Roxton e eu deixamos o átrio e descemos pelas escadas até o deck de nossas cabines, porque no fim da tarde o elevador do Sea Hope apresentou defeitos, então fomos avisados que ficará interditado até atracarmos em Brighton. – Uff, grande porcaria! – Bufo e estranho, pois acho curioso e totalmente indesejado, vamos perder tempo, mas se não há outro jeito, fazer o quê? Uma garota não pode ter tudo que deseja mesmo! Só que outro detalhe também me intriga, mas não sei se Roxton também reparou, pois senti um calafrio por causa do olhar do ascensorista, vi que nos observou até a gente sumir do seu campo de vista. Oh, mesmo presa no platô por quase 4 anos, eu reconheceria um típico olhar “civilizado”, não tão diferente dos trogloditas da selva, o olhar sicário que por tantas vezes esbarrei em Londres, Paris, Roma, Cairo e quem está contando???

— John? – Ainda nas escadarias eu tento começar um diálogo com Roxton, só que neste momento um tripulante passa às pressas por nós e isto finalmente aguça seus instintos de caçador. John estaciona nos degraus pra tentar escutar acima de nós, eu estou bem atrás dele e também presto atenção no fascinante silêncio do navio.

— O quê??? - Sussurro quando ele pede silêncio. – Não escuto nada!

— É isto! Não acha que tudo ficou quieto demais?

— Oh John, acho que ficamos perdidos tempo demais no platô e n - Roxton me interrompe e me assusta quando usa o braço direito para me proteger na parede enquanto outros dois tripulantes passam correndo no sentido do salão e quase nos atropelam.

— Que diabos eles pensam que estão fazendo? – John está visivelmente estressado.

— Será que o vapor está afundando?

— Que besteira, o Capitão soaria o alarme.

— Saudade de casa, talvez! – Dou de ombros e arrisco uma brincadeira para descontrair um pouco porque não quero ficar paranóica, só que Lorde Roxton não sorri. – Qual é, John? Eu estava brincando.

— Não é isto que me preocupada, Marguerite. Eu tava pensando se de fato aquele elevador quebrou ou alguma coisa tá acontecendo bem debaixo do nosso nariz.

— Bem, eu não ia comentar, mas já que você tocou no assunto, eu repar – Estou pronta para continuar argumentando, só que Roxton me interrompe outra vez:

— Vamos, Marguerite, qualquer coisa que tenha pra me dizer espere até chagarmos na cabine, aqui não é seguro. – John segura minha mão e me leva junto como se eu fosse sua criança.

— Mas e o Challenger, Malone e Summerlee?

— Se os outros precisarem de ajuda eles sabem onde nos encontrar! - John puxa meu braço enquanto suas botas dão passadas largas e nesta hora vejo o porquê me apaixonei: Pois é gentil, leal e incapaz de provocar uma guerra, só que esperto demais para cair em truques e armadilhas, que é exatamente o que eu acho que está acontecendo com o Sea Hope, porque pelo corredor estamos encontrando “passageiros” e “tripulantes” tão suspeitos quanto o incidente do elevador, só que até termos certeza, eu prefiro descobrir por conta própria e continuar poupando meus amigos.

Enquanto percorremos o terceiro deck do vapor eu sigo atrás dele imaginando o amanhã depois do que estou prestes a confessar, porém não é hora para mudar de ideia, pois neste momento John abre a porta e me deixa entrar. De costas para meu inquisidor, eu caminho para perto do beliche onde Malone dorme e reconheço uma de suas camisas dobrada sobre o desconfortável travesseiro. A cabine é apertada, com uma única luminária amarela pendurada no teto, 2 beliches, nenhuma escotilha, sem janelas e com péssimo serviço de quarto. Mas era isto ou depois de finalmente encontrar a saída do mundo perdido ficar encalhado em Manaus por motivos relevantes. Do lado esquerdo, embaixo das camas e entre as malas, Challenger esconde seu precioso ovo de dinossauro e Summerlee as suas raras espécimes de sementes. Se ouvissem meus conselhos, fariam como eu, pois carrego minhas pedras preciosas dentro do bolso e não onde meus olhos não podem ver. Então olhando os objetos dos rapazes sinto uma onda de afeição dentro de mim que eu chamo de gratidão e amizade.

