Capítulo 17

O relógio marcou seis horas da manhã quando Watson saiu do quarto onde Anne estava instalada. Sherlock estivera sentado do lado de fora desde que o médico, doutor Bradshaw, insistira para que ele saísse e os deixasse trabalhar, o que ele só atendeu depois que Watson garantiu que acompanharia todo o procedimento de perto. O doutor encontrou Holmes de cabeça baixa, as mãos fortemente prensada contra os cabelos não mais perfeitamente penteados, uma visão de dar pena.

─ Como ela está? – adiantou-se o detetive, assim que levantou a cabeça e deparou-se com Watson a sua frente.

─ Bem, ainda um pouco abalada pelo choque, mas bem. – respondeu o doutor, sorrindo diante do suspiro aliviado de seu amigo.

─ E... e o bebê? – tornou a questionar Holmes, uma sombra passando por seus olhos, temeroso pela resposta que John pudesse lhe dar.

─ Não há nenhum indício de que ela o perdeu. – disse ele com ar bastante profissional. – Contudo, não sabemos dizer se isso trará complicações para o desenvolvimento da criança ou mesmo para o parto. – explicou, censurando-se mentalmente depois que o olhar do detetive vacilou em direção ao chão. – Ela chamou por você assim que voltou a si. – acrescentou.

─ Mas ainda não poderei vê-la. – disse Holmes, frustrado.

─ Se prometer que não dará abertura para o início de uma discussão ou falar qualquer coisa que a aborreça. A senhora Holmes vai precisar de muito repouso durante as próximas semanas, até que saibamos com certeza se...

─ Eu compreendo, meu caro. – interpôs Sherlock, não querendo ouvir mais nada sobre a hipótese de perder seu filho. Watson empertigou-se por um instante, com um sorriso um tanto abobado, levando seu amigo em direção ao quarto da senhora Holmes.

Anne estava deitada com a cabeça apoiada em dois travesseiros, seus olhos fechados faziam com que ela pudesse facilmente se passar por um cadáver, embora um pouco da cor habitual já tivesse voltado às suas bochechas. Respirava lentamente, com leves variações ao apertar sua mão contra o lençol e inspirar desesperadamente por duas vezes seguidas. Holmes ficou parado à porta por alguns minutos vendo-a assim, sem saber o que fazer, até John dar-lhe dois tapinhas encorajadores nas costas, levando-o a entrar no quarto para sentar-se numa cadeira junto ao leito de sua esposa.

─ Anne... – chamou, mantendo o tom de voz sereno. Ela se preparava para dar outra inspiração desesperada, e Holmes segurou sua mão ao vê-la contraindo-se contra o lençol, apertando-o. O movimento súbito assustou-a e ela abriu os olhos de uma vez, ainda com o peito estufado.

─ Sherlock... – murmurou soltando o ar aliviada, apertando a mão dele contra a sua, sorrindo um pouco. – Eu achei... – repetiu, agora com a voz embargada pelo choro. Holmes apenas sorriu e ergueu a mão dela para beijar seu dorso, levando a senhora Holmes aos soluços frenéticos.

O corpo inteiro de Anne tremia enquanto ela soluçava e murmurava palavras sem sentido, como se estivesse tentando se explicar ou criticando a si mesma por ser uma tola. Desabafava o horror que sentira ao ver o caixão vazio sobre a sua cama, o medo avassalador que lhe subira pela espinha ao perceber o que Moriarty faria. Na ocasião tivera vontade de chorar, mas precisara manter o sangue frio para ao menos tentar escapar daquele quarto... conseguira deslocar o joelho de um, mas fora só... E depois ainda não via-se em condições de bancar a garotinha assustada. Precisara manter a respiração compassada o tempo suficiente até que Holmes a encontrasse. De fato, havia desmaiado vinte minutos antes de ele entrar com Lestrade para derrubar a parede.

Ali, porém, poderia ter a reação que quisesse. Chorou as lágrimas de medo que sentira, as de preocupação pelo que o professor poderia fazer com seu marido e as de dúvida ao pensar que talvez não sobrevivesse para ver Sherlock outra vez... que fosse... abortar... À luz daquele pensamento invadindo sua mente, fez força para erguer seu corpo em direção ao pomposo detetive, a necessidade de envolvê-lo em seus braços crescente.

