Capítulo 1

[...] Possa Deus escudar-me e proteger-me das presas do Pai dos Demônios! Tão logo a reverberação dos golpes que havia dado desapareceu no silêncio, foi respondida por uma vez de dentro do túmulo! – respondida por um grito, a princípio abafado e entrecortado, como os soluços de uma criança, mas rapidamente se avolumando em um grito longo, alto e contínuo, totalmente anormal e desumano – um uivo –, um guincho lamentoso, meio de horror e meio de triunfo, tal como só poderia ter subido das profundezas do inferno, um berro emitido conjuntamente pelas gargantas de centenas de condenados à danação eterna, torturados em sua agonia, e pelos demônios que exultam em sua condenação.

É tolice tentar descrever meus pensamentos. Sentindo-me desmaiar, cambaleei até a parede oposta. Por um instante, o grupo de policiais que subia as escadas permaneceu imóvel, em um misto de espanto e profundo terror. No momento seguinte, uma dúzia de braços robustos esforçava-se por um esboroar a parede. Ela caiu inteira. O cadáver, já bastante decomposto e coberto de sangue coagulado, estava ereto perante os olhos dos espectadores, na mesma posição em que eu o deixara. Mas sobre sua cabeça, com a boca vermelha escancarada e uma chispa de fogo no único olho, sentava-se a besta horrenda cujos ardis me tinham levado ao assassinato e cuja voz denunciadora agora me levaria ao carrasco. Eu havia emparedado o monstro dentro do túmulo.”

_ Anne? – eu ouvi a voz de Sherlock me chamando de volta para o mundo assim que fechei o exemplar de Poe que estava lendo. Estava cansada de ficar sentada na mesma posição por todos aqueles longos minutos, pois “O Gato Preto” prendia tanto a minha atenção, que relia duas vezes cada um de seus parágrafos. Puxei a porta para que meu marido entrasse em resposta ao seu chamado, ao passo que guardava meu livro junto aos outros.

_ O que estava lendo, Anne? – indagou meu marido, o que me deixou extremamente desconfiada. Holmes sabia que quando me fecho no quarto é porque estou degustando Poe, o que queria dizer com aquela pergunta?

_ Que tipo de jogo está querendo jogar comigo, Sherlock? – retruquei virando-me para encará-lo. – Sabe muito bem que eu estava lendo Poe. Sua pergunta só pode significar uma coisa, concluo antes de você me confundir com um jogo bem bolado de palavras. Ou está tão entediado a ponto de vir me atrapalhar em meus devaneios, ou simplesmente perdeu boa parte de sua memória. Como a segunda é impossível, conhecendo você, prefiro pensar que a primeira é a resposta para o caso. Como diz: Quando se elimina todas as possibilidades, o que quer que sobre deve ser a verdade. – disse me postando de frente para ele.

_ Desenvolveu uma técnica nova para troçar de mim envolvendo meus próprios postulados. Engenhoso. – respondeu tomando minha mão para beijá-la. Estava úmida.

_ Você andou trocando seu cachimbo por... outros métodos para se matar? – interroguei de pronto, puxando minha mão das dele com violência. – Cocaína ou Morfina? – acrescentei antes que negasse.

_ Anne...

_ Não me venha com desculpas esfarrapadas, Sherlock. – intervim zangada. – Você piorou muito desde que voltou da sua... falsa visita ao paraíso. Já falei com o sr. Foster para não vender-lhe mais um estojo sequer! Além disso, John e eu já cansamos de insistir que isso não é...

_ Isso não é bom para mim, estou me matando aos poucos. – interveio ele adentrando o quarto com violência. – Já me cansei dessa conversa e como o Doutor e você parecem estar fartos dela também, sugiro que nada mais seja comentado. Eu não injeto nada mais do que uma quantidade mínima necessária para...

_ Não me interessa a quantidade, quero que pare. – insisti resoluta na minha opinião sobre a cultura dele de se drogar para clarear a mente. – Sei que o distrai quando está entediado pela falta de um caso, mas, podemos encontrar uma outra forma de curá-lo disso. Toque seu violino de madrugada, eu não me importarei mais... desde que possa ter uma vingança formal durante o dia. Convide-me para um duelo de esgrima. Nossos duelos sempre pareceram divertir você. – comentei me sentando ao lado dele na cama.

