Sin Dolor

No digas nada


Terminei de passar o meu batom vermelho pelo retrovisor da minha Preta, dei um sorriso para o meu reflexo, tinha acordado de bom humor, talvez por estar mais próxima da natureza. O que não era difícil nesse vilarejo, mas ontem eu fui dormir na fazenda com minha avó. Aqui é estranhamente mais quieto e dava para ouvir os ruídos dos animais a noite, o lugar transmitia serenidade. Não era a toa que minha vó quis vir morar aqui, sempre foi sua vontade.

Senti meu celular vibrar no bolso. Tirei para ver qual notificação era, e bem, uma mensagem cotidiana do Paco. Perguntando como eu tinha dormido e se nos veríamos hoje. Fiz careta ao pensar que já tínhamos nos visto ontem e pensei também nos planos paralelos que eu tinha. De qualquer forma, eu o respondi de forma carinhosa e lamentei que não voltasse hoje para casa de Toni, depois marcaríamos algo. Pois é, eu sei o que estão pensando, talvez isso venha do meu lado culpado, mas eu o trato de uma forma carinhosa para disfarçar que estou o evitando. E cada vez mais ele vem percebendo isso. Porém, ele não é meu foco agora eu também acordei de bom humor porque hoje era mais um dia de caça.

Coloquei meu capacete de volta e liguei minha moto e completei o caminho que faltava em direção ao sítio com velocidade baixa, nem sei que tipo de desculpa inventaria, mas algo viria a minha cabeça no momento certo. Eu cheguei, estacionei e desci da minha moto e ninguém apareceu.

Só que tinha a sensação de estar sendo observada, ao olhar novamente para minha moto, vi uma cadela me encarando com curiosidade com o rabo balançando feliz e a língua para fora. Uma cadela vira-lata, linda que tinha um coleira rosa empoeirada.

:- Vem cá, menina. – Eu chamei sorrindo e aparece que ela só esperava esse chamado para vir até mim. A coleira rosa escrito grande Micca me fez rir ainda mais com ela tentando lamber meu rosto, essa sim é uma boa recepção. – Que linda você é.

:- É por isso que nunca consigo descobrir quem rouba minhas frutas, Micca não é uma boa cadela de guarda. – Escutei o comentário bem humorado de uma voz masculina vindo atrás de mim. Ele não fazia uma crítica a mascote dele e sim uma constatação.

:- Oi, boa tarde! Eu tive... – Aquele era o momento para pensar numa desculpa, olhei para minha Preta. – Problemas com a minha moto e resolvi parar um pouco por aqui. – Disse ao senhor. Confesso que não o esperava.

:- Deve precisar de um pouco de água fresca, eu acabei de tirar do poço. – Ele disse e não sabia dizer se era para a minha moto ou para mim. Como ele colocou a água numa caneca e me ofereceu aceitei como educação apesar de ter a minha garrafa de água.

:- Eu sou Alfonso Herrera. Muito prazer. – Ele me ofereceu a sua mão e então eu prestei mais atenção no seu rosto. Claro só poderia ser o pai dele e dono dessas terras.

:- Eu sou Dulce María. – Sorri e apertando sua mão e ele me deu um sorriso de lado que me lembrou o filho dele. Lhe devolvi sua caneca. – Para aproveitar que já estou aqui, posso ver seu filho, sou amiga dele.

:- Você é a neta de Dolores, não é? – Ele ainda sorria de lado ao me ver afirmar com a cabeça por mais confusa por ele ter me reconhecido. – Vilarejo pequeno a maioria se conhece, eu compro alguns vinhos da sua avó. – Ele se explicou. – Meu filho está no celeiro com Zorro e os outros cavalos. – É por ali. – Ele apontou. – Não se preocupe com sua moto, Micca vai cuidar bem dela.

Eu ri junto com ele por mencionar os dotes da cadela que agora seguia o seu dono para algum lugar do sítio. Peguei minha bolsa pequena e fui na direção do celeiro. Sabia que ele estava por aqui e não perderia a chance de encontrar mais uma vez com Poncho, quem sabe hoje seria o meu dia de sorte e ele cederia aos meus encantos. Considerava ele um homem difícil porque ele tinha uma facilidade muito grande em me fazer se abrir com ele, não tenho nenhum receio ao me mostrar. Todavia, ele não fala de si mesmo é como se ele precisasse de confiança e cada conversa nossa eu tirava alguma pista desse mistério que ele era. Estou bem empolgada.

Isso não me intimidava e sim me instigava mais, me deixava mais atraída por ele. O vi encostado numa cerca, camisa azul clara aberta, calça jeans colada e um chapéu de palha pendurado na cerca, ele estava descalço e que imagem maravilhosa, minhas amigas, isso até eu perceber o que ele estava fazendo ficando surpresa.

