Capítulo 2

O caminho que separava a casa de John de Baker Street nunca foi tão grande. Por certo foi a brisa de verão que me ajudou a chegar até lá, já que meus pés pesavam sobre o chão. Watson tinha razão quanto a reação de Holmes. É claro que meu marido iria se exaltar, quase desmaiar e em seguida dizer alguma coisa, à sua maneira de reagir quanto a tudo, mas diria. Ainda assim, eu sentia que a notícia não seria tão bem recebida. Sherlock e eu nunca falamos sobre ter filhos, sequer como os criaríamos em meio a tanto caos.

Eu sempre tinha ouvido falar que, não importa como, as filhas sempre acabam ficando iguais a suas mães quando têm filhos. Doía só de pensar que eu poderia privar qualquer criança de alguma coisa, só porque não acreditava que algo era melhor para ela. Pensar que... se fosse uma menina... teria que passar pelas mesmas convenções que eu passei por um bem social... Mas não. Nunca! Isso eu posso garantir. Essa criança é minha e eu vou cria-la como achar melhor, independente do que qualquer pessoa tiver a dizer. Inclusive Sherlock.

Quando cheguei a Baker Street, mirei a janela do escritório dele antes de entrar. Podia ouvir nuances do som do violino, que só aumentaram quando fechei a porta atrás de mim. Impetuosamente, me dirigi às escadas para subir e acabar logo com isso, mas acabei me acovardando. Voltei minha atenção, por fim, para a porta que levaria aos domínios da senhora Hudson. Era indiscutível que precisava de um conselho feminino no assunto e que, ao mesmo tempo, uma opinião mais madura sobre o caso não seria nem um pouco ruim. Além disso, ter um aliado naquela casa durante os próximos nove meses viria a calhar. Resolvi, então, descer para falar com ela.

─ Senhora Hudson, algum motivo especial para o senhor Holmes estar tocando seu violino? – perguntei, também curiosa para saber o motivo que levara Sherlock às suas práticas tão cedo.

─ Oh, penso que está magoado, querida. Voltou da rua há alguns minutos no pior dos humores. Perguntei se precisava de alguma coisa e ele respondeu mais furioso ainda que precisava de mulheres que não se metessem tanto em sua vida. Veja só! – exclamou a senhoria chocada.

─ Acho que a culpa disso seja minha, senhora Hudson. O senhor Holmes deve ter ido verificar se eu realmente proibi o senhor Foster de vender-lhe qualquer tipo de refil para aquele estojo maldito. – expliquei sentindo meu rosto corar. – Sinto muito que tenha pagado o preço pelas minhas ações.

─ Ah, nada disso, meu bem. – disse ela sorrindo. – Eu já lidava com os humores do senhor Holmes muito antes da senhora ter vindo para Baker Street. Contudo, não posso deixar de ainda me surpreender de vez em quando. – acrescentou arqueando as sobrancelhas, o que me fez rir. Mas não podia me esquecer das razões que me levaram até ali.

─ Eu... eu preciso lhe falar uma coisa, senhora Hudson. – comecei engolindo em seco.

─ Oh, meu Deus, querida... você está pálida. – observou ela, fazendo com que eu me sentasse. – O Dr. Watson diagnosticou algo que seja ruim? – indagou a minha senhoria sem rodeios.

─ É exatamente este o ponto, senhora Hudson. Eu não sei se é algo bom ou ruim, e as circunstâncias não tornam a conclusão dessa diferença nada fácil. – comentei soltando um riso abafado.

─ Estou começando a me preocupar, criança. O que é? – retrucou se sentando de frente para mim.

─ Eu... eu estou grávida, senhora Hudson. – respondi com a voz trêmula. A reação de Martha Hudson foi uma das mais engraçadas possíveis. Ela gritou de alegria e se jogou contra mim para me abraçar, recobrando a compostura segundos depois.

