O cheiro de sangue fresco irritava suas narinas, não apenas as suas, como as de um homem desacordado à sua frente. Piscar, sem deixar que as pálpebras ficassem fechadas por muito tempo, havia se tornado uma tarefa árdua. O silêncio era incômodo, só interrompido por barulhos de corrente. Correntes que Patrícia não conseguia enxergar onde estavam. O cômodo era amplo, porém mau preenchido; com a pouca iluminação, dava para ver apenas um prato a sua frente, e um homem desacordado ao lado do prato. Ela estava presa em uma cadeira, algemas machucavam seus pulsos. A morte cantava uma canção de ninar em seu ouvido.

Saltos batiam contra o assoalho velho do lugar, indicando que alguma criatura feminina se aproximava. Uma loira alta, com os cabelos presos sobre os ombros, roupas brancas, e um gravador nas mãos, adentra a sala, cumprimentando a moça à beira da morte.

—Você está há três dias aqui. Sua irmã está ótima. Não, não pode vê-la. Mais alguma dúvida antes que eu comece?— a mulher profere, puxando uma cadeira de algum extremo da sala, sentando-se à frente de Patrícia.

—Quem é você?— a voz sai falhada, a menina ofegava.

—É uma pena que não se lembra de mim.— passa a palma da mão pelo rosto sujo de Patrícia, com um olhar caridoso.— Podemos começar, então?

Patrícia engoliu em seco, assentindo. Aquela hora, ela aceitou sua própria sentença. Só orava silenciosamente para Deus, ou qualquer outra criatura poderosa, pudesse proteger a pequena menina que era sua responsabilidade.

—Vamos fazer uma suposição aqui, ok?— a loira fala, apoiando as mãos no joelho de Patty.— Você sempre anda em grupo, uma técnica barata de sobrevivência, ou egoísmo, já que todos sabemos que, com um grupo, você seria a última a morrer, as pessoas segurariam as pontas para você fugir. Voltando ao assunto... Seu grupo, agora, está morto. Metade por infectados, a outra pelos militares. Sobrou apenas você e um homem com câncer, que está quase curado. Vocês fogem dos zumbis, vão parar em um restaurante renomado antigamente. Lá, há apenas um prato de comida.— faz uma pausa, mostrando o prato com uma comida suculenta.— Seu amigo logo morrerá, não de fome, mas, sim, de câncer, que está subindo de estágio lentamente. O câncer vai se alastrar logo, e a última coisa que você pode fazer para ele morrer feliz, é dar o maldito prato de comida. Todavia, você também está com fome. Com tanta fome, que poderia matar um homem para comer. Você fica entre a sua vida e a vida do miserável homem. O que você faz?

A loira olhava para dentro dos olhos de Patrícia, vendo as lágrimas brotarem nos olhos da garota. Ela dá um prazo curto, que Patty não faz questão de ouvir. Ela passa o resto do dia olhando o homem desacordado, que provavelmente tinha câncer e estava a beira da morte. Ela tinha uma chance, a mesma chance que ele. E passa dias pensando no que fazer.

Quando o prazo acaba, a loira volta. Com um sorriso presunçoso, uma expressão divertida. Pega a mesma cadeira, a põe no mesmo lugar, se posiciona da mesma maneira.

—Já se decidiu, docinho?— pega o prato na mão, colocando a colher que trouxera ao lado da comida. Em um movimento inesperado, ela joga o prato longe. Logo, vários ratos rodeiam os restos.

—Não tem mais acordo?— Patrícia pergunta, com a voz ainda mais fraca, amolecida de sono.

—Eu trouxe outra coisa. Porém, precisa me dar a resposta primeiro.

—Dá a comida para ele.

A loira se levanta, sorrindo para Patrícia, cantarolando que aquela fora uma decisão esperta. Segurou na garganta do pobre homem, que acordou imediatamente, assustado. Bateu a mão em um botão na parede, e o cômodo inteiro é iluminado. Vários corpos jogados em um lugar só, aquilo parecia funcionar como um abatedouro humano. A mulher voltou a segurar o homem, agora passando a língua em seu pescoço desnudo. Não era qualquer língua. Era maior, com seis vezes mais grossura, e uma ponta que parecia estar inchada. Os olhos parecendo com os de uma cobra, olhando fixamente para Patrícia. A língua vai de encontro com a boca do homem, adentrando sem permissão. Em poucos segundos, o homem está vomitando veneno. Ele empedra, olhando diretamente para Patrícia.