:- Eu pensei em você quase como um santo e pasmem você não é puro. – Praticamente apertei o botão play para mais um joguinho particular.

Poncho se virou de perfil e me olhou de lado estava com a barba grande desde a última vez em que eu o vi, aquela era uma das imagens mais sexy que eu presenciei ultimamente.

:- Você quem deveria ser mais moderna habitante desse vilarejo pasmem julga como os outros. - Ele esperou que eu estivesse do lado dele para zombar de mim. Assim como eu fiz com ele e tentei evitar a surpresa, mas fiquei constrangida com a resposta. Eu não imaginava. Notando isso ele deu um riso. – Se você não contar para ninguém eu também não conto. – Ele me ofereceu entre seus dedos calejados o cigarro que fumava.

:- Você é um padre bem diferente. – Comentei aceitando o cigarro e dei um trago.

:- Eu não volto aqui tem alguns anos, fiquei longe durante muito tempo, foi aqui a primeira vez em que fumei quando um garoto de uns doze anos naquela época era ser mais másculo fumar. Lembro de detestar por ter me engasgado, assim como meu irmão meu pai riram de mim. – Ele falou nostálgico ao me olhar. – Voltei aqui e depois de colocar comida para os animais pensei em tentar experimentar de novo, antes de você chegar eu engasguei algumas vezes. – Eu ri só de imaginar e Poncho me sorriu abertamente ao ponto de ver a falha entre os seus dentes da frente que só o deixava mais charmoso.

:- Então quer me convencer que essa é a segunda vez em que fuma na vida? – Eu perguntei desconfiada.

:- Sim, tem anos que não fumo. – Ele respondeu e ao me ver ainda desacreditada, acrescentou. – Tem vinte anos que não fumo desde que experimentei a primeira vez. – Ele fez uma careta e mais uma vez se lembrava do passado. – Depois de não gostar nunca mais quis voltar a colocar um cigarro na boca, depois com dezessete anos decidi seguir minha vocação. Fui seminarista, depois desse processo de adaptação foram quatro anos de Filosofia e mais quatro anos de Teologia, era uma rotina pesada de estudos, chegava a ser mais de dez horas por dia. Para quem pensa que é fácil ser padre, não é.

Logo ele que é tão discreto, hoje me contou algo assim, estava contente saber mais sobre sua vida. Lembrei da sua chegada a Lagoa Azul, quando foi questionado se era o novo padre, minha alegria ao escutar que não. Ainda que depois me frustrei ao descobrir que ele só não era encarregado daquela paróquia, estava passando férias com o pai.

:- O que um padre deve ter para ser um bom sacerdote? – Aproveitei que ele estava aberto a me responder.

:- É um homem que reza que é um homem de Deus e que o povo veja isso nele. Alguém que não tenha tempo ruim para ouvir e ajudar qualquer um fiel que precise, sem julgamentos. É homem que une, que pensa em sua comunidade como coletivo que luta contra injustiças, que se desprende cada vez mais desse mundo individualista. É um homem que sofre, alguém que se julga inferior aos demais; que renúncia a privilégios físicos, emocionais, econômicos em prol do bem pelo outro.

:- Realmente tem que ter vocação para ser padre. – Comentei com meus pensamentos distantes associando ele a tudo o que acabo de ouvir.

Pensei na firmeza com a qual ele falava sobre sua vocação, com convicção. Pensei por onde ele deve ter passado ou vivido antes de chegar até aqui. Fumei mais antes que os meus pensamentos me tragassem.

:- Por pouco você não me encontra por aqui. – Ele comentou vendo que eu fiquei calada e pensativa. – Estava andando com Zorro, fazia tempo que não corria por essas terras, me senti bem, livre andei com ele sem cela.

Voltei a sorrir já ignorando o tema religião que era um assunto delicado se tratando da nossa relação e mais pela atração que eu sinto. Zorro era o cavalo de Poncho, lindo, da raça Percheron só sei disso porque uma vez ele me contou empolgado. A relação que eles tinham era de se admirar, o amor e confiança que um tinha pelo outro, uma vez ele me contou a história dos encantadores de cavalos e de como, na verdade, ele foi encantado por Zorro.

:- Queria algum dia aprender a andar de cavalo fazer jus ao lugar onde eu estou morando. – Eu sorri e foi à vez de ele ficar surpreso com o que eu disse.

:- Você não sabe andar a cavalo? - Ele perguntou o óbvio incrédulo. E eu tive que dar um tapa leve em seu braço. Soltando fumaça pelo meu nariz.

