Proscrito

Por muito tempo, Tuor vagou pelas terras ao sul de Hitlum, fugindo o máximo que pode dos domínios de Lorgan. Se sua busca se mostrasse frutífera, ele poderia encontrar o Portão dos Noldor, e o caminho para Turgon, de quem solicitaria ajuda para a libertação de seu povo. Após alguns meses de viagem, entretanto, sua procura parecia não mostrar resultados, embora muitas coisas belas e prazerosas estivessem entre os limites do Norte e as fozes do Sirion.

Tuor encontrou sua antiga morada nas cavernas, e lá acampou por algum tempo, recuperando sua lança e sua harpa, alguns suprimentos, antes de seguir viagem. Encontrou alguns viajantes e proscritos em seu caminho e eles o indicaram a direção em que deveria seguir, mas por mais perto que parecesse, seu coração ainda sentia que ele estava longe de sua meta. Uma caravana de Elfos o encontrou em um entardecer, e Tuor pareceu animado ao vê-los, chamou-lhes a atenção e o favor e eles falaram com ele.

— Não és um elfo. - Disse um deles. Seu nome era Gelmir e ele possuía os cabelos brilhantes dos parentes de Finarfin. - E ainda assim, parece-te muito com um de nós.

— Fui criado pelos elfos. - Ele respondeu. - Mas agora busco redenção para mim e para o povo que por tantos anos negligenciei. O povo de meu pai, das terras de Hitlum.

Gelmir agitou-se.

— Sinto por teu povo, Tuor, filho de Huor. E ajudaria em qualquer coisa que pudesse.

— Bem... - Tuor olhou ao redor. - Tenho buscado pelo portão dos Noldor e por Turgon, a quem hei de pedir ajuda.

Os elfos se entreolharam e tornaram a dar-lhe atenção.

— Tua busca acabou. - Então Gelmir apontou-lhe o arco não muito longe dalí, de onde acabaram de vir. - Acabamos de passar por este portão. Mas quanto a Turgon, não sabemos de sua morada e creio que não poderíamos dizer-lhe se pudéssemos.

— Obrigado, Gelmir. De qualquer forma.

Tuor mostrou-lhes um sorriso sincero, e afastou-se, despedindo deles com as palavras que aprendera de Annael, desejando-lhes a benção dos Valar. Ao menos parte de sua jornada estava concluída. Do Portão, ele seguiu até Nevrast, antiga morada de Turgon, de onde se podia divisar o grande mar, Belegaer. E Tuor enamorou-se dele e o som das águas e o anelo que traziam estavam sempre em seu coração e ouvido, e uma inquietação veio sobre ele.

Alí, Tuor habitou até o verão, quando um sinal lhe veio em forma de belos cisnes, que o guiaram até Vinyamar, que também fora fortaleza de Turgon, agora abandonada. Tuor pareceu um tanto quanto assustado, pois por sua deliberação jamais poderia encontrar tal tesouro. Ele vislumbrou o trono e ao lado dele, estendida sobre uma parede, uma armadura élfica, cujo brasão no escudo trazia o símbolo da casa de seu pai adotivo, Annael.

Ela o chamava, e Tuor apenas obedeceu sua voz, sentindo impelido a isso. Ele a vestiu e descobriu que servia perfeitamente em seu corpo. O escudo era leve, tal como o costume dos Eldar. Algo muito estranho parecia guiá-lo e ele simplesmente se deixava guiar. Desceu as escadas da fortaleza, para a praia, ainda apaixonado pelo mar. Tuor passou algum tempo olhando para ele, tentando entender o que estava acontecendo e como aquela busca pelo que ele já não sabia, poderia levá-lo a Turgon e à libertação de seu povo.

As nuvens ao longe eram escuras e uma grande tempestade se aproximava pelo mar. Tuor não pôde desviar os olhos, enquanto as ondas cresciam e cresciam, vindo em sua direção. A onda arrebentou e rugiu contra ele. Tuor deu um pequeno passo para trás, mas manteve-se firme, observando a água tomar a forma de um vulto, grande demais para ser visto à distância, e seus joelhos cobertos até a metade pela água. Tuor prostrou-se, vendo que estava diante de um poderoso rei. A coroa do grande ser reluzia como prata, e seus cabelos caiam como a espuma branca, misturando-se novamente com a água.

