As sementes do mal

Maeglin ajoelhou-se ao lado do corpo de sua mãe. Ela suava e ofegava. Sua ferida não estava inchada ou inflamada, e não aparentava ser mais que um arranhão. Os curandeiros faziam de tudo para despertá-la, mas ela apenas murmurava algo como se estivesse em um terrível sonho. Ele segurou a mão de Aredhel, e seu rosto ainda era inflexível.

— Meu pai acha que você precisa descansar, Maeglin. — A voz de Idril o despertou. Já estava amanhecendo, Aredhel ainda não mostrava sinais de que estava melhorando.

— Aquele dardo era para mim. — Disse indiferente.

— Maeglin... — Ela tentou separar a mão dele da de sua tia, mas Maeglin agarrou seu pulso com a outra mão, e apertou furiosamente. — Maeglin, não!

Ele a soltou.

— Por favor, me deixe.

Turgon estava sentado em uma poltrona de frente para o fogo, encarando sem realmente ver. Seus pensamentos estavam nublados. Ele ouviu Idril entrar, mas não a olhou. Ela esfregava o pulso, seus olhos estavam marejados, não sabia se por causa do formigamento em seu braço, ou pela preocupação com sua tia.

— Maeglin não quer falar comigo.

— Ele está preocupado.

— Ela vai ficar bem... Não vai?

Turgon a olhou, examinando-a com os olhos, suspirou pesadamente, e levantou-se, vestiu sua túnica azul marinho. Foi em direção à porta e abraçou a filha, depositando um beijo terno no topo de sua cabeça dourada.

— Descanse, Idril. Tudo vai ficar bem pela manhã.

Ele desceu para o patamar inferior, onde ficava seu escritório e o caminho que ligava a torre do rei e o palácio real. Seus capitães estavam à porta e ele chamou alguns deles para que o acompanhassem.

— Não podemos deixá-lo sozinho com ele, meu senhor.

— Apenas peço que não se metam. — Ordenou.

Turgon entrou na ala da carceragem e moveu as grades. Ëol olhou para ele, parecendo um tanto quanto surpreso.

— Não imaginei que o Alto Rei dos Noldor visitava seus detentos durante a madrugada. — Desdenhou.

— Seu eu fosse tão sujo quanto você, poderia dar-lhe o mesmo tratamento que você dava à minha irmã.

O olhar de Turgon era sombrio. O elfo negro riu e ergueu os ombros.

— Por mais parecido que seja com ela, eu preferiria a presença de minha própria esposa.

— Aredhel não é sua esposa! — Ele ofegou, despindo-se de sua túnica. — Você não é marido dela, é um bastardo, um cretino covarde e sem escrúpulos.

— Quem pensa que é para me condenar? — Ëol levantou-se. — Aredhel merecia isso. Assim como vocês acharam por bem matarem meu povo e saqueá-los. Você acha que é muito mais nobre que eu, Assassino de Parentes?!

Turgon o acertou com um soco no rosto, e o derrubou no chão, então deu espaço para que se levantasse.

— Aredhel não ergueu sua espada em Alqualondë. — Ele disse com seriedade. — Ela não derramou o sangue de seu povo, ela não participou daquilo. — Rosnou. — Você por acaso perguntou à ela antes de forçá-la a ficar com você? Antes de agredi-la, antes de maltratá-la, você pensou?

— De que me importa? — Ëol retrucou. — Ela é uma Noldo.

Turgon avançou sobre ele. Seus socos tornaram-se mais violentos, seus golpes eram rebatidos.. Ëol era mais alto que ele, mais selvagem, e o acertou com muito mais força. No entanto, o rei era perseverante. E a raiva podia fazer maravilhas quando provocada. E Ëol sabia o que dizer para provocá-lo. Ele o prendeu no chão, com a mão em sua garganta, sussurando o quão facilmente os filhos de Fingolfin eram subjugados, o quão subserviente Aredhel havia sido a ele, o quanto ela gritava de dor e desespero, quando ele a possuía.

Turgon mordeu sua mão e o empurrou com os pés para a parede, então caiu sobre ele com socos certeiros em seu rosto. Desesperado e sem controle, ele quase se parecia com seu pai, à primeira vista. Revoltado e corajoso, o rei Fingolfin havia desafiado Morgoth no auge de sua loucura, e não fossem as cruéis teias do destino, talvez tivesse vencido.

