Redondezas de Ashland, Ohio

Levou algum tempo para Hiccup perceber que estava prendendo a respiração, o que só ocorreu quando o oxigênio começou a fazer falta.

— Eu odeio demais essas coisas. — Uma garota baixa de cabelos ruivos presos num coque firme passou pelo garoto como se ele nem estivesse ali e foi até o zumbi liquidado.

Abismado, Hiccup finalmente encontrou coragem para falar.

— Você... Você quase me matou! — exclamou indignado.

Ela deu uma risada seca.

— Não estava mirando você, não ia te acertar. — A garota tentava arrancar a flecha da testa do morto-vivo, puxando-a.

— Você podia ter errado!

Ela deu um grunhido e, com um pouco mais de força, conseguiu pegar sua flecha de volta. Tornou seus olhos azuis claros para Hiccup, um traço de rispidez neles.

— Eu nunca erro.

Hiccup engoliu em seco. Ela era intimidadora, não dava para negar. A situação não melhorou muito quando ela ergueu o arco e apontou a flecha ensanguentada na direção de Hiccup.

— Ei, ei! O que você está fazendo?! — ele ergueu as mãos no alto em rendição, começando a suar.

— Está infectado?

— Não, é claro que não!

— Então, prove.

— O quê?!

— Tira a sua roupa, eu quero ver se você foi mordido.

Hiccup recuou um passo.

— Como é? Eu não vou fazer isso!

— Bom, eu não posso contar com riscos. — A garota puxou mais a flecha para trás, aparentando estar fatalmente séria.

— Espera! Espera! Tudo bem, eu... Me dá só um segundo!

Hiccup pôs-se a se despir, começando pela camiseta, o punhal repousando no chão. Estava prestes a desabotoar a calça quando Jack apareceu com seu bastão em mão, sua fisionomia transmitindo confusão.

— Mas que droga está havendo aqui? Hiccup, que porcaria você pensa que tá fazendo?!

Hiccup olhou da garota para o amigo, indeciso se devia prosseguir ou não.

— Er, é que ela...

— Não dê nem mais um passo — advertiu a ruiva, apontando agora para Jack.

— Quem é essa? — Jack perguntou, em posição defensiva.

Hiccup sacudiu a cabeça, pois também não sabia.

— A pergunta correta é quem são vocês?

— Meu nome é Jack Frost e esse é Hiccup Haddock. Não vamos te fazer mal, então pode baixar o arco, beleza?

Ela riu.

— Quem você acha que é para me dar ordens? E pensa que eu sou idiota? Que tipo de nome é “Hiccup Haddock”? Só pode ser uma tentativa de piada estúpida e eu garanto, esse não é o momento para isso.

Hiccup abriu a boca para falar, visivelmente ofendido.

— É só um nome um pouco diferente, não precisa insultar, ok?

A garota não deu importância ao comentário.

— Que seja, Jack Frost e Hiccup Haddock. O que estão fazendo aqui? São saqueadores?

Exasperado, Jack revirou os olhos.

— Você ouviu o que eu falei? Não vamos te fazer mal, tá legal? A gente só acampou aqui perto e...

Mas o garoto não pôde finalizar o que dizia. Sem aviso prévio, Toothless saltou da mata e derrubou a estranha de costas no chão. Ela bem que tentou recobrar o controle da situação, mas seu arco e setas haviam caído longe. Toothless ficou rosnando e latindo em seu rosto, sem que ela pudesse sair debaixo dele.

— Sai daqui, seu pulguento nojento! Sai de cima de mim!

Jack e Hiccup se entreolharam.

— Ela não parece tão ameaçadora agora... — comentou Hiccup, pegando sua camiseta e vestindo-a novamente.

— Ah é? Espera só eu me livrar desse cachorro e você vai ver o que é ameaça de verdade!

— Sabe, Hiccup, tô achando que ela late, mas não morde... — Jack provocou, um sorrisinho perverso tomou seus lábios. O amigo segurou o riso.