─ Fique deitada, Anne. – advertiu Holmes, percebendo o que ela pretendia fazer. Ela o mirou suplicante, mas a decisão nos olhos dele era implacável. – Ordens médicas, você precisa descansar. – insistiu interrompendo-a antes que retrucasse. Ela fechou os olhos, em frustração, apertando-os para tentar conter as lágrimas que não paravam de vir. Holmes continha as próprias, enquanto lhe afagava o braço, mantendo a mão dela contra o rosto. – Eu sinto muito, minha querida... é culpa minha...

─ Porque você me manteve no escuro quanto ao que Moriarty seria capaz de fazer... Ele quase conseguiu fazer com que eu odiasse você quando me contou sobre os reais motivos da sua ida à França... quase. – disse com lágrimas de raiva escorrendo pelos olhos, frisando a última palavra ao olhar culpado do marido. – Frio, calculista... sádico... eu jamais odiei alguém como o odeio agora. Contudo, creio que não foi nada prudente da minha parte cutucar suas feridas tão pouco...

─ Ele chegou a mencionar a sua engenhosidade. – comentou Holmes, sorrindo. – De fato, eu disse a Watson que a parabenizaria por ela quando recebi sua mensagem codificada. – acrescentou orgulhoso. Anne chegou a sorrir por um momento, quando uma sombra passou por seus olhos e ela deixou um soluço muito alto escapar, sem conseguir mais segurar a vontade de abraçar Holmes.

Ele não a reprimiu daquela vez e nem tentou deitá-la novamente, pois sabia o motivo que a levara a tal gesto. Mycroft lhe avisara dos traumas que aquela experiência poderiam lhe trazer e o aconselhara a ser pragmático quando chegasse a hora de tratar do assunto. Falar era mais fácil do que fazer. Como ser metódico sobre um assunto que tocava as emoções de ambos? Anne vira um garotinho ser morto... uma situação que poderia se repetir no futuro. Contudo, quando se repetisse, no lugar do pequeno Ozzie estaria o filho deles.

─ Ele era só um garotinho... – Anne repetia sem parar, soluçando contra o ombro de Sherlock. – E se fosse...

─ Shh... – murmurou Holmes, apertando-a mais contra si. – Não vale a pena ficar imaginando, querida... A morte do Ozzie não foi culpa sua, Anne. – disse afastando-a para olhá-la nos olhos.

─ Eu sei... mas... ele me pediu para ajuda-lo, Holmes. E eu não consegui fazer nada... E se eu não for uma boa mãe, afinal? E se quando o nosso filho precisar de mim, eu não puder ajuda-lo? – inquiriu ela, com a respiração descompassada.

─ Anne, se fossemos nos prender a todos os “e ses” que já apareceram no nosso caminho nesses cinco anos, acredito que sequer estaríamos juntos há cinco anos e muito menos na iminência de ter um filho. – disse afastando um dos fios de cabelo dela para trás da orelha. – E você vai ser uma excelente mãe, senhora Holmes. Eu nunca acho, eu sei. – acrescentou por último, com um sorriso presunçoso, quando as palavras “como você” começaram a se formar na boca dela, que deixou escapar um riso abafado, inclinando-se para beijá-lo.

─ E Moriarty? – perguntou em seguida.

─ Se foi. – respondeu Sherlock, fazendo com que ela tornasse a se deitar, agora que estava mais calma. – Não direi que esse seja o fim dos nossos problemas, mas... por ora...

─ Já é o suficiente para que fiquemos um pouco em paz. – concluiu ela, alisando uma mexa do cabelo dele para trás. – Holmes...

─ Volte a dormir, agora. Vou perguntar ao Watson quando poderemos levá-la para Baker Street. – disse imperiosamente, beijando-lhe a testa antes de sair.

