Assim que chegamos à escola, eu mostrei à Elise o meu dedo mindinho esquerdo.

– Dá o dedinho.

E foi isso que ela fez, enrolando o seu dedo mindinho direito ao meu e apertamos com força. E logo a abracei. – Boa aula, maninha! – E você, boa sorte, Richie! - Elise retribuiu. Richie é um apelido carinhoso que ela inventou. E é claro, isso me deu sorte de montão.

Fui logo entrando na sala, onde me sentei atrás de Moe, um rapaz da mesma idade que eu, só que sou um mês mais novo que ele. Ele tem a pele escura, cabelos crespos e um sotaque norte-americano. Mas ele é daqui, só que também é judeu.

– E ai, Moe? - cumprimentei.

– Oi, Heinrich, qual é a boa? - Moe retribuiu o cumprimento, com um aperto de mão.

Moe e eu éramos grandes amigos. Eu o conhecia desde a quinta série, no primeiro dia de aula.

Na hora do recreio, debaixo de um inverno rigoroso, eu estava todo encolhido em um casaco acolchoado e na cabeça, um gorro de lã. Eu estava fazendo um oito na neve com um graveto, quando vi um grupinho de garotos rir de um garotinho afroalemão que estava pagando mico. Nem pensei duas vezes e fui até lá para tirar satisfações com o líder desse grupinho. Fiquei cara a cara com ele, um gorducho loirinho e dentuço:

– Quem você pensa que é?

– Como ousa a me enfrentar, garotinho magricela? - zombou de mim.

Não agüentei e lhe desferi um soco na cara e daí, começamos a brigar feio, rolando na neve. E aqueles que estavam próximos gritavam "briga! Briga! Briga!", geraram uma algazarra toda, em forma de concerto de ópera uníssona.

Quando um supervisor veio, nos apartou e acabamos sendo levados para a detenção. Fiquei esperando lá, sem fazer nada, até que esse mesmo garoto de pele escura apareceu para mim e disse:

– Muito obrigado por me defender.

– Não tem por onde. - falei. - Meu nome é Heinrich Holger. E o seu?

O garotinho respondeu, acanhado.

– Moe Zimmermann. - e me estendeu a mão para que apertasse.

E foi isso que eu fiz. Foi isso que nós fizemos. Nos tornamos amigos naquele mesmo momento. A partir daí, passei a visitá-lo, e ele, vice-versa. A minha mãe fazia os mais deliciosos pratos para nos divertir, assim como a dele. Desse dia para cá, nos tornamos inseparáveis, mas a minha amiga íntima é a Edith, de fato.

Sendo hoje o Dia da Seleção, isso poderá nos separar, ou nos juntar até a morte, quando nós dois formos selecionados mais uma garota para o Reality. Essa é uma das piores coisas para todos nós, judeus.

A aula de hoje seria História da Alemanha, que engloba como a Alemanha foi unificada, a Primeira Guerra Mundial, O Tratado de Versalhes, o Período Entre Guerras, a Segunda Guerra, a Guerra Fria, a Alemanha dividida e depois unificada novamente, a vitória na Copa Mundial de 2014 , o Golpe do III Reich e, recentemente, a Terceira Guerra Mundial, que havia começado no ano passado. Assim que o professor perguntou qual foi a fonte de inspiração do Golpe, eu elevei a minha mão e respondi:

– Foi o Putsch de Munique, a Ascensão da primeira fase do Nazismo (essa é a segunda fase) e a eugenia da raça ariana.

– Certa resposta, Holger! - o professor me elogiou. E Moe se virou para mim, enquanto o professor escrevia no quadro.

– Heinrich, se prepara que essa é a ultima vez que você responde as perguntas do professor. - brincou.

– É claro, - respondi. - hoje é o dia do Cão. - fiz uma referência a hoje.

– Se eu pudesse, eu faria a Seleção entre os Nazistas e até com o próprio bigodudo. - Moe sempre apelidava Hitler II de bigodudo e disso eu ria.