— Tirem ele de cima de mim, agora! — a garota ficou ainda mais furiosa, mas o medo de ser atacada começava a transparecer em suas feições.

— Então, prometa que não vai tentar matar a gente — propôs Hiccup.

— É claro que eu não vou prometer uma coisa dessas! Além disso, de que vale uma promessa hoje em dia?

Jack contornou Toothless e a garota e pegou o arco e as flechas que ela havia derrubado.

— Quero ver você tentar sem isso aqui — Jack disse, irônico.

Toothless parecia pronto para o ataque, como se apenas esperasse uma ordem. Derrotada, ela fechou os olhos com força, gritando:

— Tudo bem, tudo bem! Eu me rendo, ok?

E com um assobio de Hiccup, Toothless correu para o seu lado todo tranquilo, como se nada tivesse acontecido. A garota se colocou sentada com alguma dificuldade, limpando a saliva de cachorro do rosto.

— Argh, cachorro nojento! Eu preferia ter tripas de zumbi em mim do que essa baba pegajosa...

— Você tem prioridades estranhas — comentou Hiccup, acariciando Toothless atrás da orelha.

Jack espreguiçou-se lentamente, andando de volta até Hiccup.

— Então, qual é o nome da adorável dama que interrompeu o meu sono e tentou molestar o meu amigo Hiccup?

— Eu não tentei nada com o seu amigo magricela, só estava procurando por mordidas, que fiquemos entendidos — ela respondeu irritada.

— Se você diz... Mas, afinal, você tem nome ou não?

A ruiva ficou quieta por alguns segundos, refletindo se devia dizer. No fim, acabou suspirando.

— Me chamo Merida DunBroch. Vim da Costa Oeste. — Ela foi se levantando, mas hesitou segurando o ombro e soltando um gemido de dor.

Hiccup aproximou-se um pouco, cauteloso.

— Você está bem?

— Não é nada. — Ela fez um gesto com a mão desconsiderando, porém, uma pontada de dor devida ao esforço a fez cobrir o ombro mais uma vez.

Hiccup chegou mais perto e Merida o olhou em suspeita.

— Posso dar uma olhada? — ele perguntou. — Só quero ajudar.

Apesar da incerteza, Merida acabou cedendo de má vontade, deixando-o examinar.

— Droga.

— O que é? — Jack indagou, ainda com sua distância.

— Ela caiu em cima de uma das flechas e a ponta quebrou, entrando na pele dela. Temos que tirá-la logo daí e limpar a região ou pode pegar uma infecção ferrada.

Merida se desvencilhou do garoto, empurrando-o para longe com o braço bom. Isso não impediu que a ferida desse outra fisgada.

— E quem disse que quero a ajuda de vocês? Não os conheço e nem pretendo fazer isso. Agora, devolvam meu arco e flecha que eu preciso ir andando.

— Você não tem a menor condição de atirar com esse ombro, não vai conseguir se defender se precisar — explicou Hiccup em tom sensato.

— Caramba, garota. Para de frescura e deixa a gente ajudar, tá legal? — Jack sentia sua paciência ser testada.

Merida contemplou suas opções por algum tempo, os dois esperando pela resposta. Ela afastou devagar a mão do ombro e viu que estava ensanguentada. Seu kit de primeiros socorros tinha ficado para trás numa de suas fugas e, apesar de estar atrás de um novo há algum tempo, não tinha como correr o risco de vagar por aí sem poder se defender como era o caso agora.

— Onde estão acampados?

— Ao sul, numa clareira, não é longe daqui. E temos um pouco de comida se você estiver com fome — acrescentou Hiccup, tentando tornar a oferta mais atraente.

— O quê, a nossa comida?! Não vamos dividir nossos suprimentos com essa... essa pirada! — Jack exclamou, inconformado.

Merida se virou para Hiccup, autoritária.

— Você — chamou. — Mostra o caminho.