— Levante-se Tuor, filho de Huor. - O ser disse a ele. - Não temas minha ira, pois Ulmo, senhor das águas, escolheu-te como mensageiro. - Os lábios de Tuor sa abriram, mas ele não ousou falar. - Apressa-te, pois agora um inverno cruel logo chegará da terra do Inimigo. Precisas aprender a te apressar e a estrada agradável que te projetei precisa ser mudada. Pois meus conselhos foram desprezados, um grande mal arrasta-se sobre o Vale do Sirion e já uma hoste de adversários se interpôs entre ti e tua meta.

— Ma-mas... - Ele balbuciou novamente. - qual é minha meta, Senhor?

— Aquilo que teu coração sempre buscou, - respondeu Ulmo, -encontrar Turgon e contemplar a cidade oculta. Pois estás assim armado para seres meu mensageiro, nas próprias armas que outrora decretei para ti. Agora, porém, terás sob a sombra de atravessar o perigo. Envolve-te portanto nesta capa e jamais a ponhas de lado até chegares ao fim de tua jornada.

Pareceu então a Tuor que Ulmo partiu seu manto cinzento e dele lançou-lhe um pedaço, que, ao cair sobre ele, era como uma grande capa na qual podia enrolar-se totalmente, da cabeça aos pés.

— Caminharás sob a minha sombra. Mas não te detenhas mais, pois nas terras de Anar e nos fogos de Melkor ela não resistirá. Assumirás minha missão?

Tuor ainda parecia surpreso, mas assentiu.

— S-sim, Senhor!

— Então porei palavras em tua boca para serem ditas a Turgon. - Disse Ulmo. - Mas primeiro vou te instruir e ouvirás algumas coisas que nenhum outro Homem ouviu, não, nem mesmo os poderosos entre os Eldar.

Tuor pôs sobre si a capa de Ulmo, e seus olhos pesaram e ele caiu em um sono tempestuoso, onde divisava as profundezas das águas e os segredos do mundo. O sonho se desfez e a tempestade havia desaparecido. O alvorecer trouxe um céu claro e as ondas estavam calmas novamente.

Ele olhou ao redor e não achou nada do que vira na noite anterior. Sua cabeça doía e a claridade fez seus olhos arderem, conforme olhava para o horizonte. O Sol ainda estava baixo, e não surgira por detrás das rochas. Ainda era cedo. Ele viu ao longe, alguém parado à beira da praia, levantando-se com alguma pressa foi ao encontro do estranho. Ele vestia roupas do povo élfico, mas suas vestes estavam encharcadas. O elfo o olhou ainda parado à beira da água, imóvel e com os olhos avermelhados cheios de lágrimas. Tuor sentiu seu coração apertar e o chamou por um nome que ele jamais havia aprendido:

— Salve, Voronwë! Eu te aguardo!

Então o Elfo voltou-se , erguendo o olhar, e Tuor enfrentou a visão penetrante dos seus olhos cinza-marinhos e soube que ele pertencia ao alto povo dos Noldor. O elfo o encarou por mais alguns instantes, antes de voltar seu olhar para as ondas que se agitavam no oeste.

— Há muito tempo que trabalho no mar implacável. Diga-me: há alguma boa notícia desde que pisei em terra firme? A sombra foi derrotada? Todos os ocultos foram revelados?

— Não. — Respondeu Tuor. — A sombra avança depressa e os ocultos, se mantém onde estão.

Os ombros do elfo baixaram em desânimo, e Tuor permaneceu olhando-o com passivamente, até que Voronwë voltasse seus olhos para ele, um tanto quanto confuso.

— Diga-me, quem é você? E como pode saber o meu nome? Pois muitos anos atrás minha gente abandonou esta terra e desde então ninguém morou aqui. E agora percebo que, apesar de estar vestido como tal, você não é um elfo.