– Cara, mas não vai adiantar, né? Ele é mais forte da Alemanha inteira, até do raio que o parta, se brincar.

– Mas é isso que eu estou dizendo, Heinrich. Esse cara acha que é o Salvador da Pátria, mas não é. Tá na cara que ele quer exterminar todo mundo...

– ...e dominar o planeta. - completei. - Mas relaxa, como a Terceira Guerra Mundial começou, tenho certeza que a Alemanha vai perder, assim como nas outras duas. E ai - fiz um gesto como quem espanta uma formiga morta da mesa com o polegar e o indicador. - Hitler é deposto.

– É... - concluiu Moe, lembrando da aula passada. - tem razão, Heinrich. Eu acho, mais não tenho certeza.

O meu impulso foi distorcer o assunto, mas me obriguei a ficar calado e prestar atenção na aula, pois sabia que insistir no assunto não ia dar em nada.

***

Na hora do intervalo, ficamos organizados em linhas de cada faixa etária. Quem tivesse 15 anos, ficava na frente; quem tivesse 16, estaria atrás dos que são um ano mais novo que eles; e assim foi sucessivamente até os 18 anos, que são os mais velhos e, consequentemente, os últimos da linha.

De frente ao pátio retangular, em uma das larguras, ficava um palco, onde ao fundo, estava uma imagem de Hitler II, que cruzava duas mãos. Aparecia uma imagem robusta de um general, Bertrand Hessen, braço direito de Hitler II e o idealizador do Reality, que se preparava para falar no microfone. Começou a discursar:

– Saudações, jovens judeus alemães. - sua voz ecoava de alta intensidade nos alto-falantes, só para nos ensurdecer, provocando. Tive que tapara as minhas orelhas. - Enfim, esse glorioso dia chegou. Como vocês sabem, o Reality tem a função em custar a vida de cada um de vocês, meus jovens, porque os judeus, sempre foram os trapaceiros, ladrões, gananciosos, maus-caráter, tudo que prejudicaram a Alemanha. Por isso, o governo teve que acabar com isso de uma vez por todas, aniquilando todo mal que serviu de azar para nós, os alemães, os verdadeiros alemães.

Glorioso? Pra mim, tá mais para humilhante. Afinal, o quê que a gente fez para merecermos isso? Trapaceiro, mau-caráter, ladrão, é o Bertrand e Hitler. Os dois que vão para o inferno!

– Quanto ao Reality, os outros 17 participantes foram escolhidos. Agora só faltam três de vocês. - o general deu uma longa pausa, fazendo a gente ficar perplexos, e outros com medo de ser o escolhido. - O nome que eu for chamar, o dono vem para o palco. Perguntas?

Os olhos desvairados e severos do homem correram o pátio todo, até recuar um pouco, no momento em que um funcionário do governo trouxer uma urna de marfim, onde estavam os nossos nomes. Ele começou, cuja voz era o pretexto para nos meter medo. Medo, não. Pavor.

O general pegou uma tira de papel da urna, e a desdobrou calmamente até ficar lisa. Provocou medo em alguns, palpitações em outros. E eu era um desses "outros". Após se preparar para falar o nome do escolhido no papel, começou:

– O'Brien, Desmond!

Desmond era um daqueles que riam de Moe naquela época. Era magro, sobrancelhas grossas e cabelos castanho-escuros. Caminhava em passos largos em direção ao palco, ficando ao lado do general. Em seguida, o general retirou outra tira e, fazendo o mesmo procedimento, falou o nome:

– Zimmer, Anneliese!

Ah, não. A Anne? Justo a Anne? Ela era a garota que eu mais admirava pela beleza e pela sinceridade. Ela é tão linda! Ela partiu da mesma linha que eu e foi em direção ao palco. Anneliese tem cabelos loiro-escuros, olhos azuis grandes, boca fina e magra. Ela possuía um temperamento forte, que me fez admirá-la.

E por último, alisando a terceira e ultima tira escolhida, falou em voz alta:

– Holger, Heinrich!