─ Mas, senhora Anne, eu já suspeitava disso! Há dois meses quando seu apetite começou a mudar! – explodiu a nossa senhoria com um sorriso enorme. – E precisa se preocupar com o senhor Holmes, tomei a liberdade de dividir as minhas suspeitas com ele logo no início dessas mudanças.

─ A senhora... A senhora falou com ele? – indaguei com a voz um pouco mais aguda do que o normal, piscando várias vezes. – Bem, e o que ele disse dessas suspeitas?

─ Não disse nada. Apenas me olhou como sempre faz quando eu digo alguma coisa de que ele não tem suspeita e continuou com o que estava fazendo. – respondeu cruzando as mãos. – Mas qualquer um que a conhece bem notaria, querida. Eu mesma fico surpresa que tenha demorado a chegar nessa conclusão sozinha.

─ Não posso dizer que tenha sido preparada para reconhecer esses sintomas, senhora Hudson. Depois de tantas afirmativas de que jamais me casaria, minha mãe perdeu a esperança em mim. E não tive um convívio muito próximo com gestantes. – retruquei na defensiva.

─ E a senhora não está feliz?! – exasperou-se ela. – É um filho do senhor Holmes! O homem pelo qual a senhora é perdidamente apaixonada e por quem entrou em luto eterno quando pensamos que estivesse morto.

─ E com quem nunca falei sobre filhos. – acrescentei com sarcasmo.

─ Pois eu acho que essa criança não poderia ter vindo em melhor hora. – assegurou minha amiga com seu ar superior que eu achava uma graça. – Eu mesma rezei muito para que viesse, e digo mais! Quem vê a senhora e senhor Holmes juntos se pergunta muito qual a razão de ainda não terem um filho.

─ Pois essas pessoas deveriam questionar...

─ Se o seu medo é a reação dele, eu a previno. Não há nada com o quê se preocupar. – interveio ela me levantando pelas mãos. – Suba e vá lhe contar a novidade, daqui a pouco eu levo o chá.

Acho que Martha Hudson é a única que pensa que todos os males deste casamento se resolvem com chá. No final, contudo, eu segui o conselho dela e subi até os aposentos de meu marido, com mil e uma ideias na cabeça sobre como tocar no assunto e em consequências dele. Teríamos que nos mudar para junto da sala de consultorias, onde antigamente ficava seu quarto de solteiro, já que eu detesto a ideia de deixar meu filho dormindo próximo a uma sala em que todo o tipo de gente pode entrar e, por isso, ele não terá liberdade para brincar. Não. O antigo quarto de Watson será muito mais confortável... mas também poderíamos fazer algo no meu antigo quarto...

─ Entre, Anne. – a música havia cessado e meu marido estava sentado em sua poltrona fumando em seu cachimbo. – Como estava o nosso amigo doutor? – perguntou de pronto.

─ Watson está ótimo, como sempre. – respondi abrindo a janela. – Agradeço por se preocupar com a saúde dos pulmões das outras pessoas da casa. – desdenhei me sentando na poltrona de frente a dele.

─ A fumaça não incomoda mais ninguém, a não ser você. – retrucou meu marido friamente, visivelmente perturbado pela minha interferência em sua aquisição de cocaína e morfina. Contudo, eu não queria entrar naquele assunto e discutir.

─ Incomodava o Watson e incomoda a senhora Hudson também. – devolvi dando de ombros.

─ E ainda assim nenhum dos dois desceu a um nível tão baixo para interferir em meus hábitos quanto você, Bergerac. – ponderou Holmes batendo com a mão em um de seus joelhos, se erguendo energicamente para aproximar-se de minha poltrona e repousar seu olhar sobre mim.

─ Se acha que vai conseguir fazer com que eu me sinta culpada por ter falado com Nigel, está muito enganado, Holmes. – rebati no mesmo tom.

─ Ah, eu sei que deve estar se sentindo muito orgulhosa com isso. Mas, não precisa se preocupar, afinal, a farmácia de Nigel Foster não é a única que dispõe artigos repudiados por você. – constatou Holmes, fazendo com que eu estourasse.

