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A chapter for Gladys


Um Capítulo para Gladys

Gladys, já faz algum tempo que não escrevo seu nome em meus diários. Desde a última vez que dediquei um capítulo para você, aconteceram coisas fantásticas e outras lamentáveis, se quer saber. Mas no fundo estamos todos gratos por continuarmos vivos desde o início de 1919, quando embarcamos nesta jornada rumo ao desconhecido. Não sou mais o mesmo jornalista que você conheceu, aspirante e inseguro, mas não sou o único que mudou por aqui. Gladys, ninguém permanece igual após sobreviver por 3 anos numa selva civilizada por T-rexs, homens-macacos, insetos gigantes e fenômenos sobrenaturais que estão além da ciência e da fé. Mas as principais mudanças não são visíveis aos olhos das pessoas, nem mesmo daquelas que nos conheceram e nos amaram antes, porque ganhamos novas almas. George Edward Challenger é um visionário brilhante, mas no princípio trocaria qualquer um de nós por um ovo de dinossauro pelo simples prazer de provar sua honra e conquistar a tão almejada glória na sociedade zoológica. E o que dizer do professor Arthur Summerlee? Orgulhoso, um cético, um descrente que desafiava quem não concordasse com sua visão profissional, sempre disposto a provar o contrário, porém o primeiro a se maravilhar com o mundo perdido, o primeiro a reconhecer que ele e o resto estavam errados.

E John Roxton, este nobre homem de alma pura que não obstante é o caçador mais famoso do mundo provou que lealdade é possível, independente dos títulos, lugares, das raças e situação. Por inúmeras vezes Roxton livrou-me das garras das bestas, dedicou-se por inteiro a nos defender com sua própria vida, honrando a promessa feita a Challenger de segui-lo até o inferno, só que as mudanças também o atingiram, pois não é imortal e erra como todo humano. Então enquanto escrevo sentado no salão principal do Sea Hope, meus olhos podem comprovar a veracidade de minhas anotações e afirmo que o caçador prepotente e arrogante encarregado de proteger a Expedição Challenger é o único que não comemorou nossa saída do platô. Neste momento vejo Lorde Roxton sentado na companhia de Challenger e Summerlee, mas a quem ele pretende enganar? Pois somente seu corpo estar lá, a sua alma, o seu olhar, a sua mente vagam pelo navio ou quem sabe pelas colinas da América do sul, mas estamos longe das águas americanas pois há semanas entramos na costa européia. Se eu gostasse dos jogos de sorte ganharia apostando que ele está pensando em Marguerite. Gladys, esta é a grande mudança de Lorde John Richard Roxton, o amor na personificação da misteriosa Miss Krux! Esta é outra que mudou drasticamente. Se algum dia eu duvidei dos milagres, olhando para Marguerite posso dizer que eles existem. Quem diria que o ponto fraco do grande caçador branco reconhecido internacionalmente seria justamente esta bela e não outra mulher ou até mesmo uma fera? Roxton já teve amantes por toda a Europa e inclusive no platô, mas jamais vi duas pessoas tão apaixonadas e tão teimosas. Jamais vi um homem amar loucamente uma mulher, nem pensava que era possível, pois soa como os romances melodramáticos de Shakespeare que você lia quando passávamos as férias na Quinta de sua família no sul da França, só que esta atitude que eu julgo irracional eu temo que tenha sido provocada pelo ar da selva pré-histórica que os deixou ilógicos, a menos que o amor verdadeiro não seja lógico. Verônica... ( aqui o pensamento é interrompido e Ned continua o próximo parágrafo)

