— Seu problema se assemelha ao de seu pupilo, certo? Porém como o senhor é mais velho e não buscou ajuda desde o início o seu temperamento é bem mais explosivo.

— A senhorita não tem noção do que eu tive que aturar em mais de dois séculos! Tive que criar responsabilidade em uma época muito difícil que não tinha nem um décimo das facilidades de hoje em dia. Nem água encanada tinha aqui.

— Eu realmente não tenho, a sua bagagem realmente é imensa e com certeza não poderemos pautar tudo, porém o senhor precisa entender que isso afeta você, seus colegas e todos ao seu redor. O senhor Camus foi o que mais expressou essa repulsa, e isso poderia ser evitado.

— Já eu, por outro lado, entendo perfeitamente, amigo. Lembro de verdade daquela vez que o puto do Manigold roubou nossas roupas e toalhas e tivemos que andar pelados por todo o santuário até chegarmos nas doze casas. Só que, sei lá, todo esse pessoal já morreu, já fazem duzentos anos! Não precisamos nos afetar por coisas que já passaram.

— É, o Dohko sofreu tanto quanto você e nem por isso ele fica chamando todo mundo de imprestável e incompetente — Shura suspirou baixo. — Você vive descontando sua raiva na gente, enquanto o Dohko parece até que vive cheirando o pólen da Afrodite…

— Uma coisinha que o cabeça de cabra se esqueceu, foi o fato que o velho Dohko foi para um lugar tranquilo para vigiar a merda de um selo, enquanto eu tive que deixar tudo funcionando por mais de duzentos anos. Ele quase não vinha aqui quando vocês eram um bando de crianças remelentas — disse num fôlego só — Quem teve que aguentar choro, reclamações, separar brigas e até dar remédio pra porra de dor de dente fui eu! Eu fiz o melhor que pude pelo máximo de tempo que aguentei. Por isso estava vendo quem tinha o potencial para me suceder.

— Realmente, você precisa descansar depois de tanto estresse e trabalho. Mas você passou dezoito anos isolado, como o senhor disse, tranquilíssimo lá no retiro, mesmo assim voltou xingando até pelos cotovelos.

— Não é querendo dizer nada não… — Saga começou — O Shion suspendeu o uso de medicamentos para se acalmar, todas as vezes que eu ia visitá-lo, ele brigava comigo até pelo tipo de sapato que eu estava usando.

— Lógico, você teve a audácia de me visitar enquanto usava uma Havaianas remendada com preguinho. Aparece despojado assim na frente de Athena, quero ver o que ela vai falar para você.

— E o senhor continuou se sentindo estressado lá no retiro ou apenas teve alguns desses picos quando sabia de notícias do Santuário?

— Senhorita Agatha, eu não sou um homem que reclama de tudo. Como eu disse anteriormente, tive uma vida difícil e com pouquíssimos recursos até poucos anos atrás. Claro que ter notícias daqui quase sempre me estressava, mas confesso que não tenho paciência pra gente lerda e tampouco para gentinha atrevida.

— Por acaso chegou a algum extremo?

— Uma vez eu usei a Muralha de Cristal dentro do meu quarto pra não ser incomodado. Tinha um barulho infernal de uma obra lá no retiro que foi pra tirar o sossego de qualquer um! — só de se recordar uma veia saltava em sua testa.

— Reconheço que duzentos anos é bastante tempo e muito aconteceu. Nós precisamos chegar à raíz desse estresse. Por acaso não haviam terapeutas no seu retiro?

— Até que tinha, a Marlene até tentou, mas eu só queria relaxar. Não gosto de ficar relembrando problemas, senhorita. Consigo reviver o estresse todinho deles.

— Ok. Acho que sei o que pode estar afetando tanto o seu temperamento — riscou o caderno uma última vez e então o fechou — Assim como o senhor Shaka, você apresenta características de pessoas com um distúrbio.

— Acha que eu tenho TOC também? Ah, pelo amor, na minha época num tinha essa frescura.

— Não é frescura. E te digo mais, na sua época tinha sim — quem disse agora foi Shaka, pessoalmente ofendido — A diferença é que ao invés de tratar, vocês lobotomizavam as pessoas e não se importavam com a saúde mental de ninguém. Por isso vocês ficaram tão ruins que a nossa geração tá toda esquisita e a gente acabou aqui.

— Lúcido — Milo comentou.

— Continuando — Agatha queria concluir logo aquela sessão de tortura mental e teste de resistência para a própria paciência — Eu notei que o senhor tem jeitos e possa ser diagnosticado com transtorno de boderline.

— Que porra é essa?