Hiccup obedeceu prontamente, dirigindo-se na direção do acampamento com Toothless em seu encalço. Jack, ainda descontente, ficou apenas observando enquanto Merida ia atrás do amigo. Ao passar ao lado de Frost, ela fez uma pequena pausa, dando um sorriso inocente.

— Que é? — ele perguntou sem paciência.

Em resposta, Merida deu-lhe um chute em cheio na perna, fazendo-o protestar em dor.

— Babaca — ela murmurou, prosseguindo com seu caminho.

Jack percorreu o trajeto de volta mancando e xingando a garota.

–-x—

O acampamento estava intacto, bem como havia sido deixado. Era um bom sinal, contudo, nunca era uma boa ideia ficar muito tempo no mesmo lugar. Se havia um zumbi a algumas centenas de metros dali, apareceriam outros cedo ou tarde. Assim que fizeram uma varredura rápida para ter certeza de que estavam seguros, Hiccup começou imediatamente a trabalhar no ferimento de Merida.

— Senta aqui que eu vou buscar o kit médico. — Ele indicou um tronco caído que ali jazia.

Jack fitava Merida de forma tão incisiva que seria impossível não reparar. Entretanto, isso não parecia intimidá-la nem um pouco.

— Tentando me ameaçar com esse olhar? — Ela deu uma risada curta. — Pode encarar o quanto quiser, mas não vai conseguir meter medo em mim. Sério, você é tão assustador quanto um chihuahua.

Jack estava para lhe dar uma resposta, mas Hiccup ressurgiu com o kit.

— Jack, será que dá pra parar com isso? A situação é séria, cara.

— O quê? Mas é ela que fica... Ah, vão se ferrar vocês dois! — Jack jogou longe seu bastão de beisebol e saiu praticamente marchando dali.

Com um suspiro de exaustão, Hiccup sentou ao lado de Merida e pôs-se a separar os utensílios da caixa que usaria.

— O seu amigo é sempre simpático assim? — perguntou a ruiva, olhando o local onde Jack estava menos de um minuto antes.

— Foi mal, é que nós não costumamos receber, bom, pessoas em geral. Normalmente, evitamos tanto os mortos quanto os vivos.

— Bem, do jeito que as coisas estão, não dá pra dizer que é uma ideia ruim. Os sobreviventes podem ser até mais perigosos que esses demônios...

Ele deu um leve riso.

— Irônico você falar isso após ter ameaçado nos matar há pouco mais de meia hora.

— O que mais eu podia fazer? Não dá pra confiar em ninguém hoje em dia... Ai! — ela gemeu quando ele tocou sua ferida.

— Desculpe, eu sei que está doendo. Acho que pode ser mais fácil se você tirar a blusa — sugeriu Hiccup, mas depois do olhar incrédulo e alarmante de Merida, ele repensou a ideia corando até a raiz dos cabelos. — Qu-Quer dizer, é que não vou conseguir extrair a ponta da flecha com o tecido atrapalhando, mas a gente pode ver uma outra solução e...

— Ah, que se dane. — Merida agarrou a beirada da blusa e a puxou para cima, passando-a pela cabeça. Hiccup automaticamente virou a cabeça para o lado oposto, o rosto ainda mais vermelho. — Meu Deus, garoto, eu não estou nua nem nada do tipo, ok? Será que pode tirar esse troço do meu ombro logo?

Engolindo em seco, Hiccup criou coragem para olhá-la. Ficou um tanto aliviado quando notou que ela ainda usava um top preto para cobri-la.

— Ok, tudo bem. Isso vai doer bastante, se quiser segurar ou morder algo como uma camisa ou...

— Apenas termine com isso!

No instante seguinte, Merida desejou ter seguido o conselho de Hiccup, pois a dor que sentiu foi tão aguda que seu grito de agonia ficou preso na garganta. Percebendo como o corpo da garota tinha arqueado, Hiccup ficou um pouco preocupado.

