Interestadual 71, Ohio

Antes, quando eram só Jack e Hiccup, não havia muita razão para conseguirem um carro. Tudo que desejavam era encontrar um novo local para fazer de base anti-zumbi. Entretanto, agora que haviam se comprometido a acompanhar Merida até seu destino, aquele Jeep vinha bastante a calhar. Hiccup, que outrora trabalhara numa oficina mecânica como aprendiz, fez alguns pequenos ajustes para que o veículo ficasse mais silencioso e, consequentemente, atraísse menos atenção.

— Sabe o que seria legal? Se a gente colocasse uma daquelas placas de metal no para-choque pra mais tarde poder atropelar os acéfalos à vontade, como num jogo de boliche ou coisa assim. É, seria divertido, não acham? — comentou Jack no banco de passageiro, sua mente imersa em suas ideias, na opinião dos outros dois, um pouco insanas.

Hiccup olhou para Merida como se pedisse desculpas.

— Olha, eu tenho certeza de que antes do colapso da humanidade o senso de humor dele era menos sombrio.

— É tarde demais para deixá-lo no meio do caminho ou...? — perguntou Merida com uma sobrancelha arqueada, enquanto guiava. — Ah, falando em coisas estranhas, por que o seu cabelo é branco, Frost? É algum tipo de velhice precoce? Ou você encontra tempo pra descolorir apesar de não saber se vai viver para o dia seguinte? Apesar de que, eu preciso dizer, branco não está muito na moda hoje em dia.

Jack fingiu uma risada.

— Você é hilária, garota.

— Mas ela tem razão, Jack. Você nunca me falou por que também — disse Hiccup no banco de trás com Toothless, este com a cabeça para fora da janela.

— Será que é porque a porcaria do meu cabelo não é relevante quando se está no meio de um apocalipse? — questionou Jack sarcástico.

— Dá pra falar o motivo logo? A gente para de incomodar mais rápido. — Merida rolou os olhos.

Jack suspirou. É claro que aquela pergunta ia surgir uma hora ou outra.

— Ele ficou assim, só isso.

Merida riu.

— “Só isso”? O seu cabelo simplesmente ficou branco?

Ele deu de ombros, desdenhoso.

— Sim, foi o que eu disse.

Hiccup considerou aquela ideia.

— Bom, eu já eu ouvi falar de traumas que podem fazer com que esse tipo de coisa aconteça...

— Suponho que essa situação toda já seja um trauma grande o bastante, não é? Agora, eu ficaria agradecido se a gente pudesse falar sobre qualquer outra coisa que não fosse a droga do meu cabelo.

— Não falem do meu cabelo, blá, blá, blá. Meu nome é Jack Frost e esse assunto me deixa sensível, mimimi... — Merida zombou fazendo uma careta debochada.

Jack respirou fundo, tentando se manter paciente. Virou-se irritado para Hiccup.

— Tá vendo? Isso é sua culpa.

— Merda!! — exclamou Merida, enfiando o pé no breque abruptamente.

Todos se projetaram para frente, Jack que não usava o cinto de segurança bateu com tudo a cabeça no para-brisa.

— Porra, Merida! — Ele levou a mão ao local atingido, massageando a região. — Ficou louca?!

— Eu quase acertei ele! — Ela apontou para a estrada à frente.

Ali, no centro da rodovia, encontrava-se um filhote de urso levemente assustado. Todos no carro ficaram encarando o pequeno animal até que ele se movesse e desobstruísse a estrada, emaranhando-se na floresta.

— Tá falando sério? — Jack perguntou incrédulo. — Tudo isso por causa de um... um bicho ridículo?

— O ecossistema já está bem fodido sem que eu atropele o que resta dele, ok? Além disso, eu não poderia matar um bebê urso. Isso já é, tipo, maldade.

Jack ia responder, realmente ia. Mas, no fim, desistiu erguendo os braços como se estivesse se rendendo.

— Você é doida — foi tudo que disse.

Hiccup olhou para os dois e deu um sorriso, afinal, via potencial naquele trio. Ainda que Jack e Merida discutissem, parecia algo bastante inofensivo. Talvez funcionasse e ele torcia para que sim. A ruiva era uma adição e tanto ao grupo, considerando suas habilidades com arco e flecha. Além disso, se ela havia sobrevivido por um bom tempo sozinha em meio àquele caos, certamente saberia se virar em situações difíceis com que pudessem se deparar.

Mas será que ela é confiável? Ele não podia deixar de se questionar. Era preciso cautela naqueles dias nos quais uma apunhalada nas costas podia vir de qualquer pessoa. Com Jack tinha sido diferente, eles tinham se tornado amigos quase que instantaneamente, mas Hiccup precisava admitir que tivera sorte. Na época, ainda estava confuso com toda aquela situação absurda e depositou sua confiança com facilidade demais. Hoje em dia, estava mais atento e tinha plena noção de que uma ação precipitada podia resultar em seu fim precoce.