_ Somente quando estamos no meio de uma discussão. – observou ele.

_ Ora, então discuta mais comigo. – retaliei com um sorriso gentil. – Se me lembro bem... foi uma das minhas condições para que aceitasse seu pedido de casamento. Que você ainda discutisse comigo...

_ Que ainda a reprovasse e dissesse que gostaria de dar umas boas palmadas em você, ah, e que haveria sempre perigo constante em nossas vidas. – completou ele com uma risada abafada.

_ Lembra-se?! – exclamei surpresa.

_ Eu poderia estar focado na minha crescente vontade de beijá-la, Anne, mas ainda fui capaz de ouvi-la com clareza. – Holmes respondeu com uma pitada de ofensa em sua voz, o que me fez rir. – De fato, eu deveria voltar a discutir mais com a senhora. Anda risonha demais. – comentou.

_ Qualquer coisa para tirar a cocaína das suas veias. – assenti enquanto me erguia da cama, tendo minha mão puxada para que olhasse para trás, em seguida. – O que?

_ Nada. – ele respondeu se levantando também. – Sobre o que iremos discutir, então? – indagou roçando a mão no relicário que eu carregava no pescoço desde o dia em que ele me dera como presente de quatro anos de casamento.

E que quatro anos foram. Sherlock conseguira cumprir com todas as promessas que havia feito quando consenti em me casar com ele e apesar de não ser o marido perfeito, eu jamais consegui me imaginar casada com qualquer outra pessoa. Fomos perseguidos, ameaçados e por um ano cheguei a crer que enviuvara... para só então perceber que tudo não passou de uma peça bem pregada dele. Romance? Quem precisa disso quando se tem um cientista louco em casa? Eu já tinha glamour o suficiente. Mesmo os assuntos murmurados na cama antes de dormir não eram normais.

_ Decidiremos isso mais tarde, querido. Agora eu vou ter com nosso querido Doutor. – respondi pondo-me a correr para as escadas.

_ Watson? O que poderia querer com ele? – indagava meu marido pondo-se a correr atrás de mim. – Alguma coisa errada, Anne? – inquiriu me segurando pelo braço.

_ Apenas um exame de rotina, não se preocupe. – respondi retirando gentilmente a mão dele do meu braço e pondo-me a vestir o casaco. Saindo em seguida para ter com John.

Meu marido sempre foi um homem observador e sabia que havia algo errado comigo. Nada que fosse me matar, é óbvio, do contrário já teria mandado buscar John há mais tempo, mas suficiente para preocupa-lo. O que aconteceu é que de repente eu sofri drásticas mudanças na minha alimentação. Certos alimentos a que antes cabia apenas a minha indiferença, começaram a ter minha total atenção. Pobre senhora Hudson, tendo que mudar o menu a cada semana (se não dia) para atender a esses novos desejos. Holmes acusava-me de estar sendo manhosa e em retaliação eu o agredia com palavras, enquanto em outros momentos eu simplesmente ficava chorosa ou até mesmo obediente aos meus instintos mais selvagens. De fato, algo que precisava ser verificado... ou identificado.

A casa dos Watson não ficava muito longe de Baker Street, e acho que nosso amigo fez isso apenas para não preocupar mais o pomposo detetive. Caro John... sempre pensando nos amigos antes de tudo. Naquela tarde, recebeu-me com um grande sorriso. Estranhei a ausência de Mary, mas a minha amiga estava numa visita com os pais.

_ E por que você se ausentou? – perguntei enquanto ele me guiava para a sala que era seu consultório.

_ Ora, eu havia marcado com você. – respondeu de pronto, abrindo a porta para mim. – Sente-se. – pediu-me com polidez. – Então, senhora Holmes? O que tem de novo para me contar?

Respirei fundo e comecei.

_ Bem, Doutor, – o tom que usávamos ao nos referirmos por nossos títulos era de pura brincadeira. – Eu venho passando por intensas mudanças de apetite e muitas vezes de humor também. Mais do que o usual para quem se intitula a esposa do homem mais pomposo da Inglaterra. Até ele tem reparado que estou mais estranha do que o normal...

Assim que relatei as mudanças de humor, os olhos de John adquiriram um brilho diferente. Estava se contendo por alguma coisa, eu podia sentir a vibração no ar e podia ver o sorriso de satisfação escondido no canto dos lábios, esperando para ser totalmente liberto.