— Desculpe, o álcool arde pra caramba.

Respirando fundo, Merida cerrou os olhos, pois a dor fazia sua cabeça girar. Apenas sentia a pele do ombro pulsar enquanto Hiccup prosseguia com mãos levemente trêmulas. Então, ele começou a puxar a ponta da flecha para fora e Merida quase desejou que desmaiasse de uma vez, mesmo que isso demonstrasse sinal de fraqueza.

— Espera, quase lá... E... Pronto, acabou. — Hiccup pegou uma gaze para limpar o ferimento e depois fez um curativo.

A ferida ainda ardia bastante, mas Merida já se sentia um pouco melhor. Vestiu sua blusa e, com algum esforço, ficou de pé.

— Obrigada — falou ela, seu tom de voz mais brando que antes.

Hiccup deu um sorriso amistoso.

— Sem problemas. Só não recomendo você usar seu arco durante alguns dias, até o ferimento cicatrizar um pouco mais. Nesse meio tempo, você é bem-vinda a ficar com a gente. Depois disso, pode seguir o seu rumo à vontade que ninguém vai te impedir.

Merida o encarou por alguns segundos, analisando a ideia.

— E quanto ao tal do Frost? Ele não vai tentar me degolar enquanto não estiver olhando?

Hiccup negou com a cabeça.

— Jack só está se sentindo um pouco contrariado, mas ele vai se comportar bem. Eu prometo.

— É melhor você estar certo — ela disse em advertência. — Mas em todo caso... Vocês já tomaram o café da manhã? Eu estou morta de fome.

–-x—

Três dias e cinco horas depois do encontro com Merida, e Jack já não suportava mais a garota. Ela era absolutamente inútil, só servia para acabar com a comida e tomar espaço na barraca. Isso, é claro, quando não estava tornando sua vida um inferno, provocando-o com seus comentários sarcásticos.

— Ah, muito bem, Frost! Você vai acabar com todos os mortos-vivos segurando essa calibre .40 desse jeito. Não sei quem foi o gênio que te deu essa arma, mas ele provavelmente não está nem vivo para se justificar. Honestamente, está tentando matar todos nós ou o quê?

Fazendo o possível para se controlar, Jack foi até Hiccup, que preparava um coelho, que caíra em uma de suas armadilhas, para cozinhar.

— Cara, eu juro que se ela não calar a boca, eu vou fazer isso por ela da forma mais dolorosa e lenta possível.

— Jack, seja paciente. Merida sairá daqui a uns dois dias no máximo. Depois disso, nunca mais vai precisar vê-la de novo, ok? Além disso, é meio que nossa culpa ela ter se machucado.

— Como é?! Você tá escutando o que tá dizendo? Não sei se lembra, mas ela tava apontando uma droga de flecha pra sua cabeça!

— E você pode culpa-la? Nós podíamos ser perigosos, ela não tinha como saber.

Cheio daquilo até os poros, Jack deu seu ultimato.

— Ela tem dois dias. Se depois disso ela ainda estiver aqui, então eu vou embora. — Jack esbarrou propositalmente no ombro de Hiccup ao sair dali.

Esses dois definitivamente começaram com o pé esquerdo, pensou Hiccup. É claro que a natureza deles não ajudava muito, sendo ambos teimosos e de personalidades fortes. Hiccup já era um pouco mais tranquilo e razoável, o que fazia com que Merida o tratasse melhor, ainda que nunca fosse necessariamente gentil ou especialmente agradável. Ao menos, ela já conseguia se abrir um pouco mais agora.

Aparentemente, Merida tinha estudado durante cinco anos num internato militar na Califórnia e era lá que ela estava quando todo aquele caos começou. Agora, seu objetivo era chegar à Nova Escócia em Nova Iorque, onde sua família morava, para ver se poderia encontra-los.

— Quer dizer, sei que as chances não são grandes, mas eu os conheço e sei que eles são durões o suficiente para aguentar essa barra.