─ Não ouse colocar-se contra mim, Sherlock Holmes! Eu o proíbo de tornar a trazer qualquer tipo de droga para dentro de casa que não a porcaria que você já usa no seu cachimbo! Ainda mais nas circunstâncias atuais... – parei antes que falasse demais. Muito observador, meu marido percebera a minha pausa abrupta e arqueou as sobrancelhas. Agora, as chances de tocar no assunto calmamente seriam nulas.

– O que disse Watson? – perguntou ele de pronto, mais calmo.

─ Ah... – péssimo começo. Depois que eu gaguejo, ele sempre tem certeza de que algo está errado. – Bem... Ai, maldição! Eu realmente não nasci para isso! Escute, Holmes, muito bem, eu vou dizer e você tente não desmaiar ou explodir, nem ficar chateado...

─ Chateado?! – exasperou-se Holmes, reprimindo um sorriso, tornando a se sentar em sua poltrona. – Você achou que eu ficaria chateado por você estar grávida?

─ Não é possível! – exclamei com a voz esganiçada. – Você já sabia!

─ Bem, no princípio foi apenas uma suposição depois que a senhora Hudson plantou a semente da suspeita na minha cabeça. Em seguida, lendo um pouco sobre o assunto e comparando com o que eu tenho observado em você, era óbvio demais para tentar recusar.

─ Por St.George, e todo esse tempo – de lá até aqui – eu praticamente me matei pensando em maneiras para contar a você... Simplesmente chego aqui para descobrir que você já tinha deduzido! De todos os maridos do mundo, eu tinha que estar casada com o pomposo detetive de Londres! Você é um DEMÔNIO, Sherlock Holmes! – bradei me levantando de nervosismo, o que fez meu marido deixar de se conter e entregar-se a uma gostosa gargalhada.

─ Ora vamos, senhora Holmes. Admita que lhe poupei um momento muito constrangedor. – retrucou ele recuperando o fôlego.

─ Então... não está... quero dizer...? – ele me pegara completamente desprevenida e agora não conseguia formular uma frase que fosse. E aquilo pareceu divertir e ao mesmo tempo ofender Holmes.

─ Sinceramente, Bergerac, você e sua mania de sempre pensar o pior de mim baseada em relatos românticos de Watson. Francamente, nem mesmo você pode ser tão contraditória. Vive criando teorias tolas para provar que eu não sou tão indiferente aos sentimentos e quando tem uma chance realmente boa, desperdiça. – bradou ele de volta, ofendido.

─ Nós nunca havíamos falado em ser pais, Holmes. – disse depois de um curto silêncio. – Como queria que eu me sentisse? Por quatro anos você, os Watson, Mycroft e a senhora Hudson foram a minha única família, eu nunca desejei por mais. Não me senti no direito de desejar por mais porque você já se arriscava o bastante tendo se casado em campo aberto comigo... Imagine com filhos! Quantos pedidos de resgate não apareceriam naquela porta?

─ É, claro, arriscado. Eu sempre soube que seria arriscado manter pessoas muito próximas a mim, prometendo a mim mesmo que ninguém jamais sofreria pelo meu trabalho. Daí, primeiro foi Watson e para mim estava tudo bem, afinal um homem consegue se virar sozinho, por mais adversas que as situações sejam. Entretanto, em seguida veio você, minha cara senhora Holmes, e embora suas habilidades com uma arma sejam ótimas, não deixo de me preocupar, não é? Preocupo-me que um movimento em falso venha a custar a sua vida.

─ E você acha que é mais fácil para mim? Eu fiquei viúva uma vez, meu caro, e mesmo que tenha sido uma brincadeira de muito mal gosto, não foi nada divertido. – disse com raiva e ao mesmo tempo encantada com aquela rara declaração. – E agora essa criança só representa mais uma coisa com o quê se preocupar? – perguntei friamente.