Ëol estava quase inconsciente quando seus guardas invadiram a cela e o arrastaram para fora. O rei gritava injúrias e maldições, e declarava o quanto desejava matá-lo alí mesmo, matá-lo da maneira mais impiedosa possível e que seu sofrimento fosse mais profundo do que qualquer tormento de Angband.

Ele voltou por onde havia vindo, furioso e até seus guardas não ousaram ficar em seu caminho. Bateu a porta dos aposentos reais com tamanha violência, que Idril saltou de onde estava. Os olhos prateados da elfa se arregalaram ao ver os hematomas no corpo do pai.

— Ada... — Ela o chamou, mas não teve resposta. A porta do quarto do rei se fechou retumbante e ecoou por toda a casa.

Idril encolheu-se no sofá e chorou desamparada. Já era péssimo tudo o que estava acontecendo, e agora, seu pai perdia o controle. Ela havia visto aquele olhar uma vez. Primeiro em Fëanor, depois em seu avô Fingolfin e seu tio Fingon, agora seu pai apresentava o mesmo sintoma. Ela não soube exatamente quanto tempo se passou antes de finalmente tomar coragem e bater na porta do pai. Não houve resposta, então ela finalmente entrou para encontrá-lo encolhido ao lado da cama, chorando como uma criança. Idril nunca o havia visto dessa forma. Na verdade, era inconcebível para o tão centrado rei Turgon de Gondolin, o alto Rei dos Noldor.

Seu coração afundou quase ao mesmo tempo que seu corpo, ao lado dele. Ela o envolveu com os braços, assim como ele fizera, há muito tempo com ela, em suas noites de desolação.

— Eu vou matá-lo... — Ele murmurou.

— Ele não matou minha tia, Ada. Pelas leis dos Eldar...

— Os valar engulam as leis! — Ele esbravejou. — Minha irmã está morta desde a primeira vez que ele a tocou. E ele vai pagar por isso.

Idril conversou um pouco mais até que ficasse acordado que Ëol não seria morto, ao menos não por enquanto. O Rei já parecia melhor e ela pegou alguns suprimentos para cuidar de seus ferimentos. Não perguntou o que havia ocorrido, na verdade estava óbvio.

Eles ouviram alguém bater na porta, com um pouco de urgência e Turgon apenas sussurrou que entrasse. O mensageiro os olhou preocupado, e gaguejou antes de dar-lhes a notícia:

— M-meu senhor... Vossa alteza, a princesa Aredhel, sua irmã...

— Eu sei quem ela é! — Rugiu Turgon com mau humor.

— Ela não resistiu ao ferimento, ela... Ela morreu.

— Não! — Idril exclamou, levando a mão aos lábios para sufocar o choro.

Turgon piscou os olhos, ignorando as lágrimas.

— Explique-se.

— Ela... A ferida estava contaminada com algum veneno. Não é como mada do que vimos aqui.

Idril correu do quarto de volta à ala de cura, onde Maeglin estava ajoelhado, ao lado da mãe, ainda segurando a mão dela. Seu olhar era inexpressivo e não mudou com a chegada de sua prima.

— Maeglin...

— Eu o vi bater nela uma vez. — Disse sem olhá-la. — Eu tinha sete anos. Acho. Ela me ensinou uma nova palavra em Quenya, mas acho que falei alto demais. Ele ouviu e disse que ela estava tentando me colocar contra nossa família. Então... Ele a acertou. O rosto dela ficou marcado por três dias.

— Eu sinto muito, Maeglin.

— Eu também. — Disse. — Ela não merecia morrer.

Eöl foi trazido diante de Turgon, não encontrou misericórdia; e o levaram para o Caragdûr, um precipício de rocha negra no lado norte do monte de Gondolin, para lançá-lo dos muros íngremes da cidade. E Maeglin ficou de lado e nada disse. A cidade inteira havia se mobilizado para assistir o que seria a primeira execução no reino oculto. Os olhos do rei brilhavam ele proferiu a sentença diante de todo o seu povo.

— Por seus crimes de sequestro, estupro, agressão doméstica, coito forçado e tentativa de homicídio contra minha irmã, Aredhel Ar-Feiniel, por seus maus tratos a seu filho, Lómion, a quem chamas de Maeglin, pelos imsultos à família do rei, e à seus parentes, os Noldor e os Teleri, pelas blasfêmias proferidas contra o povo de Gondolin, eu, Turgon Fingolfiníon, rei dos Gondolodrin e Alto rei dos Noldor, o sentencio à morte.