– Você queria conversar comigo. Muito bem Marguerite, estamos sozinhos! – Com muito custo eu me viro e encaro seu olhar esperando muito mais do que eu gostaria, pois meu passado não tem nada de bom para oferecer pra nenhum de nós, mas se é isto que trará paz para Lorde Roxton, muito bem, eu farei:

— John eu não sei por onde começar!

— Comece pelo começo! – Ele fala enquanto coloca as duas mãos na cintura e fica parado como uma árvore. Que estranha forma Lorde Roxton tem de encorajar uma fêmea!!!

— Eu era muito jovem! – Começo pisando em ovos e escolho bem as palavras.

— Hum!!! – Mas acho que prefiro o silêncio dele, pois quero que não resmungue com seu “HUM” como fez agora.

— Eu não tinha uma família ou um nome. Tudo que eu tinha era apenas um medalhão que supostamente meus pais tinham deixado para mim.

— Essa parte eu já conheço, Marguerite!

— Por favor, John, eu preciso contar do começo. Por favor, apenas me ouça. Sim??? – Ele consente:

—Desculpe! – John percebe que foi deselegante, então tenta se desculpar só que eu apenas balanço a cabeça. – Vou deixar que continue. – Afirma para mim enquanto procura um lugar para se sentar.

— Obrigado. – Agradeço e dou continuidade: - Tudo aconteceu depois que eu fui adotada e largada pela quarta família. – Noto piedade expressada na testa dele. – Depois de ser desprezada por tantos casais, eu comecei acreditar que o mal estava em mim e não nas pessoas. Então aos 7 anos fui morar no orfanato das irmãs das colinas de Wiltshire. - Vejo John apertar os olhos e isto provoca rugas em sua testa, só que não consigo traduzir o que desta vez a expressão significa. - Avebury era meu lugar favorito, eu adorava aquelas ruínas e toda aquela solidão quando menina. Rodopiava com meu cachecol vermelho e sentava nas rochas para desfazer as tranças que irmã Conztanttine fazia nas órfãs todas as manhãs quando elas acordavam. – Essas recordações arrancam um sorriso enquanto retorno às memórias fechando meus olhos.

— Avebury é onde fica a propriedade da minha família! – Escuto a voz de Roxton e então torno a acordar. – Já me disse que morou nessas terras, mas nunca nos encontramos. - Vejo John tentando ligar os fatos em sua cabeça. - Que idade você disse que tinha quando morou em Wiltshire?

— 7 anos.

— Eu tinha 13. – Ele calcula. – Marguerite, como nós nunca nos encontramos? Eu também brincava nessas pedras e boa parte das ruínas fica nas terras Roxton e com certeza me lembraria de você!!!

— Avebury é imensa!

— Não, eu costumava seguir meu avô até o Norte, na volta ele passava para deixar donativos para a abadessa de Fountains. Não era essa a congregação do seu orfanato?

— Cisterciense! Sim, era!

— Oh que interessante!!! – Roxton se levanta e zanza pelo pequeno recinto enquanto eu o acompanho com os olhos. – E nós nunca nos vimos. Por quê?

— Você era rico, isto explica muita coisa! O que um garoto de boa família faria perto de meninas órfãs e pobres?

— Eu nunca me importei com dinheiro.

— Claro que não!! – Me levanto e reviro os olhos. – Nunca precisou contar as moedas!!!

— Costuma julgar as pessoas por suas contas bancárias?

— Costumo ser franca com o que a vida me ensinou lorde Roxton, porque aprendi que não se faz limonada de goiabas. Desde que nasci aprendi a viver por conta própria, a não confiar nas boas intenções de terceiros e sempre, sempre seguir minha intuição porque se eu sobrevivi por 33 anos é mérito meu e não dos parentes que eu sequer conheci!

