Capítulo 9

A notícia do sequestro de Anne chegou à Queen’s Street ao raiar do dia seguinte. Holmes não conseguira dormir na noite anterior, depois de seu jantar com Moriarty e esperou apenas pelos passos da senhora Hudson no andar de baixo para decidir fazer uma visita ao bom doutor. Desde o tempo em que dividiram o apartamento, Holmes memorizara a sua rotina e sabia que seu amigo já estaria de pé. Caso não estivesse, a senhora Watson estaria. Todavia, a ideia de pedir à Mary que acordasse John para falar com ele não lhe deixava nem um pouco confortável.

Para sua sorte, no entanto, fora Watson quem abrira a porta para ele, parecendo estar de saída. Ao imaginar a torrente de sentimentos que as próximas palavras de seu amigo lhe trariam – ele sempre perguntava pela senhora Holmes antes de tudo – Sherlock sentiu vontade de sair dali, embora soubesse que era tarde demais para ir sem levantar maiores preocupações ao seu companheiro. Acabou, então, aceitando que ele precisava saber do ocorrido, afinal, depois de tudo o que passaram juntos, quem melhor para confortá-lo do que John? Nem mesmo Mycroft demonstraria tanta boa vontade quanto o bom doutor.

─ Holmes! – exclamou Watson, bastante surpreso, ao vê-lo ali aquela hora. Os olhos dele correram pelo semblante cansado de seu amigo. Lembrava-se da insônia desse quando estava metido em um de seus casos, mas, não se lembrava de ter sabido de qualquer calamidade na qual Holmes pudesse estar envolvido.

─ Não incomodo, Watson? Parece que o peguei no meio de um afazer. – indagou Sherlock antes que seu amigo indaga-se sobre o motivo de carregar um semblante tão exausto.

─ De forma alguma, estava apenas indo comprar meu jornal. Por favor, entre. Pedirei a Ellie que vá. – contornou John fazendo sinal para que Holmes entrasse. Em seguida, chamou a criada e pediu que saísse para buscar o jornal. A moça hesitou por um momento, mas o obedeceu.

─ Ela não costuma fazer isso, não é? – deduziu Holmes, mirando a porta.

─ Não, eu gosto de sair para compra-lo eu mesmo, assim aproveito para respirar um pouco depois de acordar e isso a deixa livre para atender Mary. – explicou Watson indicando a sala à Holmes. – Mas, sente-se e me conte a que devo o prazer dessa visita matinal? Não me diga que discutiu com Anne novamente. – provocou ele em tom de brincadeira, lembrando-se da vez em que o detetive invadira sua casa após um duelo de espadas com a esposa.

Holmes soltou um riso abafado no intuito de esconder uma súbita vontade de chorar que lhe acometera. Não se lembrava da última vez que tivera tal impulso, afinal, ele jamais fora uma criança chorona, muito menos um homem dado a lágrimas. Contudo, seu amigo não sabia o quanto o havia atingido com aquela brincadeira. Antes tivesse de fato discutido com ela a ter que cogitar a ideia de nunca mais fazê-lo. Mais uma vez a imagem do corpo inerte dela invadiu sua mente e mais uma vez ele precisou se mover para afastar tais pensamentos. Watson percebeu a agitação em seu amigo e mudou completamente sua postura, adquirindo um ar sério.

─ Aconteceu alguma coisa com ela. – concluiu ele, virando-se para encarar as costas de seu amigo que se levantara em direção à janela da sala. – Holmes?

─ Moriarty a pegou, Watson. – disse por fim, ainda sem fitar o médico nos olhos. – Aquilo que mais temi durante todos esses anos finalmente aconteceu. E é pior do que eu imaginara. Nem mesmo o pior dos meus pesadelos poderia ter me preparado para isso. – continuou inspirando profundamente para afastar as lágrimas que insistiam em aparecer.

─ Eu não posso acreditar, Holmes! – exclamou John colocando-se ao lado de seu amigo. – Simplesmente não posso! Anne sequestrada e ainda por cima por ele? Não a nossa Anne... ela simplesmente não se deixaria ser levada... – Holmes tornou a se afastar, sentando mais uma vez na poltrona que lhe fora cedida por Watson. Fitava o chão duramente.

─ Sabe, às vezes acho que você a merece mais do que eu. – comentou, deixando o doutor sem fala.

─ H-Holmes? Você está se ouvindo falar? Nós dois sabemos que concorda comigo quando digo que Anne jamais permitiria que a levassem sem uma boa briga antes...

─ Não, não, meu caro, você me interpretou mal. – interpôs Sherlock, irritado. – Não estou dizendo que ela deveria ter se casado com você, pelo amor de Deus, não!

