Capítulo 16

Moriarty estava parado de frente para a janela. Não havia sinal de revólver, nem dos dois homens que Thompson mencionara. Ninguém a não ser o professor, e isso não serviu de muito consolo para Holmes. De repente, ele retirou uma folha de dentro de um dos bolsos internos do paletó, erguendo-a a altura dos olhos. Em seguida, ainda sem se virar para encarar o detetive, mas sentindo sua presença ali, começou a ler o que estava escrito.

“Possa Deus escudar-me e proteger-me das presas do Pai dos Demônios! Tão logo a reverberação dos golpes que havia dado desapareceu no silêncio, foi respondida por uma voz de dentro do túmulo! – respondida por um grito, a princípio abafado e entrecortado, como os soluços de criança, mas rapidamente se avolumando em um grito longo, alto e contínuo, totalmente anormal e desumano – um uivo –, um guincho lamentoso, meio de horror e meio de triunfo, tal como só poderia ter subido das profundezas do inferno, um berro emitido conjuntamente pelas gargantas de centenas de condenados à danação eterna, torturados em sua agonia, e pelos demônios que exultam em sua condenação.

É tolice tentar descrever meus pensamentos. Sentindo-me desmaiar, cambaleei até a parede oposta. Por um instante, o grupo de policiais que subia as escadas permaneceu imóvel, em um misto de espanto e profundo terror. No momento seguinte, uma dúzia de braços robustos esforçava-se por esboroar a parede. Ela caiu inteira. O cadáver, já bastante decomposto e coberto de sangue coagulado, estava ereto perante os olhos dos espectadores, na mesma posição em que eu o deixara. Mas sobre sua cabeça, com a boca vermelha escancarada e uma chispa de fogo no único olho, sentava-se a besta horrenda cujos ardis me tinham levado ao assassinato e cuja voz denunciadora agora me levaria ao carrasco. Eu havia emparedado o monstro dentro do túmulo!”

As últimas linhas ainda repercutiam dentro da cabeça de Holmes, enquanto Moriarty se virava para encará-lo de frente. Sorria consigo mesmo, orgulhoso do que acabara de fazer tal qual o gato preto de nome Pluto deveria estar ao final da história. A folha arrancada do livro de Anne estava agora sendo consumida pelas chamas de uma das velas do candelabro que iluminava o quarto, nas mãos de Moriarty.

─ Não posso dizer que ela não tenha bom gosto. – disse enquanto fitava os últimos centímetros de papel empretejarem. – É um final elegante. Construído para ser o clímax da obra. E, afinal, em certos pontos a vida tende a imitar a arte.

─ Os autores de romances góticos devem ser alertados, então. Para que tomem cuidado ao inspirar mentes com seus... finais elegantes. – desdenhou Holmes. – Liberou seus homens.

─ Assim que terminaram o serviço. – assentiu Moriarty. – Eu os contratei para que cuidassem da senhora Holmes até que ela não precisasse mais de cuidados. Aliás, você a ensinou muito bem. Eles tiveram muito trabalho para coloca-la naquele caixão... um deles teve o joelho deslocado.

─ Um aspecto que eu admiro na natureza dela. Nunca se entregar sem uma boa luta antes. – admitiu Holmes, orgulhoso. – Agora?

─ Agora? – Moriarty riu. – Agora eu assisto enquanto você a perde. Avise-me a hora do memorial, ficarei encantado em comparecer. – disse pegando preparando-se para sair da sala, impedido por Holmes, que fechou a porta atrás dele.

─ Estou com homens seguindo o rastro dela lá fora nesse exato momento, assim que acabar com você, ela já estará se recuperando do choque. – interpôs Holmes. Moriarty tornou a sorrir, orgulhoso e por um milésimo de segundo o coração do pomposo detetive parou.

─ Acabar comigo? – desdenhou o professor. – Senhor Holmes, o senhor não irá conseguir acabar comigo esta noite. Na verdade, não acredito que alguma vez terá a oportunidade. Preparei tudo para esse jogo, não fosse pela interferência da senhora Holmes; sim, ela deixou escapar que enviou um bilhete para o senhor antes de selarmos seu túmulo. – explicou Moriarty vendo a expressão confusa no rosto do detetive. – Não fosse por isso, o senhor jamais teria chegado até aqui. Eu pretendia proporcionar-lhe o melhor quebra cabeça de sua carreira, mas minhas intenções foram frustradas pela engenhosidade feminina. Ora, com ela fora do caminho, terei a oportunidade de tentar mais uma vez! E será melhor do que... como foi mesmo publicado no Strand?... A liga dos cabeças vermelhas, garanto.

Holmes permaneceu parado com a porta fechada atrás de si, fitando o professor. Seu plano fracassara e ainda assim ele estava convicto de que Anne morreria.

─ O senhor precisa de mim para que tenha os enigmas de que tanto gosta. Sem mim, os criminosos dessa cidade não são nada! Além disso, como espera continuar a ser o grande Sherlock Holmes enquanto brinca de ser pai? – continuou o professor. A arma de Holmes estava apontada para ele, seu olhar era firme. – Puxe o gatilho e nunca mais verá a senhora Holmes. – advertiu o professor, taciturno. Sherlock não se moveu. – Puxe o gatilho e me veja ganhar o jogo.