— Sua sentença não vale nada para mim! — Bradou o elfo.

— Eu só preciso que ela resulte em sua morte.

Ëol olhou ao redor e encontrou os olhos de Maeglin, que o encarava impassível. Ele fizera questão de estar presente.

— Então abandonas teu pai e a gente dele, filho mal nascido? Aqui hás de fracassar em todas as tuas esperanças e que aqui morras, ainda, da mesma morte que eu.

Não houve nenhuma resposta. Turgon fez um sinal com a cabeça para seus guardas. Então lançaram a Eöl do Caragdûr, e assim morreu, e a todos em Gondolin pareceu fim justo. Embora para Turgon, ele talvez merecesse muito mais do que ter deus ossos espalhados pelas pedras. Turgon o faria sofrer se pudesse, mas decidiu que aquilo seria o suficiente.

Os Gondolodrin fizeram um enterro apropriado para Aredhel e houve pranto por mais de uma semana por ela. Maeglin não era visto em quase lugar algum e nem mesmo comparecera à cerimônia. Turgon pensou que talvez fosse melhor deixar o sobrinho lidar com a dor a seu modo. Não lhe imporia maior sofrimento do que já havia tido. Talvez com o tempo, ele se curaria da dor, tal como ele se curaria da dor de perder Elenwë, e a ferida se tornaria uma cicatriz de lembranças, mas não sangraria mais.

De qualquer forma, Maeglin parecia ansioso por procurar algo útil para fazer. Passou a perambular atrás de membros da guilda dos mineradores, implorando por uma vaga de aprendiz, até que o próprio Turgon pediu que lhes dessem uma chance. Eles agradeceriam ao rei mais tarde, pois descobriram que o jovem Elfo era habilidoso em seu ofício, não apenas para minerar, mas para forjar, embora as pedras o cativassem mais que a forja.

Não demorou muito para que obtivesse o selo da guilda e passasse a trabalhar incessantemente com eles. Turgon também o iniciara no treinamento militar e via que o rapaz aprendia com rapidez tudo o que lhe era ensinado, pois, se queria aprender ávida e rapidamente tudo o que pudesse, tinha também muito a ensinar.

Sábio em conselho era Maeglin, e cauteloso, e, mesmo assim, pertinaz e valente quando necessário. Ele reuniu ao seu redor aqueles que tinham maior afinidade pelo trabalho de ferreiro e pela mineração; iniciou a busca nas Montanhas Circundantes e descobriu jazidas de minério de vários metais preciosos. Sua maior valorização era pelo metal forte da mina de Anghabar, localizada ao norte das Echoriath, de onde obteve riquezas em metal forjado e aço. Isso resultou em armas ainda mais fortes e afiadas para os Gondolindrim, o que foi muito valioso nos dias que se seguiram.

Quando a terrível batalha das lágrimas incontáveis bateu à porta, Maeglin marchou ao lado do tio contra Morgoth. Maeglin não quis permanecer em Gondolin como regente, mas foi à guerra, e lutou ao lado de Turgon, e se mostrou feroz e destemido em batalha.

Turgon se orgulhava do sobrinho e o tinha como seu próprio filho, o que às vezes causava certo desconforto em Idril, principalmente quando Maeglin parecia interpretar de maneira equivocada a proximidade com ela.

Dessa forma, as coisas pareciam estar indo bem para a sorte de Maeglin. Ele havia se tornado poderoso entre os príncipes dos Noldor e era o mais proeminente em um dos reinos mais renomados, exceto por um.

Desde o momento em que chegou a Gondolin, ele carregava consigo uma tristeza que só aumentava, roubando-lhe toda a alegria: amava a beleza de Idril e a desejava, mas sabia que não tinha esperança. Mas Idril não amava Maeglin de jeito nenhum. Ao conhecer o seu pensamento sobre ela, o amor que sentia por ele diminuiu ainda mais. Porque lhe parecia algo estranho e distorcido, como os Eldar sempre acreditaram: um fruto maligno do fratricídio, pelo qual a sombra da maldição de Mandos caía sobre a última esperança dos Noldor.

Conforme os anos passavam, Maeglin continuava a observar Idril e esperar, enquanto seu amor se transformava em escuridão em sua alma. Ele procurava obedecer a vontade em outras áreas, sem evitar esforço ou responsabilidade, se isso lhe desse poder.