Os pecados do pai

A noite estava bela e boa parte dos cidadãos de Gondolin deveria estar na praça do mercado. Idril e Maeglin correram de lá com alguma pressa, rindo feito duas crianças travessas. Ele a segurava para que ela não caísse enquanto tentava arrancar os sapatos, que - de acordo com ela - a haviam perturbado durante todo o dia.

— As pedras não vão machucar os seus pés? — Ele perguntou, achando aquilo tudo muito estranho.

— Não, na verdade. Eu estou acostumada. — Idril soltou-se do primo e tornoua caminhar, segurando as sapatilhas juntas em uma das mãos. — Eles me chamam de Celebrindal. Não faço idéia do porquê, mas certamente tem a ver com minha aversão a sapatos.

— Faz sentido. — Ele a olhou de cima abaixo. Tudo nela era reluzente, até mesmo seus pés descalços sobre a grama do jardim. Alguns segundos se passaram até que Idril desviasse os olhos e ele notasse que estava encarando-a por tempo demais.

— Bem... — Ela continuou andando. — Está tarde, acho que devemos voltar. Fico feliz que tenha aparecido o concerto.

— Eu amei. — Principalmente a parte em que ficava ao lado dela durante toda a noite. — E você está certa, está ficando tarde...

Eles ouviram um som como que de algo quebrando ao chegarem no jardim do rei, logo abaixo do quarto de Aredhel. Maeglin se desesperou, ouvindo vozes exaltadas. Vozes que ele havia ouvido por toda sua vida.

— O que está acontecendo?

— É ele. — Disse seriamente, então agarrou o braço de Idril, arrastando-a de volta paraa torre do rei.

— Quem? — Ela tentou se soltar da mão do primo, enquanto o seguia, mas ele era forte, e aparentemente o desespero fizera com que se esquecesse que ele poderia machucá-la se apertasse daquele jeito. — Lómion...

— Meu pai. Ele nos encontrou, mas eu não sei como. Tenho que pegar minha espada.

— Sua... O quê? Espere! Temos que dizer ao meu pai.

— Não há tempo.

— Lómion! — Ela tentou firmar o corpo, e só então Maeglin parou. — Por favor, solte o meu braço.

Os olhos escuros do elfo caíram sobre ela e ele pareceu assustar-se, soltando-a imediatamente.

— Me perdoe, eu não queria... Eu não tive intenção de te machucar.

— Eu sei. Está tudo bem, você só está com medo. Eu vou chamar meu pai e você, pegue sua espada.

Ele concordou. Era hoje. Ele mataria Ëol e o faria pagar por seus crimes. Idril afastou-se dele e quando já não podia vê-lo, esfregou o antebraço, que agora começava a ficar roxo. Aquilo desapareceria em breve. Tudo ficaria bem.

••

Aredhel não conseguiu se mover. Ficou parada de frente para o marido. Sua respiração acelerou e ela o observou caminhar em sua direção.

— Ëol... Como me encontrou?

— Você não é incompetente só para criar nosso filho. — Ele riu. — Eu segui seu rastro. — Aproximando-se ainda mais. — Você não devia ter fugido. Não devia ter vindo encontrar os assassinos de parentes.

— Eles são minha família! — Ela se exaltou. Ëol encurtou a distância e a agarrou pelos cabelos, puxando-a para perto de seu corpo. — Aii!

— Eu sou sua família, sua vadia ingrata! Eu sou o seu marido, eu a protegi e impedi que você morresse naquela floresta, eu dei um filho a você!

— Você se aproveitou de mim!

Ele torceu ainda mais a mão, puxando-a de modo que seu rosto encostasse em seu peito. Os olhos claros de Aredhel lacrimejaram de dor. Ela tentou gritar, mas ele agarrou seu pescoço e o ar desapareceu de seus pulmões.

— Você é minha mulher, Aredhel. — Repetiu. — Me deve obediência. — Então afrouxou a mão que a mantinha presa pelo cabelo e soltou seu pescoço, passando a acariciá-lo. — E amor.

— Eu... Eu nunca vou amar você.

— Que seja! — Ëol a agarrou pelo braço. — Pois nós estamos indo embora sgora mesmo. E você vai desejar estar morta quando chegarmos em casa.

— Não vou a lugar nenhum com você!