Por um segundo a mão de Holmes tremeu e então Moriarty viu a oportunidade, pressionando o pulso de Holmes com uma das mãos, fazendo-o soltar a arma, enquanto a sua outra puxava o outro braço do detetive para trás com força. Numa tentativa de se soltar, Sherlock só foi capaz de arrancar uma luva das mãos do professor. Ouviram-se passos do lado de fora da casa e Moriarty empurrou-o com o pé no meio das costas, jogando-o contra a parede, correndo em seguida. Holmes se recompôs, saindo atrás dele, dando de cara com um Watson muito pálido e nenhum sinal de Anne. Contudo, aquilo não poderia impedi-lo agora... ou não teria outra oportunidade de acabar com Moriarty tão cedo.

Desvencilhando-se de seu amigo, Holmes continuou a correr, alcançando Moriarty prestes a dobrar a curva que o levaria a estrada para Whitechapel. Jogou-se sobre o professor, prendendo seus pulsos contra as suas mãos, tentando controlar suas pernas em seguida. Naqueles instantes, lembrou-se do rosto de seu amigo médico e na falta de sinal de Anne.

─ Onde ela está? – indagou entre dentes, sendo finalmente afastado por outro empurrão de pés do professor, que agora alcançava sua arma dentro do bolso do paletó.

─ Nós dois não apreciamos a trivialidade da vida, senhor Holmes. – comentou o professor. – Eu não a entregaria de bandeja. Esse problema exige um pouco mais de sofisticação. – concluiu atirando. Holmes desviou, vendo Moriarty voltar a correr. Ironicamente, atingiu-o na perna no mesmo local em que atingira Thompson mais cedo.

Moriarty caiu urrando de dor, virando-se para dar de cara com o pomposo detetive.

─ Mycroft e você parecem dividir a mesma opinião a meu respeito. – disse ele, apontando mais uma vez a arma contra a cabeça dele. – Embora eu não tenha me decidido exatamente o que pensar das observações do meu irmão, sei exatamente o que pensar das suas. Talvez esteja certo e grande parte dos grandes casos da minha carreira se deram pela sua interferência, contudo, sempre estive disposto a encerrá-la se a oportunidade de derrota-lo surgisse. Veja agora, aqui estou eu com a arma apontada para a sua cabeça porque teve a audácia de se colocar entre mim e a minha mulher. Então, eu o informo, professor, que é com grande prazer que me prepararei para uma vida mais tranquila em família, já que não mais verei a sua assinatura em crimes anunciados no Times. – disse Holmes, friamente.

─ Vá em frente e ainda assim não conseguirá salvá-la. – provocou Moriarty. ─ Talvez, mas o fardo pode se tornar mais tolerável se eu conseguir liberar a Inglaterra. Adeus, professor. – disse puxando o gatilho. Fez-se silêncio e Holmes correu de volta para a casa, encontrando Watson às lágrimas ao lado de Lestrade.

─ Onde ela está? – exclamou Holmes, agarrando o amigo pelos ombros. O médico estava branco, incapaz de falar. – Watson, onde ela está?!

─ O caixão... o caixão estava... ela não estava lá, somente pedras e o seu vestido. – respondeu ele. – Não sabemos onde...

Holmes levou as mãos à cabeça. “Agora eu assisto enquanto você a perde.” Não... não passara por tudo aquilo para perder... ele nunca havia sido derrotado por Moriarty antes. Avistou o vestido de Anne nos braços de Lestrade, tentando manter-se calmo. Precisava pensar... Supusera que ela seria enterrada sob chão firme e Moriarty sabia que assim faria, então, plantou uma pista falsa. No conto, contudo, a vítima havia sido mantida atrás de uma parede...

─ Lestrade, chame seus homens para dentro. – disse com urgência. – Watson venha comigo. Com sorte, algumas dessas lâmpadas ainda funcionam. Ah, aqui está! – disse, conseguindo acender a do quarto ao lado da sala em que estivera antes. – Procure sinais de reboco recém-colocado nas paredes... elevação nas paredes... Vou subir, avise Lestrade para dividir seus homens para que façam o mesmo! Depressa!

Holmes subiu e entrou direto no primeiro quarto após a escada, havia luz vinda da janela e ele conseguiu encontrar uma lâmpada a óleo, ainda com um pouco para queimar e acendeu-a, levando-a até a parede. Tateou-a, aflito, se não encontrasse logo... O chão era acarpetado, ele percebeu, pois seus passos não faziam som algum. Voltou-se, então, para o carpete e vislumbrou pó de cimento concentrado...

─ Senhor Holmes, encontramos isso dentro do piano. – disse Lestrade erguendo dois pés de cabra na direção dele. – Encontrou alguma coisa? – indagou iluminando o lugar em que Holmes se ajoelhara.

─ Ilumine a parede. – pediu, levantando-se para também iluminar a parede com a lâmpada a óleo. Havia uma leve quebra de nível de um dos lados para aquele de frente para o pó.

─ Homens! – exclamou Lestrade, e toda a força policial de Baker Street invadiu o quarto, seguida por Watson. – Quebrem a parede! – disse entregando os pés de cabra para ajudar.

─ Comecem por baixo e vão subindo pelo meio. – sugeriu Holmes, aflito. Uma dúzia de homens jogava toda a sua força contra a parede recém-rebocada. Quando ela finalmente começou a ceder, um deles disse ter vislumbrado um rosto e então Sherlock partiu para ajuda-los.

O corpo de Anne caiu nos braços de Holmes. Ela estava usando apenas suas roupas de baixo. Seu corpo estava frio e ele pediu para que todos se afastassem enquanto deitava sua cabeça no chão, procurando sentir seu pulso. Estava fraca, mas seu coração ainda batia, tomou-a nos braços, virando-se para Watson e Lestrade. Um entendimento silencioso deu-se entre eles, e segundos depois ela estava na maca sendo levada às pressas para o hospital mais próximo.