:- Quem foi me ensinar a andar foi meu pai, ele não tem muita paciência de ensinar e eu era apressada, acabei caindo porque o cavalo se assustou e me derrubou. Fiquei engessada meses, aguentei várias piadinhas, foi uma grande lição para esquecer essa ideia e me apegar a motores.

:- Seu pai não soube te ensinar mesmo, os cavalos sentem quando alguém tem medo, um dia vou te ensinar a andar a cavalo e vai esquecer esse trauma tenho certeza, você é uma mulher que gosta de liberdade e pode também construir uma bonita relação com algum cavalo como você tem com suas máquinas e vai se apaixonar por cavalgar. – O que me restou foi concordar com minha cabeça escondendo o fato que eu realmente senti medo quando tentei montar pela primeira vez.

:- Quem sabe você deixa até sua Preta de lado. – Ele comentou divertido e eu por minha vez só neguei com fervor minha cabeça enquanto eu terminei o seu cigarro.

:- Qual a chance disso realmente acontecer? É como se me pedisse de deixar de ouvir rock e passasse a ouvir só country! – Eu afirmei pegando o seu chapéu e colocando na cabeça.

:- Ei! Está ofendendo meu gênero musical? – Ele perguntou se fingindo de ofendido.

:- Claro que não. Mas, você insinuou que eu deixasse de ser quem eu sou. Isso sim é uma ofensa.

Ele se abaixou para pegar numa grande pedra outro cigarro e dessa vez ficar de frente para mim. Vi que ele usava uma regata branca suja e suada por baixo da camisa azul clara estava assim pelo trabalho que ele fazia antes, ele reparou a forma como o sequei que involuntariamente fechou sua camisa a abotoando sorrindo sem graça.

:- Pode aceitar a oferta desse outro cigarro já que eu sei que não vou fumar mesmo. – Ele me deu ainda sem graça, eu gostava quando ele ficava assim o deixava mais atraente .

:- Podemos fumar esse juntos, garoto do interior. – Eu ainda continuei o secando. – Já que é o seu último. – Ele acendeu com um palito de fósforo que tirou de uma caixinha e eu ri porque não via alguém fazer isso tem anos. – Ele tragou leve e tossiu antes de me entregar. Era mesmo um iniciante.

:- Me diz uma música de country que você mais escuta recentemente. – Eu perguntei enquanto tirava minha bolsa e colocava na grama ao lado dos nossos pés, que só agora desde que cheguei percebi que ainda continuava com ela nas costas.

:- Ultimamente ando escutando muito Johnny Cash. – Ele deu os ombros.

:- Está falando sério? Que bom gosto musical eu tenho alguns discos dele. É um artista incrível, teve seus altos e baixos na carreira, mas ainda assim é uma referência musical no seu gênero.

:- Você gosta dele? – Poncho perguntou surpreso enquanto pegava o cigarro da minha mão, ele estava realmente fumando comigo dessa vez. Ponto para ele por se esforçar apesar de estar na cara que seria seu último cigarro, não sei o que realmente o levou a fumar, mas não voltaria a fazer isso por se lembrar da razão pela qual não gostava.

:- Claro que sim. Não é por que sou roqueira que eu deixo de escutar outros gêneros, não tenho esse preconceito. A música tem que ter uma mensagem e ser de qualidade, tem muita música ruim por aí é verdade, mas Johnny é um dos pioneiros do rock and roll e também do rockabilly nos anos cinquenta. Além de se tornar um ícone da música country. Eu adoro rockbilly, olha para minha roupa hoje. – Apontei para o meu cabelo que tinha uma espécie de topete que sobreviveu ao meu capacete, maquiagem que destaca os canto dos olhos e a boca com o meu batom vermelho, minha regata listrada. – Só não estou de saia porque para andar de moto vestida assim é muito ousado para este pequeno vilarejo. – Eu ri junto com ele e senti meu ego mais inchado com o olhar dele sobre meu corpo ainda que eu que tenha pedido, não perderia essa chance de me mostrar e queria muito que ele me olhasse com outros olhos.

:- Eu acho que tenho que fazer meu topete também assim, serei o seu parceiro.

:- Podemos ir juntos a algum baile, sou uma ótima dançarina. – Eu sorri provocando ele que mais uma vez ficou sem graça. – Então me diz uma música dele.

:- Para que?

:- Para avaliar seu gosto musical. Nós não temos muito em comum, eu tenho que saborear essa inusitada descoberta. – Ele fez uma expressão de quem está pensando coçou um lado de sua bochecha coberta com sua barba.