— Por isso você cometeu crimes, Marguerite?

— Não, John, mas isto me tornou a mulher que você diz que ama!

— Eu amo!!! – Ele insiste e se aproxima de mim. – Eu te amo Marguerite, como nunca amei e nem vou amar de novo. - Fixo meu olhar bem dentro do seu:

— Se você me ama precisa confiar em mim.

— Bem que eu gostaria, mas você nunca conta a verdade toda.

— Eu estou tentando!!! – Falo alto e ele para, então percebo que estamos ficando alterados, por isso suspiro bem fundo e em seguida jogo uma mecha de cabelo para trás da orelha enquanto fazemos silêncio no interior da cabine.

— Muito bem. – Lorde Roxton rompe nossa trégua. – Me conte então. Eu acho que depois de tudo que nós passamos nestes últimos anos eu posso dizer que nada mais me surpreende.

— Eu não teria tanta certeza!! – Sou irônica e por causa disso ele me olha perplexo, só que eu sei que dessa vez terei que guardar as ironias.

— O que mais está escondendo? O que impede você de ficar comigo? – Agora a sua voz é hesitante.

— Você precisa concordar que algumas partes da minha vida nunca deverão ser contadas.

— Quer dizer sobre a guerra?

— Isso!

— Sobre isto estamos de acordo, você sabe que eu também guardo segredos que jamais serão revelados, apesar de que boa parte deles já tenha conhecimento. Mas, o que pode ser tão grave assim para me afastar de você? – Ele insiste e neste momento meu coração fica tão apertado que sinto vontade de chorar. – O que, Marguerite?

— Culpa! Consciência! Perdão! Condenação e pena, John! – Desabafo e vejo que ele me olha aturdido.

— Por quê? Por que, Marguerite? – John continua insistindo.

— Eu não suporto mais! – Deixo vim à tona todas as minhas emoções escondidas.

— Eu não te condeno!

— Eu não quero piedade!!!

— O que te ofereço é amor Marguerite e acho que conheço um pouco quem você é, por isso eu não te condeno!

— Mas eu sim, eu sim John!!!

— Porque não se permite perdoar e ser perdoada?

— Para pessoas como eu não há redenção! – Perco o controle e me sento na única cadeira que cabe na cabine, estou com as emoções afloradas, então uso as palmas das mãos e cubro o rosto, mergulho na minha dor sem poder ser aliviada por ninguém. Porém, depois de breves segundos eu escuto suas botas pisarem na minha direção e sinto suas mãos pousarem sobre minha cabeça.

— Eu estou aqui com você! Não te deixarei nunca, NUNCA!!! – John afaga meus cabelos enquanto ainda não tenho coragem para erguer o rosto. – Seja lá o que te martiriza, Marguerite, tenho certeza que já se arrependeu e pagou a dívida, não precisa mais sofrer sozinha. - Aquelas belas palavras me dão um pouco de paz, então retiro as mãos do rosto e olho para ele que está ficando de cócoras diante de mim e se posiciona do meu lado.

— John, mas eu – Quero contestar , porém ele não me deixar terminar a frase e agora desliza as mãos por meus ombros.

— Quando olho pra você eu vejo o bem e não o mal! – Diz com mansidão e ternura, tocando uma parte de minha face.

— Mesmo se eu for a reencarnação de uma sacerdotisa cruel e sanguinária?

— Acho que aqui em Londres este segredo ficará bem escondido!

— E se eu nunca te contar os meus segredos?

— Eu já sei muito sobre seu passado e não ligo se ainda tiver um ou dois mistérios. – De repente ele fica sério e eu continuo esperando a parte da frase que ficou faltando: – É o seu futuro que me interessa Marguerite! Seu presente ao meu lado, porque se não ficar comigo eu não terei motivos para sorrir em Londres.

— Mas eu não sei se ficarei em Londres, se lembra?