Com um pouco de força, Aredhel soltou-se do aperto do marido e o empurrou para longe. Ela correu até a cama e procurou por baixo do travesseiro uma pequena adaga que agora escondia alí, mas Ëol a agarrou primeiro e usou o peso de seu próprio corpo para mantê-la presa. Ela gritou quando ele a virou e acertou um tapa furioso em seu rosto.

— Eu imaginei que você fosse esperar estar em casa para me atrair para a sua cama. — Ele riu com ironia.

— Vá para o inferno! — Praguejou Aredhel, enquanto lutava para se libertar. — Me solte, Ëol!

Ele acertou outro tapa, um pouco mais forte e Aredhel finalmente parou de lutar. Agora ela soluçava de dor e implorava para que ele a deixasse em paz.

— Perfeito. — Disse ele. — Gosto quando você entende seu lugar.

— Por favor, por favor, Ëol, me deixe em paz!

— Você é minha mulher. — Ele disse novamente. — Vai voltar comigo para casa ou... — Então pegou o punhal que Aredhel escondera sob o travesseiro e o levou à garganta dela. — Ou não viverá em lugar nenhum.

Ela abriu a boca para falar novamente, mas a porta foi arrebentada por Maeglin, que entrou furioso, portando a espada negra que tomara do arsenal de seu pai. Ele o encarou furioso. Aredhel estava presa debaixo do elfo, que a segurava pelos pulsos, enquanto prendia seu corpo sob o joelho.

— Saia de cima dela. — Ele ordenou. Ëol não pareceu disposto a cooperar.

— Ou o quê?

Em vez disso, pressionou mais o punhal no pescoço da esposa. Ele normalmente a usava como trunfo em alguma rara briga com Maeglin. Ëol tinha o dom de manipulação. Antes, ele o usava para manter Aredhel presa, ameaçando fazer algum mal a Maeglin quando ela não o pudesse proteger, depois passou a usá-lo com o filho, ao notar que ele já era crescido demais para ser ameaçado. Então, passou a incluir Aredhel em seus subornos a ele.

— Eu não tenho medo de você. — A mão de Maeglin suava e ele sentiu o punho da espada pesar.

— Não é o que parece.

— Deixe-o em paz, Ëol! — Suplicou Aredhel, tentando inutilmente mover-se

Ele ignorou totalmente o que a elfa disse.

— Arrume duas coisas, Maeglin. Iremos para casa.

— Essa é minha casa. — Retrucou o rapaz. — Esses são meus parentes.

— Você não é louco!

— Talvez eu seja. Afinal, sou filho de um louco.

Ëol rosnou para ele, e apertou o pescoço de Aredhel com uma das mãos. Ela perdeu o ar e seus olhos liberaram mais algumas lágrimas. Lómion olhou impassível para ela.

— Você é da casa de Eöl, Maeglin, meu filho, e não dos Gondolodrim. Toda esta terra pertence aos Teleri, e eu não vou negociar nem permitir que meu filho negocie com os assassinos de nossos parentes, os invasores e usurpadores de nossos lares. Nisso você deve me obedecer, ou eu vou colocá-lo em correntes.

O rapaz apertou o punho da espada e a ergueu para ele. Ele não feriria Aredhel, não a ponto de matá-la. Ele a amava. De maneira distorcida, mas a amava.

— Eu gostaria de vê-lo tentar. — Turgon surgiu pouco depois de ouvir tais palavras, Maeglin estava pronto para avançar e decapitar o pai. — Agora... Tire as mãos de cima da minha irmã.

Turgon não precisava de uma espada. Sua voz foi suficiente para fazê-lo recuar. Ele deixou Aredhel livre, e a ajudou a levantar-se, mas ela se afastou dele logo em seguida.

— Como quiser, majestade. — Zombou o elfo negro. — Não desejo causar-lhe nenhum transtorno. Apenas vim para buscar minha família e levá-los de volta à nossa morada.

O rei revirou os olhos, olhou para seus guardas e ordenou que conduzissem Ëol à sua presença, na sala do trono, onde se julgaria o que deveria der feito dele. Se fosse por Turgon, ele o castraria com suas próprias mãos e o faria engolir o que restasse de sua masculinidade, mas eles eram os Eldar, dos que vieram do Oeste. Aquele tipo de selvageria não estava em suas leis. Aredhel desabou sobre o colchão após levarem Ëol de sua presença, sendo amparada pelo braço forte do irmão.

— Aredhel... — Ele a abraçou. — Eu não sei como ele conseguiu entrar aqui, mas...