Olhou para Merida pelo espelho retrovisor interno. Ela estava com os olhos voltados para a estrada que se estendia à frente, parecia tranquila. Não havia maldade nela ou em suas ações, ainda que alguém pudesse questionar isso, lembrando o dia em que ela os ameaçou com aquela flecha ensanguentada. Entretanto, nada daquilo tinha importância depois de tê-los salvado naquele sítio. A garota podia muito bem ter seguido seu próprio caminho, abandonando-os à própria sorte.

Aquela aliança estava mais que certa. Na verdade, era quase uma dívida. Hiccup podia conhecer Merida há menos de uma semana, mas sentia que não precisava duvidar de sua lealdade.

Bom, era apenas uma precaução, é claro.

Quando começou a anoitecer, Jack tomou o posto de motorista. Merida ficou no banco de trás com Toothless, assim teria mais espaço para descansar.

— Ela tá dormindo? — perguntou Jack, sua atenção na estrada.

Hiccup olhou por cima do ombro. A garota ressonava serenamente, ocupando encolhida a maior parte do banco. O espaço que sobrava era usado por Toothless, que também dormia com a cabeça apoiada sobre as pernas dela.

— Parece que sim.

Jack deu um suspiro.

— Finalmente, um pouco de paz. Achei que ela não ia ficar quieta nunca.

— Ela tá exausta. Deve dormir por algumas horas.

— Se tivermos sorte.

Hiccup deu os ombros.

— Sei lá, eu acho ela legal.

Jack deu uma fraca risada de escárnio.

— É claro que você acha, ela é a primeira garota que você vê em um ano! Bom, pelo menos, é a primeira que não está em processo de decomposição.

Hiccup sacudiu a cabeça, negando.

— Não é por causa disso.

— Ah, é sim. Mas, ao contrário de você, meu amigo, eu não vou me deixar levar pelo primeiro par de peitos que aparecer na minha frente. Você tá pedindo pra antecipar o seu enterro.

— Jack, você tá louco?! Ela pode ouvir! — Hiccup o repreendeu em um sussurro aflito.

Mas o garoto não parecia preocupado. Continuou guiando, sem sequer verificar se ela os tinha escutado.

— Relaxa, cara. Você não se lembra dos dias que acampamos na floresta? Essa daí dorme como uma pedra.

Hiccup conferiu se ela ainda estava adormecida mesmo assim. Depois, deu um suspiro de alívio, beliscando o dorso do nariz.

— Mas não precisa falar assim dela. Isso que você disse... não tem nada a ver.

— Será mesmo? Bom, não é como se você tivesse alguma chance, de qualquer forma.

— Ei!

— Que é? Dá uma olhada nela e vai encontrar sua resposta. Melhor, vamos traçar o perfil de Merida DunBroch. Primeiro, ela veio de uma escola militar, ou seja, faz o tipo durona. Segundo, só pelo tempo que passamos juntos, dá pra dizer que ela é teimosa, mandona, irritante e tem a tendência de apontar flechas para as pessoas quando está zangada. Por último, ela é ruiva. Ruivas são problema, todo mundo sabe... Enfim, com quantas garotas como ela você saiu na época da escola?

O silêncio de Hiccup respondia por si só. Jack bateu de leve com os dedos no volante, declarando a validade de seu argumento.

— Viu só? Sem chance, cara.

Revolto, ainda que não soubesse bem por que razão, Hiccup pôs-se a olhar janela afora.

— De todo modo, não é como se eu tivesse tempo pra pensar nessas coisas — ele comentou em voz baixa.

Jack observou o amigo de esguelha, um pouco arrependido pelo tom zombeteiro que tinha utilizado. Ele só estava dizendo o que achava, mas quem sabe pudesse ter se expressado de outra forma.

Quando ia começar a falar para remendar o erro, notou algo na estrada.

— Acorda a garota, Hiccup.

Sem entender bem, o moreno piscou lentamente tentando raciocinar.

— Hã? O que você...?

— Faz o que eu tô dizendo, ok? Temos companhia.

O carro foi desacelerando até a completa parada. Hiccup chacoalhou de leve o ombro de Merida, até que ela começasse a despertar. Ainda sonolenta, ela esfregou os olhos e estranhou a situação.

— Por que a gente parou? — perguntou.

— Por causa deles. —Jack tirou a pistola do porta-luvas e a destravou. — Eu já volto.

— Jack, aonde que...? — antes que Hiccup pudesse finalizar a pergunta, Jack tinha saído do carro.

— Droga, Haddock, olha. — Apontou Merida para o para-brisa.

Então, compreenderam. Havia um grupo barrando a passagem, segurando porretes e outras armas. Não pareciam nem um pouco amigáveis.

— Por que o Frost parou?! A gente podia ter passado reto por eles!

— Eles fizeram uma barricada no meio do caminho, olha bem lá no fundo.

Apesar da luz escassa do ambiente — Jack desligara os faróis do carro —, era possível ver um amontoado de tralhas empilhadas mais à frente, o que impediria que qualquer veículo ultrapassasse aquele trecho.

