Capítulo 8

Quando finalmente despertei do sono causado pelo clorofórmio, a primeira reação que tive foi a de completo desespero. Depois de tanto tempo sem ser atingida pelas consequências de ser a senhora Holmes, era natural que estivesse habituada à ideia de segurança. Quero dizer, sim, havia perseguições e mais de uma vez alguém apontou uma arma para a minha cabeça, mas tudo aquilo se tornara mera rotina. Eu estava acostumada a lidar com os rufiões de Londres, mesmo que os anos de casada me tivessem tornado mais dependente do trabalho em equipe. Ainda assim, era bem capaz de me virar sozinha… a minha mira continuava a mesma de dez anos atrás.

Contudo, as circunstâncias ali eram diferentes. Talvez eu não tivesse notado a princípio com quem estava falando em Baker Street, mas não precisava ser muito esperta para deduzir quem seria capaz de sequestrar a senhora Sherlock Holmes em plena luz do dia. Afinal, eu conhecia a rotina do pomposo detetive muito bem e isso me permitia total acesso a sua lista de inimigos - com uma ajuda de Watson - e entre todos eles o único que poderia ser chamado de ousado era o professor Moriarty. Apenas a mente mais insensata não se desesperaria com isso. O homem que meu marido caracterizava como Napoleão do Crime me tinha sob sua vigília e se Holmes teme alguém, essa pessoa merece ser temida.

Em todo caso, para alguém que havia acabado de sequestrar uma jovem nas condições mais violentas, até que o meu local de cativeiro não era tão ruim. O chão era acarpetado e eu havia sido deixada numa cama confortável, apesar do aspecto gasto do colchão. Uma pequena mesa de madeira onde eu provavelmente faria as minhas refeições era a única outra parte de mobiliário que estava disposta. Eu conheci mulheres que tiveram piores perspectivas do que aquelas. As janelas estavam abertas, o que acrescentou um elemento irônico à cena. Moriarty sabia da minha gravidez e era óbvio que deixara as venezianas abertas para me provocar, pois se as circunstâncias fossem outras e eu não tivesse outra vida em que pensar, facilmente tentaria escapar por ali independentemente da altura.

A porta estava destrancada, mas não me atrevi em abri-la. Pensei em Sherlock e como estaria naquele momento. Dificilmente aos prantos, mas, com certeza, tão alarmado quanto eu. O fato de Moriarty estar envolvido naquilo tornava o caso mais do que um simples sequestro… mas eu confiava que Holmes seria capaz de resolver tudo. Se havia alguém na Europa que se igualasse em inteligência a Moriarty era ele. Então, muni-me de coragem e abri a porta, dando de cara com um pequeno corredor que se abria em uma escadaria. Descendo, fui ouvindo o crepitar do fogo na lareira e mais nada. Não havia qualquer sinal de alma viva na casa…

— Sente-se, senhora Holmes.

Ali estava. Finalmente conseguia unir o nome ao rosto e reconfirmava as percepções de antes. Tudo em Moriarty parecia ser mortalmente frio e calculado, como um professor de matemática deveria ser. Ele estava sentado numa pequena mesa ao centro da sala e me indicava a cadeira em frente à sua. Ao que parecia, eu havia dormido até a hora do chá e agora James Moriarty me convidava para acompanhá-lo. Instintivamente recuei um passo para trás, mas a minha barriga gritava pelos mini sanduíches que estavam dispostos sobre a mesa. Seria um grande tormento conciliar o aumento de apetite causado pela gravidez com o fato de estar em cativeiro, pois meu bom senso me treinara para não aceitar comida alguma em casos como aquele…

— Espero que tenha encontrado as acomodações a seu gosto. - ele tornou a dizer, fazendo um gesto amplo como se estivesse abraçando toda a sala.

— Devo supor que não costuma tratar seus reféns com tanta generosidade? - desdenhei finalmente concordando em me sentar.

— De fato, não costumo. - concordou ele assentindo polidamente com a cabeça. - Mas a senhora não é uma refém qualquer, não é, senhora Holmes? Além disso, se encontra numa situação delicada.

— E a qual delas se refere? - indaguei servindo o chá na xícara que havia sido disposta para mim.

— Ambas. - respondeu ele entendendo o tom da minha pergunta.

— Onde estamos? - perguntei levando a xícara aos lábios.

— Acredito que o senhor Holmes não teria se deixado levar por uma moça tão leviana e que, portanto, não espera que eu responda essa pergunta com sinceridade. - observou ele me fazendo sorrir de lado enquanto bebia o chá.

— De fato, mas ela espera que o senhor responda de maneira a tornar o jogo mais interessante para ela ou para que o medo que sabe que ela está sentindo tome proporções que tornarão tudo isso mais divertido para o senhor. - retruquei retornando com a xícara para o pires.

— E o medo que eu provocar na senhora certamente não fará com que perca as palavras, suponho. - ele tornou a observar, agora levando a xícara aos lábios.

— Acredito que o senhor Holmes não se permitiria sentir receio por um homem tão leviano e que, portanto, não espera que eu responda a essa pergunta com sinceridade. - disse dando uma pequena mordida no mini sanduíche.

Moriarty me fuzilou com olhar, obviamente não estava acostumado àquele tipo de afronta ou de ironia direcionadas a sua pessoa. Todavia, eu não me retraí. Por mais assustada que estivesse, ele jamais me veria vacilar por medo.

— Não, realmente não espero. - ele tornou a falar por fim. - Mas, em todo caso, com o passar dos anos aprende-se uma coisa ou outra. - e então mirou significativamente a minha mão esquerda. Foi então que notei a falta da minha aliança. Engoli em seco e voltei a olhar para ele com um sorriso nervoso. - Todos possuem pontos fracos, senhora Holmes. E aqueles que se apaixonam acabam deixando os seus transparecerem mais.