Quando ela disse isso, Jack apenas deu uma risada fraca e se levantou da fogueira, entrando na barraca.

— Você acha que eu sou louca por pensar assim, Haddock? — Merida questionou, pela primeira vez parecendo um pouco insegura.

Hiccup não fazia ideia de como estava a situação na cidade natal da garota e muito menos como eram seus parentes, mas que tipo de pessoa ele seria se tomasse as esperanças de alguém só para estar certo?

— É claro que não, vai ver as coisas estão mais calmas por lá do que por aqui, não é?

— Pois é, acho isso também.

Então, no quinto dia, era a hora da despedida de Merida. Jack e Hiccup também iam deixar a floresta para seguir em frente, tendo usado a manhã toda para desmontar o acampamento. Aquele era um adeus categórico.

— Bom, acho que é isso, não é? — Merida foi dizendo, sem saber se olhava para os garotos ou suas botas. — Aonde disseram que iam mesmo?

— Eu acho que Wooster não é muito longe daqui, apenas algumas milhas. Deve ser um bom lugar para procurar suprimentos — Hiccup disse, segurando as alças da mochila que carregava nas costas.

Merida anuiu, compreendendo.

— Foi legal da parte de vocês me ajudarem enquanto eu me recuperava — ela falou, arriscando um olhar para os dois. Hiccup deu um sorriso, enquanto que Jack observava os arredores, como se não visse a hora de sair dali. — Então... Vejo vocês por aí.

— É, talvez no inferno — disse Jack, levando uma cotovelada no estômago por Hiccup. — Cara!

Sem dizer mais nada, Merida deu um leve aceno com a mão e virou as costas para os dois, caminhando floresta adentro. Cinco segundos depois, ela parou e se voltou para a dupla uma última vez.

— Espera! — Merida gritou. Os dois, que já haviam começado a andar, ficaram paralisados e viraram seus rostos para ela. — Eu só queria dizer... Bem, boa sorte pra vocês.

E ela se foi.

–-x—

— Eu não estou dizendo que você tinha que gostar dela, mas tem que tentar entender o lado dela, sabe? Quer dizer, descobrimos muito pouco sobre a Merida, não é difícil imaginar que ela tenha passado por muita merda da Califórnia até aqui.

Os dois, juntamente a Toothless, estavam a apenas mais algumas horas da cidade, seguindo pela estrada 250. O céu estava encoberto, mas o calor não dava trégua. Em breve teriam que dar uma pausa para recuperar as forças.

— Olha, Hiccup, não dou a mínima para aquela garota ou para qualquer porcaria que tenha acontecido na vida dela. Todos nós estamos afundados nesse lixo juntos, e se ela quer bancar a cretina com as poucas pessoas que não tentam enfiar uma bala na cabeça dela, então talvez mereça ficar sozinha e ser comida pela mãe zumbi que ela vai encontrar na Nova Escócia. Isto é, se ela conseguir chegar lá.

— Pegou pesado.

— Não, estou sendo mais que justo. Enfim, falar nessa garota tá me deixando irritado, talvez seja melhor a gente mudar de assunto.

Quando começaram a ficar realmente fadigados, resolveram parar num sítio que viram à distância. Lá, poderia haver até mesmo água fresca de algum poço e um pouco de comida.

— Bom, eu não estou dizendo isso para irritar nem nada, mas será que foi a coisa certa a fazer? — questionou Hiccup, enquanto se aproximavam da casa do sítio.

Jack inspirou fundo.

— O que é, Hiccup?

— Eu não sei, quem sabe ela ainda não estivesse bem o suficiente para seguir sozinha. Talvez a gente devesse ter deixado ela ficar só mais uns dias.

— Escuta, você quer voltar e procurar a garota?

— Eu não disse isso, só acho que...

— Se você quer dar uma de cavaleiro no cavalo branco e ir atrás dela, fica à vontade, mas não me arraste junto. Eu não vou te impedir nem nada.