─ Oh, por um instante você me assustou... – suspirou Watson, tornando a se sentar de frente para o amigo.

─ Estou dizendo que você merece mais toda a confiança que ela deposita em você do que eu! Eu que a subestimei e agora estou pagando por isso. – continuou o outro, apoiando as pontas dos dedos sob o queixo.

─ Holmes? – indagou Watson, confuso.

─ É minha culpa, meu caro. Tudo isso. – confessou Holmes, batendo uma das mãos na perna em sinal de frustração. – Há alguns meses me envolvi num caso com Moriarty e a mantive no escuro sobre isso. Não queria que... Argh, não queria que ela ficasse na linha de frente do professor, mas, claro que nada o impediria de ataca-la em meio à domesticidade. Um grande tolo, Watson! Eu fui um grande tolo! Como nunca me permiti ser! – explodiu ele, as palavras de seu irmão ecoando em sua mente... “Mais parecido com um homem comum”...

─ Vamos, meu amigo, não faz bem a você se culpar dessa forma. – consolou Watson em um tom brando.

─ Faz parecer que já desistiu. – ponderou Mary, surgindo na entrada da sala.

John e Holmes se voltaram para ela com olhares de surpresa. Sequer ocorrera a Watson que sua esposa pudesse estar ouvindo a conversa. De fato, quanta grosseria de sua parte não convidá-la para cumprimentar Sherlock, mas, ele supôs que seu amigo pretendesse fazer daquela uma conversa particular. De qualquer maneira, não havia qualquer sinal de mágoa nos olhos da senhora Watson. Pelo contrário, eles continham tanta preocupação quanto os de Holmes. Ela continuou mirando somente o pomposo detetive com um ar desafiador que não era seu, mas que provavelmente ela absorvera de sua esposa devido à convivência pela amizade.

─ Ela está viva, senhor Holmes. – Mary tornou a falar, decidida. Ainda o tratava com formalidade, mesmo sendo casada com seu melhor amigo.

─ E provavelmente me odeia por ter mentido para ela sobre a minha viagem à França. – acrescentou ele com desdém.

─ Acha que ele contou a ela? – perguntou Watson, incrédulo.

─ Não acho que o professor se divertiria totalmente com esse jogo se atingisse somente a mim. – ponderou Holmes. – Não, ele também tentará atingi-la e a única forma de fazer isso é quebrando a fé que ela põe em mim.

─ Anne não dará ouvidos a ele. – insistiu Mary. – E se confia tão pouco na lealdade da mulher que jurou luto eterno ao senhor quando pensou que estivesse morto, então realmente não merece que ela tenha fé na sua.

Holmes mirou-a com surpresa por um instante. Jamais imaginaria que palavras tão duras sairiam da boca de uma criatura que sempre demonstrara tanta doçura quanto Mary Morstan Watson.

─ Ela conta com o senhor para encontra-la. Independente de tudo o que esse homem possa fazer, ela sabe que o senhor vai encontra-la. Então não haja como se ela já estivesse morta, senhor Holmes. Ela está viva e prestes a lhe dar uma família. Essas seriam circunstâncias que fariam um marido soar tão derrotista? – desafiou a senhora Watson solenemente.

─ Não, de fato, não são, senhora Watson. – assentiu ele conseguindo sorrir um pouco. – Acredito que posso contar que a senhora não se oporá a presença de seu marido durante as minhas investigações...

─ Eu não esperaria que fosse de outra forma. – disse ela com um sorriso delicado brincando no canto dos lábios.

─ Pois muito bem, Watson. Eu voltarei em meia hora para busca-lo, tratarei de alguns pormenores com Lestrade enquanto você toma o desjejum. – disse Sherlock tomando a direção da porta.

─ Mas assim eu estarei perdendo uma parte do caso. – observou Watson, seguindo-o.

─ Meu caro Watson, nós dois sabemos que não há nada de fascinante em uma conversa com Lestrade. Estou apenas lhe poupando de um aborrecimento. Asseguro-lhe de que a caça começará somente quando eu voltar e estiver com você ao meu lado. – retrucou Holmes reassumindo seu ar confiante de sempre.

─ Pois bem, estarei esperando. – disse Watson tomando o caminho para a sala de jantar, onde a mesa para o desjejum estaria posta. Holmes ficara sozinho com Mary.

─ Vejo que a convivência com ela fez bem a nós dois. – comentou ele mirando-a com gentileza. – Eu agradeço pelo choque, Mary.

─ Apenas faça o que o senhor faz de melhor, senhor Holmes. – disse ela dando de ombros. – Resolva isso. Custe o que custar.

Holmes bateu a ponta da bengala contra a lapela do chapéu e fez uma leve reverência para a senhora Watson e saiu em direção à Scotland Yard.