— A única maneira de voltar à autoestrada seria dando a volta a pé, afinal, dos dois lados só há uma densa floresta, que é impossível de cruzar de carro.

Merida ainda não tinha se convencido.

— Devíamos ter voltado. Era melhor percorrer o dobro do caminho que esbarrar com essa gente. Eu não sei o quão bom de conversa o Frost acha que é, mas com esse tipo não tem negociação.

Hiccup estava preocupado, mas precisava manter a calma. Respirou fundo, tomando sua decisão.

— Eu vou lá.

— Como é?! — Merida arregalou os olhos.

— Tenho mais jeito com diplomacia que ele. Quem sabe, eu os convenço — sugeriu Hiccup, abrindo a porta do carro. — Não saia, espere até que esteja tudo bem.

— Por acaso você ouviu o que eu acabei de dizer? Haddock, volta aqui!

Entretanto, os protestos de Merida foram em vão. Ela viu o garoto se juntando ao amigo, tentando conversar com os estranhos. Começou a ficar agoniada, vendo os dois sendo aos poucos cercados pelos outros. Eles estavam praticamente se entregando, estavam agindo como insetos que iam espontaneamente de encontro à emboscada de uma aranha.

Foi quando um dos homens partiu para cima de Hiccup que Jack sacou a arma, porém, não viu que já havia alguém atrás dele, levando uma pancada na cabeça com um porrete. Jack caiu no chão, sua arma foi parar longe demais para alcança-la. Hiccup não teve como ajuda-lo, uma vez que já se defendia de um dos caras. O resto do bando parecia observar a cena como se fosse parte de uma peça cômica.

Merida perdeu sua paciência, pulando para o banco da frente.

— Garotos idiotas.

Sem esperar como Hiccup tinha pedido, ela arrancou o carro pisando fundo no acelerador. Os homens certamente não estavam esperando que o Jeep se movimentasse, pois foram pegos de surpresa pelo veículo, Merida conseguiu passar por cima de dois deles e ainda sobre mais um ao dar a ré.

— Merida, cuidado! — ela ouviu o aviso.

Tiros começaram a ser disparados em sua direção, tantos que ela não sabia de onde vinham, apenas sabia que acertavam tanto a lataria quanto as janelas. Baixou-se como pôde e acelerou de novo, tentando atropelar algum atirador. O para-brisa rachou e, em seguida, se partiu em pedaços. Ela instintivamente fechou os olhos e cobriu o rosto para se proteger dos cacos de vidro. Em questão de segundos o carro foi de encontro com a barricada, tendo a parte dianteira completamente amassada.

Merida precisou de alguns segundos para se recuperar do impacto. Tinha feito um pequeno corte na testa e estava dolorida, mas nada muito mais sério que isso. Tentou ligar o carro, no entanto, este parecia estar danificado além do conserto.

— Anda, por favor... — Ela insistiu mais algumas vezes sem obter sucesso.

Sua respiração ficou ofegante. Viu pelo retrovisor que os homens armados iam até ela. Não havia mais jeito, ela não conseguiria correr rápido o suficiente para escapar.

Toothless começou a latir e só então Merida se lembrou da presença do animal. Ele parecia estar bem, mas extremamente nervoso e assustado.

Ao menos, um de nós tem chance de sobreviver, a ruiva concluiu.

Ela se esticou com dificuldade até alcançar o puxador de uma das portas traseiras. Empurrou a porta, abrindo-a.

— Vai, sai daqui! — Fez um gesto para o cachorro, que não se moveu.

Sabendo que os seus segundos estavam contados, Merida pegou um punhado de flechas debaixo do banco e começou a jogar em Toothless com a força que ainda tinha.

— Cão estúpido! Suma antes que eles venham te liquidar!

Então, a ponta de uma flecha acertou o olho de Toothless. Merida se sentiu imediatamente culpada, porém, cumpriu seu propósito de espantar o cachorro, que saiu correndo em direção à floresta.

A ruiva ainda estava com um nó na garganta de remorso quando um dos homens a puxou para fora do automóvel. Ela deu uma mordida profunda no braço do sujeito, mas que resultou num tapa forte o bastante para derrubá-la.

— Essa vadia me mordeu! — berrou o cara, pegando a arma do coldre improvisado e apontando para ela.

— Espera, ela não tá infectada — outro disse, aproximando-se. Merida estava zonza demais para se desvencilhar quando o homem ergueu seu rosto para olhá-la de perto. — E até que é bonitinha. Seria um desperdício se você a matasse, não é?

— Ela bem que merecia... Mas você tem razão. Ela pode ainda ter alguma utilidade.

— Vamos levar os outros dois também. Nossos gladiadores estão quase acabando.

Gladiadores? Aquilo não fazia sentido algum na mente desorientada de Merida. De súbito, sentiu-se sendo levantada pelos braços e um pano umedecido com alguma substância de cheiro extremamente forte bloqueou suas vias respiratórias. Ela tentou se soltar, mas foi inútil. Logo, a visão escureceu e o mundo ficou em silêncio total.