†††

Partiram com um cabriolé meia hora depois. A senhora Hudson os recebeu com lágrimas de alegria nos olhos, sufocando Anne com um abraço apertado. “Estávamos tão preocupados... O senhor Holmes chegou a acabar-se em lágrimas ontem à tarde...” dizia ela enquanto subiam a escada para o quarto do casal. Anne, apoiando-se no braço direito de Holmes, lhe lançou um divertido olhar de soslaio ao passo que ele simplesmente negou com um leve aceno de cabeça.

─ A senhora não imaginaria o quanto eu senti falta da sua comida, senhora Hudson. – disse Anne, sentando-se na sua poltrona, recebendo um sorriso gentil da velha.

─ Se quiser, eu posso...

─ Nada muito pesado, senhora Hudson. – interpôs Sherlock, apoiando as mãos nos ombros da senhora Holmes. – Lembre-se que, apesar de tudo, ela ainda é uma paciente nessa casa. – disse sorrindo significativamente de uma para outra.

─ Oh, é claro, senhor Holmes. – respondeu piscando para Anne. – Bem, nesse caso podemos começar com chá de canela...

─ Com creme, senhora Hudson. – acrescentou a outra, sorrindo abertamente. – Como é bom me sentir mimada outra vez. – suspirou quando a senhoria os deixou sozinhos.

─ E que Deus me proteja. – brincou Sherlock. – Agora, venha, Anne. O doutor Bradshaw disse que você deveria permanecer deitada pelo resto do dia.

─ Tenho algo a lhe dizer primeiro, meu querido, e não gostaria de fazê-lo deitada. – cortou ela, unindo as mãos e as pernas num único movimento obstinado. Sherlock sentou-se de frente para ela, esperando. – Antes de toda essa confusão, naquele dia em que Mary e Watson vieram nos parabenizar, ela mencionou um ponto que até então nós não havíamos discutido. A chance de termos de nos mudar de Baker Street. Daquela vez, eu disse com todas as letras que isso estava fora de cogitação, frente a fama que fizemos aqui...

─ Bem, se for necessário, quero dizer, agora que Moriarty se foi, eu não me importaria...

─ Fico feliz que esteja disposto a fazer concessões, querido. Contudo, essa é a questão. Eu não mudei de ideia e não acho que vou. – ela tornou a cortar, com um sorriso gentil.

─ Anne...

─ Não. Escute. – continuou, indo se sentar na cadeira ao lado dele. – Eu me casei com Sherlock Holmes. Sherlock Holmes é um detetive consultor que vive em Baker Street. Eu não quero isso mude, eu não quero que você mude essa situação por achar que assim vai estar tornando a situação mais fácil para sua família. Não pudemos evitar as vezes em que fizemos inimigos e tentar apagar isso, querendo ou não, alteraria quem somos e esse tipo de sacrifício... bem, eu acho que nos levaria a viver uma mentira diante dessa criança. É claro que sacrifícios serão feitos ao longo do tempo... Eu assisti a isso de perto com os meus pais e por mais que me pese admitir, percebo agora o lado da história para a minha mãe. Enfim, o que quero dizer é que, como você disse, se formos parar para pensar em todos os “e ses”...

Holmes se limitava a mirá-la, taciturno.

─ Você é maravilhosa. – disse com um sorriso genuíno, fazendo-a corar.

─ Sim, eu sei. – concordou ela, limpando a garganta. – Então, dispomos desse apartamento e a senhora Hudson ainda me cedeu o meu antigo, que servirá muito bem para ele ou ela. Então, eu realmente acredito que ainda seremos o casal de Baker Street por muito tempo, independente do que Mary ou qualquer outro ache. Só queria deixar claro que, sim, talvez no passado eu tenha dito que eu sempre fiz mais sacrifícios do que você, mas nunca quis dizer que esperava... que queria que... que a nossa vida fosse diferente. – concluiu ela, alcançando a mão dele.

─ “Ainda vai discutir comigo? Ainda irá me reprovar, dizer que gostaria de dar umas boas palmadas em mim? E ainda haverá cenas iguais a desta noite em nossas vidas? Perigo constante?” – citou Holmes, depois de um breve momento de silêncio, ficando de pé na frente dela.

─ Elementar, meu caro Holmes. – concordou a senhora Holmes, corando outra vez, ostentando um sorriso bobo nos lábios, abraçando-o