— Ele nos seguiu. — Concluiu Maeglin. Aquela era a única explicação. — Precisa evitar que ele chegue perto da minha mãe.

— Ele nunca mais fará isso. — Disse. Aredhel parecia sequer estar alí. Seu corpo todo tremia e ela expelia lágrimas silenciosas pelos olhos vidrados e cinzentos. — Ele machucou vocês?

Ela finalmente acordou de seu transe e negou com a cabeça.

— Vou trazer um chá de ervas para acalmá-la. — Sugeriu Idril. — Mas o que será feito do Elfo Negro?

A noite sequer chegou ao fim e uma multidão de lordes estava reunida no grande salão. Eöl foi trazido ao salão de Turgon e se postou diante de seu assento elevado, orgulhoso e insolente. Embora estivesse não menos admirado que seu filho diante de tudo o que via, seu coração se encheu ainda mais com raiva e com ódio dos Noldor. Mas Turgon tratou-o com honra, e se levantou, e desejava dar-lhe a mão; e disse:

— Desconsiderarei o incidente que vimos hoje cedo, parente. — A palavra saiu amarga de sua boca. — És marido de minha irmã, e ela não deseja que eu o mate, por mais que esse seja o meu desejo. Aqui hás de habitar a teu bel-prazer, salvo apenas que deves aqui morar e não partir de meu reino; pois é minha lei que ninguém que ache o caminho até aqui haja de partir.

Ëol olhou ao redor e recuou a mão.

— Não reconheço tua lei. — Disse. — Nenhum direito tens, tu ou qualquer outro de tua gente nesta terra, de abarcar reinos ou pôr fronteiras, seja aqui ou ali. Esta é a terra dos Teleri, à qual trazeis guerra e injustiça.

Turgon mordeu a língua. Que direito ele achava que tinha de falar sobre injustiça após o que fez com Aredhel?

— Gondolin é minha. — Retrucou o rei. — E esse são os meus termos. Não deixarei que partas daqui e reveles nossa posição.

— Não me importo com teus segredos e não vim te espionar, mas apenas reclamar o que é meu: minha esposa e meu filho.

Um burburinho se alastrou pelo salão, antes que Turgon erguesse a mão e dissesse.

— Eles não irão a lugar algum.

Ëol riu para ele.

— Se você acha que tem alguma autoridade sobre Aredhel. Boa sorte! Ela irá se cansar dessa gaiola, como ocorreu uma vez. Mas não Maeglin. Meu filho não hás de tirar de mim. — Então virou-se para o garoto, ainda quieto, parado ao lado da prima. — Vem, Maeglin, filho de Eöl! Teu pai te ordena: deixa a casa dos inimigos e dos assassinos da gente dele ou sê maldito!

Maeglin não respondeu.

Então Turgon se sentou em seu alto trono, segurando seu cetro de julgamento e, com voz severa, falou:

— Não vou discutir com você, Elfo Escuro. — Desdenhou. — O seu maldito covil é guardado pelas espadas dos Noldor. E apenas por nossa causa, você ainda não se tornou escravo de Morgoth. Aqui estou, sou o rei desta terra, você querendo ou não. E eis o meu julgamento: Você poderá ficar aqui, e eu tentarei esquecer o mal que fez à Aredhel durante todos esses anos, e suplicar à Varda que me dê forças para não matá-lo. Ou poderá morrer aqui e agora. O mesmo serve para teu filho.

Então Eöl olhou nos olhos do Rei Turgon e não se acovardou, mas se postou longamente sem palavra ou movimento, enquanto um silêncio parado caiu sobre o salão; e Aredhel teve medo, sabendo que ele era perigoso. Súbito, célere como serpente, ele tomou um dardo que escondera sob seu manto e o lançou contra Maeglin, gritando:

— Eu escolho a segunda opção para mim e para meu filho! Você não tomará o que é meu!

— Não! — Aredhel se jogou na frente de Maeglin e estremeceu ao sentir o dardo perfurar seu ombro, rasgar e cair do outro lado do salão.

Ëol congelou onde estava. Ele não pretendia matá-la. Não. Ele a amava. Do jeito distorcido dele, mas a amava. Os guardas se lançaram sobre ele, enquanto Maeglin segurava sua mãe nos braços. Aredhel sentiu o corpo fraquejar e caiu desacordada nos braços do filho.