:- Solitary man. – Respondeu me olhando metido e eu me surpreendi com a escolha da música, não era uma letra de canção que eu associava a um padre. Gostei daquilo.

:- Então você é um homem solitário? – Foquei no sentido literal do nome da música lembrando da voz marcante do cantor e como sempre fazendo graça com ele.

:- Algumas vezes. – Ele disse e continuou me olhando, ele queria me dizer algo? Ou esperava que eu comentasse mais sobre a escolha dele. Voltamos ao patamar em que ele era monossilábico ao responder minhas perguntas e eu tinha que me desdobrar para arrancar mais dele.

:- Esqueci de perguntar, mas o que faz por esses arredores? – Ele me perguntou vendo que eu não falaria mais nada e ainda me olhando profundamente, conseguiu reverter o jogo e me deixar sem ter o que falar. Preciso voltar a ter o comando do jogo.

:- Estou na fazenda da minha avó e fui fazer um passeio para tirar algumas fotos. – Eu menti olhando para ele, já que sai da fazenda com o objetivo de ver ele aqui. Tudo bem que tinha tirado mesmo algumas fotos pelo meu caminho, mas a ordem dos fatos altera o resultado? Eu busquei minha bolsa e abri tirando minha câmera Polaroid, Poncho exclamou um ‘uau’ ao vê-la, busquei a pasta onde eu guardei as fotos que eu tirei. E coloquei na mão dele.

Ficou olhando cada uma delas com um sorriso no rosto, aquilo me fazia tão bem que eu não conseguia explicar. Mas, vocês sabem? O cara que você está a fim conhece um lado seu e gosta disso, é como está mais próxima do objetivo que é ter ele. Eu me sentia assim, além do meu ego está fazendo uma festa de arromba.

:- Você é uma excelente fotógrafa. – Pronto, para completar me elogiou comentando ao me olhar e me passar o cigarro que fumávamos o deixando longe das minhas fotos. – Eu passo por aqui tantas vezes e ao olhar essa foto é como estar lá apesar de ser longe daqui. Não é apenas apertar um botão, não é? – Ele me perguntou olhando agora para mim.

:- Não. Definitivamente também é preciso ter vocação, um olhar diferenciado, é preciso pensar no coletivo numa grande sessão de fotos tem vários profissionais envolvidos, tem que se pensar na luz, em qual velocidade ajustar para fazer o clique perfeito. Quando se tem uma foto de um fotógrafo, se tem o olhar dele sobre alguém ou uma paisagem. O que ele pensa sobre determinado assunto, é informar também, passar uma mensagem. – Eu falei sobre uma das minhas paixões. Um dos meus ofícios. Além de tocar guitarra. Eu terminei o cigarro e joguei a bituca junto com a outra dentro de um latão que tinha lixo.

Poncho calado me observava falar e com um olhar admirado aquilo me engrandecia. Eu comecei a sentir algo aqui dentro do meu corpo mais forte, como se explodisse algo dentro do meu coração, eu peguei a câmera da mão dele.

:- Me deixa fotografar você. – Pedi.

:- O quê? Não. Eu estou desajeitado e ainda com barba, não devo ter um visual bonito para isso. – Ele recusou assustado com a possibilidade.

:- Cala a boca, está falando bobagem, apenas me olha e esquece a lente da câmera, não pensa como a foto vai sair ou o que vão pensar dela. – Eu falei tirando minhas fotos e guardando na minha pasta, determinada. Ele não teve muito que recusar então ajeitou sua camisa, num fio de vaidade que todos têm.

Fechei meu olho esquerdo e coloquei o direito no visor da minha câmera OneStep Rainbow para tirar a foto dele que fez uma pose clássica de cruzar os braços. A forma como a luz do sol batia parte de seu corpo e em especial no seu rosto, deixando o seu olhar não só sério como mais claro, era o olhar que eu tinha sobre ele.

O que explodiu partindo do meu peito percorria agora todo meu corpo, senti meu coração bater mais rápido, eu apertei o botão da câmera com um último fiapo de firmeza que eu tinha. Logo afastei a câmera para ver como a foto tinha saído a tirei e esperei se revelar.

:- Para alguém que não queria tirar foto me sai muito bem. Que bonita a sua visão minha, a foto é linda. – Ele curvou os lábios fechados dele pra baixo pegando sua foto. – Eu a quero pra mim. Pode ser?

Não consegui responder! Ele até sorriu fingindo guardar ela no seu bolso de trás do seu jeans. Continuei calada, porque eu não conseguia pensar em mais nada a não ser na vontade de beijá-lo meu olhar vaga dos seus olhos até sua boca.

