Ela olhou para o menino com lágrimas nos olhos, depois olhou novamente para Annael. — Você... Você poderia cuidar dele para mim? Embora o futuro não possa ser previsto, Tuor, acredito que beneficiará enormemente tanto os humanos quanto os elfos.

— Não faça isso. — Anael pediu, mas sentiu que não havia mais nada que pudesse fazer. — Se desejar, criarei Tuor como meu próprio filho, mas ele precisa de você.

— Não quero que ele me veja murchar e morrer de tristeza. Isso é injusto com ele. — Então ela o entregou para o elfo, que assentiu e pegou o bebezinho nos braços. — No que me diz respeito, tenho que encontrar meu marido Huor e descansar.

E então Rían foi embora. Quando seu filho tinha apenas quatro meses, deixou-o com Annael e partiu rumo ao desconhecido. Os elfos não se opuseram a ela e cumpriram a promessa de criar o pequeno Tuor como filho, ensinando-lhe os costumes do povo élfico de Mithrim. Tuor era um menino forte e determinado. Conquistado em poucos anos o afeto daquele povo.

Assim como seu pai, Tuor era um rapaz robusto e forte, e lutava com destreza, brandindo o machado assim como Huor fizera. Dezesseis anos passou-se sob o sol, e agora, um Tuor adolescente lutava fervorosamente no pátio de treinamento da fortaleza élfica em Mithrin. O elfo que lhe fazia oposição, erguia uma espada de lâmina brilhosa e com facilidade o encurralava, pois tinha agilidade, enquanto o menino, embora jovem, fosse forte e habilidoso.

— Vamos lá, Tuor! Se conseguir me desarmar, eu te dou minha coleção de flechas novas! — Incentivou o elfo.

— Nem você acredita! — Tuor ofegava, recuava e atacava novamente, mas seu amigo afastava-se com maestria, fazendo giros e piruetas no ar, como já era costume dos elfos. — Nem o próprio Morgoth poderia fazer você largar aquelas flechas.

Ele golpeou a espada do elfo com o machado.

— Precisa de mais mobilidade, meu caro Tuor. — Gritou um dos elfos que assistiam, e só então eles notaram que o pátio estava repleto de elfos os observando, inclusive mulheres élficas, das filhas dos senhores élficos que lá viviam.

— Ele é extremamente forte, mesmo com pouca idade. — Uma delas comentou para as outras.

Tuor sorriu timidamente, mas sua distração lhe rendeu dois golpes seguidos de espada que o fizeram recuar. O pátio se encheu de aplausos, para o elfo que batalhava com ele, e Tuor, aproveitando-se da proximidade, enganchou a espada com seu machado e a jogou longe, desarmando o elfo, recebendo aplausos e assovios da plateia.

— Certo, acho que o machado ganhou a espada. — Brincou o elfo perdedor, cumprimentendo-o.

— Vai se despedindo da sua coleção de flechas, Mellonin.

Logo, um alvoroço chamou a atenção de todos.

— Annael pediu para informar que estamos de partida. A fortaleza deve ser evacuada! — Os presentes se entreolharam com espanto. — Só estou repassando as ordens. Não podemos perder tempo.

— Partir? — Tuor murmurou. Vivera nas montanhas desde seu nascimento, e raramente havia deixado aquele lugar. — Para onde?

— Para as cavernas de Androth… Teremos que passar para o outro lado das montanhas.

— É uma viagem perigosa. — Reclamou outro elfo.

Mas Tuor não prestou atenção. Subiu as escadas do pátio e viu Annael no alto da passarela, então apressou-se para alcançá-lo.

— Meu Senhor?! Por que devemos partir? Podemos ficar e lutar. Temos protegido essa fortaleza por anos…

— E quantos mais de nós precisarão morrer até que não precisemos mais? — O menino não teve resposta. — Somos metade do povo que já fomos. Caçados, aprisionados e levados para a servidão de Angband… Estamos minguando, Tuor. Devemos fugir enquanto ainda podemos.

Tuor assentiu, e fez uma reverência, preparando-se para ir, mas antes que fosse, voltou-se novamente para Annael.

— Perdoe-me, mas, se nossa partida é tão urgente, porque ainda está aqui e não preparando-se para partir, como todos os outros?

— Porque os orcs queimarão esse lugar até as cinzas quando chegarem… Estou me despedindo. — Respondeu Annael com um sorriso triste.