— Não, por favor, não me deixe aqui sozinho. Summerlee terá a botânica aos seus pés, Malone finalmente publicará a grande matéria e Challenger provará a verdade para a sociedade zoológica, enquanto eu só tenho você, Marguerite. Eu nunca achei que diria isto, porque minha vida sempre foi correndo atrás da melhor aventura ou caçando a maior fera, mas agora nada disto importa se eu não tiver você do meu lado.

Toco seu rosto e ele fecha os olhos beijando minha mão, depois se aproxima lentamente com a intenção de me beijar, mas eu seria uma estúpida se permitisse sentir o gosto da boca dele só para depois abandoná-lo, pois não teria coragem, por isso antes que sua boca encoste a minha, eu falo secamente:

— Não John! – Com minha mão aberta eu uso as pontas dos dedos para afastar os seus lábios. A resposta sai de imediato, mas juro que gostaria de ter falado outra coisa antes do NÃO, porém não me deu alternativas, então escapou como um grito e agora estou vendo John consternado porque depois das coisas lindas que acabou de me dizer esperava que eu aceitasse descer do navio para nos casarmos. Só que antes de poder me explicar, soa o alarme do Sea Hope e deduzimos que estamos fazendo a manobra de desembarque. Assim nos damos conta do tempo que ficamos conversando e não percebemos que as horas voaram.

— Roxton, Marguerite!!!! – Malone adentra com tudo na cabine e interrompe nosso diálogo.

— Malone, maldição homem! - Roxton se aborrece com a intrepidez de nosso querido jornalista Edward Ned T. Malone.

— Problemas a estibordo! – Disse Ned correndo para sua cama e pegando a mochila, em seguida entram Challenger e Summerlle e então nessa hora ouvimos tiros pela direita do vapor e escutamos pisadas sobre o deck acima de nossas cabeças. Eu dou um salto e olho para meus companheiros de viagem. – Não podemos ficar no navio. – Completa Malone vestindo a mochila em suas costas.

— Mas estamos atracando! – Lembro.

— Não, Marguerite, ainda falta 10 minutos para Brighton. O Navio tá sob ataque! – Avisa Challenger catando o ovo de dinossauro.

— Quantos são? Quem são essas pessoas? Saqueadores? Piratas? – Questiona Roxton correndo para a porta depois de catar suas armas e o chapéu. Eu também gostaria de pegar as minhas coisas, mas estou há 5 cabines de distância da minha, seria perigoso correr até lá para pegar bugigangas, além disso, tenho tudo que é valioso para mim bem aqui comigo.

— São muitas perguntas, Roxton, para pouco tempo! – Afirma Challenger. Nesta hora John percebe que estou desarmada e então saca um revolver do cós da calça e me entrega para minha defesa pessoal.

— Muito bem, no três a gente vai correndo pelas escadas para bombordo. – John arquiteta o plano.

— Como saberemos que lá estará seguro? – Pergunto apenas por perguntar, porque os riscos nunca pararam Lorde Roxton.

— Saberemos quando a gente chegar lá, Marguerite. O que você aconselha? Seguirmos pela direita?

— Claro que não, John! Estaríamos correndo para o motim. – Digo desdenhando de sua piada na hora errada.

— Ah parece que agora estamos falando a mesma língua! – Trocamos um olhar. - Estão prontos? Summerlee? – Roxton inclina a cabeça para Arthur, pois quer se certificar que ele também está pronto para mais uma aventura.

— Como um bebê, John! – Summerlee segura firme o revólver e então John abre a porta, só que antes de sair na frente ele faz mais uma admoestação:

— Tentem ficar juntos, não podemos nos separar! Tenho certeza que não temos nada a ver com isto e se dermos sorte de sairmos ilesos, usaremos um barco de emergência para chegarmos à praia. – Roxton fala e depois olha para mim, nesse momento disfarço o medo, porque John não me perdoaria se descobrisse que sou o motivo de mercenários estarem no vapor, pois minhas suspeitas se concretizaram, mas morrerei antes que Xanghai Xan ou qualquer outro coloque as mãos em mim.