— E alguns pensam tão bem de si mesmos que acabam esquecendo que os solitários também os possuem. - comentei sentindo o sangue começar a ferver, tentando me manter apática em nome da criança.

— Certamente, mas torna-se mais difícil de encontrá-lo. - ponderou Moriarty.

— Não para mim. - disse erguendo um pouco a voz, em forma de desafio. - Eu sei quem o senhor é e tudo o que eu li a seu respeito torna a tarefa mais fácil. O seu orgulho é o seu ponto fraco. Não suporta a ideia de que, de fato, exista alguém capaz de derrotá-lo.

─ E está convencida de que o seu marido seja esse alguém. – observou ele arqueando as sobrancelhas.

─ Por qual outro motivo eu estaria aqui? – disse com descrença.

E mais uma vez ele tornara a sorrir daquela maneira maliciosa que me perturbara em Baker Street.

─ O senhor Holmes não lhe contou que nos cruzamos recentemente? – perguntou fingindo surpresa, com o visível interesse em me atingir. – Em que mês estamos?

─ Maio. – respondi com desdém. Ele sabia perfeitamente em qual mês estávamos, o que pretendia com aquela encenação toda.

─ Faz exatamente um mês, então. – ponderou ele. – Diga-me, senhora Holmes, o seu marido não fez nenhuma viagem no último mês?

─ Sim, ele foi à França resolver um assunto a pedido de Mycroft. – respondi de pronto.

─ Mentiras, senhora Holmes. – retrucou Moriarty, deleitando-se cada vez mais com sua voz à medida que falava. – Essa e qualquer outra que tenha dito quando voltou.

─ Como ousa insinuar...

─ Ele se recusou a lhe dar detalhes sobre o caso, suponho. Dizendo que seu cunhado lhe pedira segredo. Mas, convenhamos. Se fosse assim, os irmãos Holmes teriam zarpado para Paris juntos e não foi o que aconteceu, foi? – ele continuou a indagar, me fazendo corar.

─ Não, não foi. – concordei com as mãos tremendo de raiva. – Temos ocupado muito o seu tempo, não é? – comentei, me contendo atrás de um sorriso malicioso.

─ Só estou comprovando que conheço seu marido muito bem. – enunciou Moriarty bebendo o último gole de seu chá.

─ Afirmando que são parecidos, eu diria. – retruquei com veneno na voz. Quão traída eu estava me sentindo naquele momento...

─ Que eu sou melhor, na verdade. – rebateu o professor com um sorriso vitorioso. Ele me observou atentamente, percebendo que eu não estava mais prestando atenção, mas sim concentrada em meus próprios pensamentos.

Por que ele mentira? Eu pensava. Por que não me contar que estava indo à França para resolver um caso que envolvia Moriarty? Talvez nem mesmo ele soubesse até ter chegado lá... De qualquer forma, porque não me contar a verdade? Talvez ele pensasse que assim estaria me protegendo... o que era pior. Ele não acreditava mais que eu seria capaz de me virar sozinha...

─ E o que ele fez em Paris que o deixou se sentindo tão afrontado? – quis saber por fim.

─ Ele me fez perder dinheiro com a venda de uma cópia da Monalisa achando a verdadeira, a pedido do governo francês. – explicou ele.

─ De quanto dinheiro estamos falando?

─ Importa? – desdenhou Moriarty.

─ Deve importar para o senhor, se o motivou a me trazer aqui. – comentei no mesmo tom.

─ Não foi a primeira vez que perdi alguma coisa graças a insistente intromissão de seu marido, senhora Holmes. O dinheiro não foi o que a trouxe aqui.

─ De fato. – concordei rindo com escárnio. – Foi o seu orgulho e a falta de fé de Holmes em mim. – admiti friamente, ainda que a contra gosto. – Acredito que a minha audiência tenha terminado. – acrescentei me levantando.

─ Eu a magoei. – observou ele, orgulhoso pelo resultado de sua revelação.

Estava me aproximando da porta, mas parei para virar e fita-lo com indiferença.

─ O senhor jamais me magoaria, professor. A omissão de meu marido, no entanto... – disse dando de ombros. – Contudo, não posso me permitir ficar zangada com ele. Afinal, só achava que estava fazendo o melhor por mim.

Então ele riu. Um riso que misturava a descrença com a frustração, pois era evidente que esperava uma declaração rancorosa de minha parte agora. Era óbvio que estava zangada, mas dar a Moriarty qualquer abertura para afirmar a Sherlock que eu perdera a fé nele era algo que eu simplesmente me recusava a fazer.

─ O senhor sabe brincar muito bem com os sentimentos das pessoas, isso eu admito. Mas, eu devo preveni-lo sobre uma coisa. A minha fraqueza, essa que o senhor descobriu, é também a minha força. E não me importa o que faça, muito menos o que me diga, eu confio nele. E sei que vai me achar. Sherlock jamais perderia a chance de resolver o quebra cabeça de sua vida. – retruquei com imponência. – Boa noite, professor Moriarty. – despedi-me fazendo uma pequena mesura com a cabeça.

─ Pretendo jantar com o senhor Holmes agora. – ele falou me retendo mais uma vez. – Algum recado que deseja que eu passe?

─ Ainda terei a chance de transmitir a ele quaisquer impressões a seu respeito eu mesma, professor. Então, não. Diga aos seus homens que espero meu jantar às sete em ponto. – respondi polidamente, fechando a porta ao sair.