─ Não. – ele disse com raiva. – Ela representa muito mais, o que não direi ou você ficaria convencida. Mas, é claro que, como pais, nos preocuparemos, mas... Nós temos uma vantagem. – ponderou ele me tomando pelas mãos.

─ Temos? – disse mirando-o desconfiada.

─ Temos. Ninguém se mete com a família Holmes sem pagar o preço. – explicou ele, sorrindo astutamente para mim.

─ Ah, sim. Essa vantagem... Céus... ele não tem mais do que dois meses de vida e quase causou uma discussão. – brinquei, finalmente sem conter as lágrimas. – Nada muito fora dos nossos padrões... – e ele sorriu.

─ Eu li que você não deve ser chateada ao longo desse período inicial e muito menos no final, mas, acho que certas regras não vão conseguir se aplicar a nós. – comentou Sherlock, pensativo.

─ Claro que não. – concordei de pronto, aceitando lenço dele para secar meus olhos. – Se você começar a ser gentil demais comigo, vou achar que você é alguém muito bem disfarçado e vou fugir com o meu filho para bem longe. – e rimos. – Eu não tinha me permitido ficar feliz com a notícia até agora, baseada em relatos românticos do John, mas, eu estou feliz, Sherlock. Com medo, mas feliz.

─ E deveria ficar, minha querida senhora Holmes. – concordou ele voltando a tocar seu violino. – Não é sempre que uma mulher tem a honra de colocar um espécime tão formidável de criança no mundo. Prometo que será uma garotinha fora do comum, digna do meu nome.

─ Espere um pouco. – disse tornando a me exaltar, virando o pescoço abruptamente para fita-lo. – Primeiro, ela é tão Bergerac quanto Holmes e se for uma criança brilhante será porque herdou os meus genes, não os seus... se herdar os seus, que Deus tenha piedade de mim!... E segundo, quem afirmou que será uma menina? – perguntei cruzando os braços.

─ É claro que será uma menina, Anne. – assegurou meu marido com petulância. – Os deuses me deram uma chance para mostrar a você como uma verdadeira jovem de valor deve ser educada. – ponderou ele me fazendo corar de raiva.

─ Escute aqui, Holmes. – adverti apontando o dedo para dele. – Você não está achando que vai... transformar essa criança numa...

─ Anne, você não pode se exaltar. – contornou ele me olhando com malícia. – Além disso, eu nunca acho. Eu sei.

─ Pois fique sabendo que agora eu vou rezar todas as noites para que seja um menino! E ele vai ser tão perfeito quanto seu falecido avô foi, afinal, eu herdei a personalidade do meu pai.

─ Pois fique você sabendo, Bergerac, que se for um menino, você não chegará nem perto dele. A última coisa de que o mundo precisa é outra versão de Anne Bergerac. – interveio meu marido. – Mas, como todos sabem, será uma menina e está acabado.

─ Holmes. – resmunguei rangendo os dentes.

─ Sim, eu também estou muito feliz, minha cara. – provocou meu marido sem se virar para mim, mas eu sabia que estava sorrindo consigo mesmo. Não teria trégua sequer durante a minha gravidez, e no fundo isso me deixava feliz. – Entre, senhora Hudson. – disse abaixando o tom de voz ao ouvi-la subindo as escadas.

─ É seguro entrar agora? – indagou ela, entrando cautelosamente, o que fez minha tensão diminuir por completo. – Ouvi gritos, mas suponho que essa excitação já tenha terminado e que felicitações se façam necessárias, não é, senhor Holmes?

Por mais desgostoso que estivesse em ter que parar o que estava fazendo para aceitar um abraço de felicitações da senhora Hudson, eu reparei que um sorriso de pura felicidade se escondia nos lábios de meu marido. Ainda ouviríamos muitos destes depois que toda Londres ficasse sabendo que Sherlock Holmes iria ser pai.