_ Tem sentido enjoos, Anne? – perguntou logo em seguida, reprimindo um risinho.

_ Ultimamente sim, e só melhoram quando eu como alguma coisa. O que não é nada bom já que eu tenho tendência a engordar e isso não vai me ajudar durante a resolução de um caso. Toda a correria e tudo mais, você entende. – respondi com tom jocoso.

_ Acho que vai precisar evitar seus amados casos por um tempo. Diga-me, quando foi a última vez que você... bem, como estão as suas regras? – perguntou ele de forma bastante profissional.

_ Bem, esse mês estou atrasada, mas acho que foi o susto que levei em nosso último caso. Uns homens...

_ Quando foi a última vez que você e o senhor Holmes tiveram relações? – tornou a indagar com seu tom profissional, dessa vez sem conter um sorriso.

_ Ora... John... eu... John onde você quer chegar? – indaguei sentindo-me corar.

_ Anne, eu pensei que você fosse capaz de identificar por si mesma o que está acontecendo. – disse ele reprimindo uma risada. – Se você está sentindo enjoos, mudanças de hábitos alimentares e de humor, e se suas regras estão atrasadas e se você e Holmes mantiveram relações há pouco tempo, bem... Ora, Anne, minha querida Anne... você está grávida! – exclamou ele levantando-se e vindo para me abraçar.

Eu fiquei sem ação, completamente perplexa enquanto retribuía ao gesto de carinho. Watson me congratulava como se tivesse acabado de descobrir a cura de alguma doença e ria da minha provável cara de espanto, incentivando-me a gritar de felicidade. Contudo, só o que obteve de mim foi um quase desmaio. Rapidamente, ele me guiou de volta a cadeira e buscou-me um copo d’água. Eu deveria estar radiante, é claro, mas só no que eu conseguia pensar era em Sherlock Holmes e sua reação.

_ Oh, John, Oh, John... e agora? O que eu faço? Como vou dizer isso ao Sherlock? – indaguei depois de dois copos seguidos de água.

_ É melhor tomar cuidado, as idas ao banheiro serão mais frequentes agora que sua bexiga está comprimida. – retrucou meu amigo, ignorando meus lamentos.

_ É sério, John. Como eu vou fazer isso? Como?! – exclamei tampando o rosto com as mãos.

_ Ora, Anne, e por que acha que ele não percebeu? Holmes é um homem observador, é claro que já desconfiava disso. Além do mais, ele não é completamente inocente nisso tudo. Não se faz um filho sozinho. – disse brincando no final.

_ Bem, não posso dizer que ele não tenha reparado e que não estava preocupado. Mas suspeitar de gravidez? Oh, John... nós nunca sequer cogitamos a possibilidade de ter filhos e agora BUM, vamos ser pais.

_ E eu sei que essa criança não poderia pedir por pais melhores. – respondeu o médico, sentando-se de frente para mim. – Anne, o máximo que ele fará é o que você quase fez. Um desmaio, uma pequena exaltação, nada mais que isso. Holmes jamais a abandonaria ou a culparia por essa criança, ao contrário, a acolherá com orgulho. Ele a ama, Anne. – disse tentando me acalmar, tomando minhas mãos entre as suas.

_ Você o tem em mais alta conta do que eu. – brinquei com zombaria. – Eu sei que ele seria incapaz de me deixar sob tais circunstancias, mas, quanto a felicidade que essa criança trará... ele já se sentiu culpado ao se casar comigo pela nova gama de possibilidades para chantagens que seus inimigos adquiriram. Imagine com uma criança...

_ Como eu disse, ele não poderia pedir por pais melhores. Vocês vão saber se arranjar. Caso contrário, nenhum casal de Londres será capaz.

_ Como amigo, John, o que recomenda? Eu devo chegar em casa e dizer? – perguntei pensativa.

_ Eu acho o melhor a ser feito.

_ E eu acho que estou em apuros, como sempre. – retruquei rindo com amargura. – E como médico? Quais suas recomendações?

_ Repouso, não se esforce e aproveite essa carta para obter tudo o que sempre quis do senhor Holmes. – sugeriu meu amigo com uma piscadela.

Finalmente sentindo o peso da criança em mim, tomei meu caminho de volta a Baker Street depois de mais congratulações de John, completamente despreparada para encarar meu marido.