— Bem observado. — Confirmou Tuor. — E você por acaso, não é o último marujo do último navio que buscou o Oeste desde os Portos de Círdan?

— Ahn... Sim. Sou Voronwë, filho de Aranwë. Mas ainda não me respondeste.

Tuor suspirou.

— O Senhor das Águas falou comigo na noite passada. Sobre muitas coisas, mas também, me falou a teu respeito. Aquele que seria salvo do naufrágio e da ira de Ossë.

Voronwë deu um passo para trás.

— Ulmo falou com você? Então... Grande deve ser sua estima entre os deuses. Que coisas te disse o Senhor das Águas a meu respeito?

— Disse que havia de te salvar da ira de Ossë e te enviar para cá para ser meu guia.

Voronwë recuou.

— Mas aonde haveria de guiar-vos, senhor? Pois em verdade deveis ser um rei dos Homens e muitos devem aguardar vossa palavra.

— Bem.. Não, na verdade. — O olhar de Tuor se desviou para o mar, mas ele manteve o tom sereno. — sou um servo fugido. E sou um proscrito sozinho em uma terra deserta. Mas tenho um mandado para Turgon, o Rei Oculto. Sabes por qual estrada posso encontrá-lo?

— Muitos que são proscritos e servos, nestes dias perversos, não nasceram assim — , respondeu Voronwë. — Um senhor dos Homens és por direito, creio eu.

O homem abriu a boca para responder, mas não conseguiu dizer-lhe. Ele de fato era senhor por direito da casa de seu pai.

— Mas, mesmo que fosses o mais nobre de todo o teu povo, não terias o direito de buscar Turgon e vã seria tua demanda. Pois, ainda que eu te conduzisse aos seus portões, tu não poderias entrar.

As últimas palavras do elfo foram ditas em desânimo. Tuor deixou a mão repousar sobre o ombro do mesmo e apenas disse:

— Você não precisa. Ao chegarmos, a Sentença há de competir com o conselho de Ulmo. Se Turgon não me receber, minha missão estará completada, de qualquer forma... — Suspirou. — Agora, quanto a meu direito de buscar Turgon. Sou Tuor, filho de Huor e parente de Húrin, cujos nomes Turgon não esquecerá. E busco também pelo comando de Ulmo.

Após mais algumas instruções, Voronwë e Tuor partiram dalí, rumo ao reino oculto. O elfo, sabia perfeitamente que caminho seguir, uma vez que ele mesmo havia deixado Gondolin em uma missão para o rei. Uma missão, que infelizmente para eles, não obteve bons resultados. No entanto, muitos dias de viagem se fizeram necessários para que a faísca da confiança e da amizade surgisse entre eles e só então Voronwë lhe contara sobre sua sina e o naufrágio das embarcações Noldorin, enredados na fúria do grande mar.

— Eu ouvi falar sobre a sentença de Mandos àqueles que se rebelaram, mas nunca a compreendi. — Iniciou Tuor. Aquele deveria ser o segundo mês de sua viagem em direção norte.

— Os Noldor profanaram a terra sagrada. Sangue inocente foi derramado nas praias de Alqualondë. Bem, muitos deles podem estar arrependidos agora, e tardiamente buscam pela ajuda daqueles contra os quais se revelaram. Essa era nossa missão. Mas o grande mar nos odeia. Ele é instrumento da sentença. E guarda coisas muito piores que a morte em suas profundezas.

Um arrepio correu a espinha de Tuor.

— Não apenas os Noldor, mas qualquer um é facilmente seduzido por ele. Por quê?

Voronwë deu de ombros.

— Toda criação de Ilúvatar é digna de louvor. E toda sua criação obedece a sua vontade. Eu amo o mar. Como qualquer um de meus patentes. Mas talvez, seja sensato mantermos distância dele.

— Não... — Murmurou Tuor. — Dalí virá a esperança dos Noldor. Lembre-se disso.