Hiccup suspirou, exasperado.

— Esquece. Ei, por que você não vai entrando, enquanto eu checo os fundos?

Jack fez um ruído qualquer, meio que concordando. Hiccup fez como tinha sugerido, verificando a parte de trás da casa.

— Eu falei algo de errado, Toothless? Digo, até você já estava se acostumando com a presença da Merida. Não que ela fosse ficar com a gente para sempre, que idiotice, mas ela podia ficar mais uma semana ou duas, não?

O cão o olhava e Hiccup sentia que ele compreendia o que queria dizer. Ou talvez fosse insolação mesmo, o sol estava de matar naquele dia. De toda forma, ainda sentia sua consciência levemente pesada.

Hiccup continuava perdido em seus pensamentos, quando percebeu que Toothless já não o acompanhava mais. Olhou para trás e viu o amigo canino sentado, apenas o fitando.

— Toothless! Vem cá, amigão! — Ele até assobiou, mas o cachorro não se moveu. — O que você tem, hein?

A resposta veio como um urro gutural do zumbi que estava a poucos metros de distância de Hiccup, acompanhado de mais três “colegas”.

— Merda! — Hiccup tentou pegar alguma das armas que estavam na mochila, mas acabou se atrapalhando e derrubando-a. Fez menção de abaixar para pegar de volta, mas os mortos-vivos corriam na sua direção feito loucos e se ficasse seria a última coisa que faria.

Saiu em disparada pelo campo aberto, Toothless à frente, olhando por cima do ombro apenas para confirmar que estava mesmo sendo perseguido. Contudo, um dos zumbis ficara para trás, somente para destroçar a mochila de Hiccup e tudo que havia nela.

— Ah, essa agora... — Então, lembrou-se de que não havia chegado lá sozinho. — Jack! Jack!

— PORRA!

E aquele era Jack e ele também estava correndo, porém não dos mesmos zumbis que Hiccup. Ah, que ótimo, tem mais cinco deles! Hiccup fazia o possível para não entrar em pânico total e procurar uma saída para aquela situação. Foi quando localizou o celeiro. Isso deve funcionar... por um tempo.

— Jack, me segue!

Eles se apressaram para o celeiro e fecharam as altas portas de madeira rapidamente. Mas ainda não era o bastante.

— Tem alguma coisa pra segurar a porta? — perguntou Hiccup.

— Tipo o quê?

O moreno olhou ao redor procurando por qualquer utensílio que servisse ao seu propósito. Seu olhar recaiu sobre o encanamento.

— Ali! Arranca um cano, acho que dá!

Após colocarem o cano para barrar a porta, se afastaram dela, Toothless latia sem parar.

— Cadê as suas coisas? — Jack questionou.

Hiccup apenas fez que não, com expressão de pesar enquanto ofegava. Jack pendeu a cabeça para trás em frustração.

— Excelente, as melhores armas estavam nela.

Começaram a escutar os gritos demoníacos que vinham do lado de fora, a porta tremendo conforme os mortos investiam contra ela.

— Eu tenho a pistola e o bastão, só isso.

— A gente devia ter pegado mais coisas naquela casa...

— Bom, se tivéssemos feito isso, teríamos sido pegos por aqueles otários.

— Dadas as circunstâncias, parece melhor do que ser comido vivo.

— Ok, justo.

Os zumbis pareciam mais furiosos que nunca, o cano que bloqueava as portas começando a ceder.

— Isso não vai durar muito tempo — Hiccup falou, em tom de desistência.

Jack jogou a pistola para ele.

— Então, quando eles entrarem, você terá que ser rápido.

— Jack, as nossas chances são...

— Eu não ligo pra chances, Hiccup! Eu não vou morrer hoje.

Hiccup olhou do amigo para a arma na sua mão e respirou fundo.

— Tá, vamos acabar logo com isso. — Pôs-se em posição para o ataque.