— É um transtorno de personalidade. Basicamente, tudo o que você sente é muito intenso, comportamentos impulsivos, mudança de humor… bem, na mesma situação que o Shaka, não tivemos sessões o suficiente para que eu possa te encaminhar para alguém que te ajude mais do que eu. Borderline tem sintomas complicados, porém isso está afetando todos vocês e acho que, se todos tivessem que escolher, você é o principal caso a ser resolvido. Pois é realmente o mais antigo e o que mais mexeu com todos.

— Eu tenho esse meu jeitão, confesso que com os anos piorei, mas não é para tanto.

— Com todo respeito, todos aqui tem traumas e a maioria chegou porque você não estava aqui. Como mencionei ao caso do senhor Camus, para vocês, um mestre é o mais próximo de uma figura paterna. E crescer sem um pai presente, ou com um pai negligente, é uma das coisas que mais pode gerar feridas psicológicas nas pessoas. Por isso o termo “daddy issues” ficou tão em alta nos últimos anos. E já era presente antes mesmo da geração millenial, porém eles foram os primeiros a retratar isso e começarem a quebrar esse grande tabu.

— Você está me chamando de negligente?

— Não coloque palavras na minha boca e não aumente o tom de voz comigo, senhor Shion. Estamos conversando e este é o tom que uma conversa precisa ter. — Parecia que finalmente havia pego o jeito de como lidar com os signos de fogo — Enfim, você percebeu que foi irresponsável e gostou de ser um? Abandonar os doze fez bem para a sua saúde mental, porém destruiu a dos seus discípulos. Isso que nem comentei sobre o dano colateral que foi a morte do jovem Aiolos.

— Compreendi melhor sobre o que quis dizer. Eu já estava cansado de ser responsável o tempo inteiro, cansado da rotina e queria a aposentadoria. Reconheço o meu erro em procurar um substituto ainda tão jovem para esse cargo importantíssimo. Só que o fardo estava pesado por tanto tempo e eu não estava com a mesma disposição para cuidar de uma nova geração. Vocês eram uns remelentos, mas eu gostava de vocês.

— Eu não gostava de você — Camus resmungou.

— Tudo bem, você era meu menos favorito também. Não corte o meu raciocínio porque estou tentando me desculpar nessa merda — respirou fundo tentando se controlar — O que eu queria dizer foi que eu me precipitei e isso desencadeou uma série de erros. Se naquela noite eu não estivesse tão mentalmente esgotado, não teria exagerado na medicação. Eu deixei as coisas acontecerem no curso que estavam sem impedir. Cada pico de estresse que eu tive na presença de Saga lá no retiro foi porque me dei conta de que não tive tempo de prepará-lo bem para a minha função. Peço que me perdoem algum dia por isso.

— Relaxa, amigo. Vocês acabaram de ver uma cena rara: o Carneirão abaixou a cabeça! — o libriano sorriu, orgulhoso.

— É, mas não foi por ele que eu “desbati” as botas, né? — Aiolos, apesar de tudo, ainda ficava meio aborrecido — Morrer dói, espero que vocês nunca morram. Mas se forem morrer, morram de rir! Entendeu, entendeu?

— Essa foi ótima, anota pro seu stand-up, maninho!

— O meu o quê?

— Aqueles que ri, sabe? Ah, depois eu te mostro!

— Não tirem o foco de mim aqui, por favor.

Agatha levantou-se e todos os outros a imitaram, como um espelho. Ela se sentiu até importante.

— Semana que vem nos veremos de novo, senhorita Agatha?

— Vou conversar com a senhorita Athena sobre separar vocês e continuar individualmente ou em grupos menores, não acho que vocês estão preparados para reunir os treze tão cedo. Todos estão dispensados, apesar do caos que permaneceu, acho que foi uma sessão bem produtiva!

Os rapazes fizeram uma saudação e seguiram igual soldadinhos até a porta, ela até ficou hipnotizada com como eles saíram de jovens rebeldes para a patente dourada. Achou que o problema mesmo era jogar os traumas para fora.

Mu, o primeiro da fila, abriu as portas do salão e já escutou um grito agudo:

— MEEESTRE! MESTRE MU! — O pequeno Kiki estava esbaforido — É uma coisa horrível, uma desgraça, uma coisa terrível, uma desgraça, mal consigo falar! — Quando parou nos últimos degraus, acabou tropeçando. Se Mu não fosse um cavaleiro de ouro, o arianinho teria caído no chão.

— Kiki, calma! O que houve?! — o muviano se ajoelhou na frente do pupilo, preocupado— Você não se envolveu em confusão de novo, né?

— Foi a Athena! Ela tava falando comigo, eu to perdido, ela pediu pra chamar vocês porque eu tava lá brincando e foi horrível, uma desgraça! Poseidon acordou!

— O QUÊ?