Fixo meus olhos no que Roxton está fazendo e parece que ele sucumbe dentro de uma tristeza mortal, então vejo que pega a garrafa de vinho e joga o liquido dentro do copo de alumínio, curiosamente ele não se atenta pelo objeto ser de alumínio e não de cristal ou vidro porque Roxton se importa com estes detalhes da etiqueta pois recebeu a melhor educação das ricas famílias inglesas. Eu também percebo que Challenger fala sem parar e Arthur concorda com a cabeça enquanto desfruta o cachimbo e dar baforadas de fumaça. Estou curioso para saber o que tanto falam, exceto Roxton que continua cabisbaixo. Só que depois de tagarelarem, noto um breve instante de silêncio e uma troca de olhar compadecido entre eles, então Summerlee se levanta da mesa e diz alguma coisa para Roxton pois este ergue a cabeça e esforça um sorriso, voltando em seguida para o vinho. Continuo olhando a cena, mas decido acompanhar Summerlee que agora está passando pela porta no sentido da proa. Imediatamente pego meu diário e ando rápido para não perder a matéria, se é que este capítulo vá interessá-la. Quando alcanço a saída, Arthur já tem avançado bastante pela área externa do vapor, mesmo velho ele consegue ganhar certa distância de mim, no entanto eu continuo a perseguição e descubro que a tarde se esvai, breve a noite e Londres chegarão para nós, eu até sinto e reconheço o cheiro noturno da boa e velha Inglaterra, além disso, meia hora antes o Capitão avisou que estamos perto de Brighton. Gladys, eu me pergunto se Londres também mudou e como reencontrarei suas ruas agitadas e povoadas. Marguerite certamente sente sua falta pois durante o tempo presa no platô jamais parou de falar o quanto gostaria de se livrar daquele lugar tedioso. Sem esforço eu posso ouvi-la novamente reclamando dos mosquitos na casa da árvore, das chuvas fortes com raios e trovoadas. Sentirei falta das suas reclamações por café quando Roxton de propósito não pisava os grãos, só para nos matar de rir ao vê-la se enfurecer bebendo chá ao invés da bebida americana que aprendeu apreciar. Nós sabíamos que corríamos riscos por cutucar a onça com vara curta, mas o que seria de nossas manhãs sem o mau humor matutino de Marguerite Krux?

Por falar nela, Summerlee foi ao seu encontro. Achei Marguerite olhando a paisagem, vi quando Arthur toca seu ombro e ela vira para olhá-lo. Após segundos conversando de pé, vejo os dois irem sentar no banco do passeio público do navio, então nesse momento descubro que não preciso ser Sherlock Holmes para saber o assunto desta conversa. No último ano Roxton e Marguerite se aproximaram tanto que mesmo sem nos contar abertamente, sabíamos que havia algo entre eles e agora suponho que estão decidindo o futuro da relação, só que pela melancolia do casal, receio que não escreverei um final feliz para este capítulo. Summerlee toma a mão de Marguerite e segura o ombro dela, eu me posiciono atrás de dois passageiros parados perto dos barcos de emergência e sinto-me um espião cobrindo um romance inacabado, e me pergunto o que meus leitores acharão do romance da bela herdeira e do bravo caçador, já que me detenho tanto contando a história de amor deles e não da minha própria. Gladys, você ainda me ama?

— Reparei que você e Roxton não estão em sintonia, estão se evitando. Entendo que fiquei 2 anos longe de todos e o que sei é fruto da minha percepção ou das histórias que Challenger e Verônica me contaram, mesmo assim quando voltei percebi que existe a conexão. Aliás, qualquer pessoa poderia jurar que eram casados desde o primeiro instante. Gostaria de desabafar com um velho entediado de navegar?

— Summerlee você é um amigo querido.

— E como tal eu gostaria de ser útil e servir esta Expedição pela última vez. A menos que não queira, eu entenderei perfeitamente minha querida.

— As coisas não são simples!

— Eu sei que não são! Por que acha que tenho tantos cabelos brancos?? Mas não é esta a graça da vida? Vejamos se ficar ao lado de John não é o que gostaria o seu coração!!!

— Há muitos demônios, Summerlee, John sabe disso.

— Mas você o ama!!! – O coração dela dispara, fica rubra porque nunca fala sobre isto com ninguém e os olhos acinzentados se abrem por causa da surpresa, então ela quer se esquivar da resposta, só que a meiguice sincera do olhar de Arthur expressa muita amizade, por isso ela se abre com Summerlee como um dia ele se abriu e contou sobre a morte da esposa Anna.