Uma outra mulher arromba a porta. Com uma pistola 9MM na mão, ela atirava contra a loira. Um homem, que Patty nunca soube o nome, quebrou a cadeira que a menina estava sentada, pegando-a no colo em seguida. O homem carrega uma Patrícia desmaiada para fora da base, onde Nathalia estava sendo acalmada por Tommy.

—Então, foi ali que eu vi que estava na hora de ter responsabilidade.— Patty dá de ombros. A lua brilhava no céu, sendo a única luz que entrava na pequena cabana que acharam. Alia dormia em seus braços, enquanto Aloy fazia algumas flechas sentada a frente das irmãs.

—E como você foi parar lá?— a ruiva pergunta, sem tirar os olhos da tarefa.

—Eu só lembro de estar caminhando no parque, tarde da noite, com Nathalia. Ela sumiu, e eu fiquei desesperada a procurando. Depois disso, só lembro de acordar naquele cômodo horrível.— dá de ombros novamente.

Alia não estava tendo um sonho bom. A pequena estava trêmula, agarrada fortemente à camisa da irmã mais velha. Murmurava palavras irreconhecíveis, entre elas, o nome de Ellie. Patrícia estava preocupada demais em contar como chegou naquela vida que nem se dava conta do que estava acontecendo com a irmã. Só foi perceber quando a menina começou a ter fortes convulsões, gritando o nome de Ellie, mandando-a se afastar de algo. Menino-Monstro, ela repetia. Patty, ainda apavorada, apenas cutucava a irmã, afim de acordá-la, mas nada funcionava. Aloy, percebendo que a irmã estava muito nervosa, pegou um copo de água fria e jogou no rosto de Nathalia, o que não resolveu.

—O que a gente faz agora?— a irmã perguntava desesperada, olhando de um lado para o outro. Onde está Joel para a ajudar?

—Eu não sei. Ela costuma fazer muito isso?— a ruiva pergunta, vendo se a temperatura da menina havia mudado. Ela estava gelada, como se estivesse morta.

—Não. Ela nunca fez isso! O que diabos é Menino-Monstro? Por que ela está falando para Ellie se afastar? Aloy!

Aloy pega a menina no colo, uma das tarefas mais difícil que já fizera. A balançava como se fosse recém-nascida, cantando uma canção de ninar que Ross a ensinara. Sussurrava avisando que Ellie estava bem, que o Menino-Monstro não estava se aproximando. Aloy não fazia ideia do que estava fazendo, só estava fazendo o que Ross faria. Em poucos minutos, Nathalia para de se debater, abrindo os olhos lentamente para poder ver o olhar suavizado da ruiva.

—Você está bem, agora?— Aloy pergunta, colocando uma mecha de cabelo da pequena atrás da orelha.

—O que aconteceu?— Alia questiona, olhando para o rosto apavorado da irmã.

—Sabe, a gente podia ir ver o Bill de novo, não é?— Ellie sugere, seguindo um Joel que andava rápido demais. O sexto sentido de mãe dele estava apitando.

—Não tem porquê ir até lá.

—Tem sim. Precisamos de mais poder de fogo, e eu não conheço mais ninguém que tenha.— deu de ombros, ajeitando a mochila.

—Quem te disse que ele ainda está vivo?— Joel retruca, com o pessimismo usual.— E não podemos desviar o caminho.

—Aliás, por que estamos indo atrás delas, mesmo? Cara, ela deixou a gente para trás, nos jogou no fundo do poço sem nem estender a mão...

—Olha, Ellie. Se tem alguém que sabe que porra está acontecendo aqui, essa pessoa é Patrícia. E, se ela foi embora, provavelmente ela está indo bancar a heroína. Eu não sei você, mas eu não quero e não vou perder mais ninguém, e se tiver algo ao meu alcance para poder evitar, eu ficarei feliz em contribuir. Ok?— dirigiu-se a Ellie, que parecia bem desconfortável com o rumo da conversa.— Você entendeu o que eu disse?

—Entendi.— revira os olhos, nitidamente brava com Joel.

—Repete!

—Nós vamos atrás de Patrícia, e, se ela ainda estiver viva e consciente, vamos ser cachorrinhos dela. Ela nos usa, e depois podemos voltar ao Tommy, dizer que salvamos o mundo, então você ficará feliz, pois não deixou com que ela morresse, como fez com Sarah.

—Gratificante saber que pelo menos interpretação você sabe.— sorri irônico.

"Sacrifícios. Você acha que já sacrificou algo? Jogue seu fruto no fogo, force-o a passar por situações horríveis, e, então, poderá falar sobre sacrifícios."
A Lagarta — Pizzle.