Jack ergueu o bastão de beisebol. Hiccup sentia as mãos suarem. Toothless rosnava para a porta. Era isso, o momento era aquele.

Então, fez-se o silêncio.

Jack e Hiccup se entreolharam, confusos.

— Será que eles fo... — Jack ia dizendo quando a porta foi escancarada, fazendo o ar do entardecer invadir o celeiro.

Os garotos estavam prontos para enfrentar os zumbis, mas logo baixaram as armas, vendo apenas Merida ali, segurando a cabeça de um morto-vivo pelos cabelos.

— Oi, meninos — ela os cumprimentou, em seguida derrubando a cabeça que ainda fazia ruídos e cuspia sangue, enfiando um machado nela. Quando a coisa parou de se mexer, arrancou a arma daquele crânio e a apoiou sobre um dos ombros. — Bem legal, não? Achei essa gracinha num motel na beira da estrada. Ah, e como podem ver, meu ombro está novo em folha.

— M-Merida — Hiccup não podia acreditar, vendo os cadáveres imóveis atrás da garota, a maioria com flechas no corpo. —, como você...? Quer dizer, nós achamos que você tinha ido pra Nova Escócia.

— Bom, esse ainda é meu plano. É que no meio do caminho eu esbarrei com isso aqui e... — a ruiva tirou da lateral da bota um punhal, o mesmo que Hiccup havia deixado para trás na floresta no dia em que se conheceram. — Eu pensei em devolver, ou sei lá. — Ela começou a ficar levemente corada, olhando para o chão cheio de feno e fluidos.

Hiccup foi até ela e pegou seu punhal.

— Valeu — ele disse.

— De todo modo — Merida girou seu machado distraidamente. —, como eu já fiz o que tinha pra fazer, vou indo nessa. Fiquem longe de lugares como este, a maioria desses zumbis eram sobreviventes tentando ser espertos. Eu sei bem, uns colegas idiotas do internato fizeram a mesma burrice... Enfim, até depois, trouxas.

Merida já estava de saída, quando foi impedida.

— Nós vamos com você.

Ela e Hiccup se voltaram para Jack, perplexos.

— Ele bateu com aquele taco na própria cabeça? — Merida perguntou ao moreno.

— Minha cabeça está ótima, obrigado. — Jack deu alguns passos na direção deles. — O ponto é que você não é inútil como eu achei que fosse.

— Poxa, assim eu até fico sem graça. Isso era pra ser um elogio?

— Sei lá... Só sei que estamos te devendo essa e não temos pra onde ir de qualquer forma. Afinal, o que você tem a perder? Viajar em número maior é sempre mais vantajoso, nem que seja pra usar os outros de isca.

Merida quase riu, descrente.

— Essa é a maneira mais estranha de propor uma parceria que eu já vi.

— Mas o que você diz? — Hiccup se pronunciou, olhando-a. — Você aceita?

Merida os fitou por alguns instantes, examinando aquela proposta. Acabou suspirando.

— Estou com a sensação incontrolável de que vou me arrepender disso... Bem, veremos. Peguem as minhas flechas, otários. Vamos dar o fora desse chiqueiro de miolos. — Então, ela arregalou os olhos, recordando algo. — Ah é, tem outra coisa que eu consegui.

Merida correu para o lado de fora, deixando os dois sem entender nada. Eles se aproximaram das portas para ver aonde ela ia.

— Sem chance, cara — Jack murmurou.

— Tão afim de uma carona? — Merida perguntou, apertando a buzina do Jeep Cherokee prateado estacionado no meio do campo. — Prata não é bem a minha cor, mas as opções estão escassas hoje em dia. Pelo menos o tanque tá cheio.

Jack se virou para Hiccup, dado por vencido.

— Admito, você tinha razão dessa vez.

Hiccup ficou quieto, dando de ombros. Aposto que vão tentar estrangular um ao outro em menos de duas horas. Considerando isso, ele decidiu aproveitar a paz enquanto ainda a tinha.