— Muito bem, mas prometa que não contará a ninguém!

— Eu prometo! – Summerlee faz o conhecido gesto dos escoteiros e arranca uma risadinha da herdeira, então ela continua olhando dentro dos olhos do piedoso senhor de idade avançada. No fundo era o que necessitava porque compartilhar a dor ajuda a suportá-la e Marguerite confia cegamente na bondade de Summerlee, pois foi Roxton quem lhe ensinou a confiar nas pessoas.

— Sim, eu o amo. – Afirma com todas as letras. – E sei que viverei amando o Roxton para sempre!

— Oh minha doce Marguerite, por que não diz pessoalmente? Receio que John também a ame e seguirá amando-a até o fim porque o homem que deixei lá no saguão principal não é o mesmo que encontrei quando voltei dos jardins botânicos.

— O que ele tem? – Ela se preocupa.

— Ele não está bem, porém a proximidade do porto o deixou mais triste do que a viagem inteira. – Summerlee para e olha sobre os óculos de grau caídos no nariz.: - Ao menos deixe que Roxton saiba o que você sente antes que cada um siga pela direção oposta, não deixe que tudo acabe sem um adeus, Marguerite.

O olhar dela mira um ponto vazio nas tábuas do vapor e então sente a boca ficar seca, um nó se forma no fundo da sua garganta e lágrimas dançam dentro dos seus imensos olhos só que ela é forte e resiste para que elas não desçam por sua face branquinha. Summerlee tem razão, não podem desembargar como dois inimigos porque nunca foram, nem mesmo quando se viram pela primeira vez.

Estou tomando nota e molhando a ponta do lápis em minha língua quando ergo meus olhos e vejo Marguerite de pé diante de Summerlee que ainda está sentado no banco do passeio. Os ventos balançam os cabelos desalinhados de Marguerite, que apesar do tempo longe do luxo e dos bons produtos de beleza, permanecem bonitos como o ébano. As roupas estão surradas como as de todos nós, porque jamais imaginávamos que passaríamos tanto tempo perdidos, só que a beleza desta mulher continua assustadoramente intacta como a de Verônica... ( Novamente o pensamento é interrompido.)

Marguerite passa perto de mim mas felizmente não me enxerga pois viro meu rosto para o mar e dou as costas para ela, então em seguida me certifico que Arthur também não me veja e caminho atrás dela para confirmar minhas suspeitas, pois acho que está indo atrás do Roxton. Quando estou perto do salão principal eu olho pelas janelas de vidro e nesta hora observo Marguerite se aproximar da mesa onde estão Roxton e Challenger, vi que ela recuou um pouco antes de passar pela porta mas depois tomou coragem e finalmente entrou e chamou o nome dele. Roxton levantou os olhos e seu rosto de certa forma se iluminou, Challenger ficou sério e bem quietinho e eu resolvi acompanhar da janela mesmo.

— John a gente pode conversar? - Ela está ao lado de Roxton e espera o seu consentimento.

— Eu vou deixar vocês dois sozinhos. – Challenger queria se levantar da cadeira, só que Marguerite o detém, ela pede que fique porque gostaria de conversar dentro da cabine a sós e em particular. Roxton assente com a cabeça e em seguida afasta-se da cadeira e como um bom cavalheiro espera que a dama passe na frente para segui-la logo atrás.

Gladys, eu não posso escrever o que vai acontecer porque não sei prever o futuro, mas sei que Roxton fará o possível para ficar com sua Marguerite e se ela o amar de verdade deverá ponderar suas próprias escolhas para não perdê-lo. Mas eu que sou amigo dos dois, desejo e espero que a conversa particular remova todos os empecilhos do caminho, assim como um dia eu disse que lutaria por você e para impressioná-la aceitei participar da Expedição que me traz ao mesmo ponto de partida: O amor vale a pena?