Sem que ele esperasse e nem que eu pensasse nas consequências, eu me estiquei colocando a mão que segurava minha câmera para baixo e segurei com a mão livre seu pescoço para trazer ele para baixo e beijar sua boca. Tomada pela adrenalina e excitação de fazer algo que eu desejava tanto, eu abracei com o braço o pescoço dele e me estiquei mais para beijá-lo melhor o empurrei com meu corpo para a cerca e desci minha mão por suas costas até que ele segurou meus ombros quando meus dedos estavam dentro da parte de trás do seu jeans tentando o contato com sua pele.

:- Para com isso! – Ele falou num tom tão severo e me recriminando que eu abri os olhos assustada ao ver seu olhar gélido de longe se parecia com o homem que brincava e sorria comigo. – Vá embora! – Mandou assim que viu que eu estava parada o encarando num estado inerte.

Eu senti o gosto amargo invadir minha boca enquanto recolhia meus pertences e guardava na minha bolsa com uma pressa de sumir antes que ele falasse em um tom mais raivoso comigo.

Sem nem olhar mais para ele eu sai dali caminhando apressada, ainda respirando rapidamente, mas dessa vez por sentir que eu tinha passado um limite que não poderia. Caralho! Eu beijei um padre! Porra, o que foi que eu fiz! Eu não conseguia pensar muito bem devido ao turbilhão de emoções que sentia. Coloquei minhas luvas e capacete muito rápido e desajeitadamente montei na minha moto e dei a partida desejando não ter me levantado aquela manhã. Como eu tinha a capacidade de me foder daquela forma?

Vai se apaixonar perdidamente e vai ser machucada e então eu vou rir de você! Sabe-se lá porque raios eu me lembrei da praga que Rodrigo me jogou e depois me lembrei como o olhar de rejeição que Poncho tinha me ferido. Eu vou ser breve em explicar para vocês que resumidamente eu pensei em tantos xingamentos por estar tão irritada comigo mesma, que minha vó ficaria com vergonha de tantas palavras de tão baixo calão que pensava como punição. Estava com tanta raiva que eu cheguei na fazenda da minha vó em alta velocidade como se isso pudesse gastar esse sentimento ruim que sentia por mim. Do erro que eu cometi.

Alguns empregados da minha vó só me olharam de relance ao ver como eu cheguei na fazenda, sabiam que não deviam falar comigo. Antes de estacionar e pensar que tenho que ficar no meu quarto trancada por horas até essa erupção passar, vi o carro do meu pai estacionado. Era só o que me faltava!

Parei minha moto e foi nesse instante que ele saiu na varanda me olhando, desceu as escadas e eu comecei a pedir internamente que se existisse mesmo alguma força divina para que ele não me dirigisse à palavra enquanto tirava meu capacete e minhas luvas. Peguei minha bolsa e desci da minha moto.

Quando eu pensei que passaria impune, meu pai, me segurou o braço vendo que eu não pararia de andar para sequer o cumprimentar, eu não tinha cabeça para brigar agora com ele agora aquele momento era completamente errado para falar comigo.

:- Eu sei o que está fazendo! – Ele me olhou firme, assim como seu aperto no meu braço.

:- Como? – Tive que perguntar, porque fiquei confusa.

:- Eu vi às vezes em que você andou cercando o filho de Alfonso, Poncho é um homem comprometido com Ele. – Meu pai olhou para o céu, representando sua crença em que Deus ficava por ali logo agora em que eu passava a desacreditar mais nessa existência. - Você tem que respeitar isso! Não adianta negar o que anda fazendo porque eu sei, dá para ver nos seus olhos que você deseja ele.

Mais essa agora. Não consegui me controlar poderia não dar mais corda para ele, só que não funcionava assim ainda mais quando eu estava com tanta raiva.

:- Até porque de desejos você entende muito bem, não é verdade? – Eu puxei o meu braço para me soltar. – Vê se me esquece como você sempre fez! – Eu gritei para ele para que não me seguisse com aquele olhar acusatório como se ele não tivesse um passado negro.

Eu entrei na fazenda querendo socar as paredes, como eu fui ser tão estúpida, eu poderia ter perdido a amizade de Poncho por um erro de principiante.

Fui direto para o meu quarto e ainda pensando na expressão do meu pai que só aumentou a minha raiva, ao entrar e bater a porta com força encontrei minha vó parada perto da cama onde eu estava dormindo, ela tinha um olhar perdido e isso foi como um choque por não esperar alguém por ali, ainda mais ela.

:- Vó Dolores? Está tudo bem? – Perguntei respirando fundo para me controlar.

:- O tempo passa tão rápido parece que foi ontem quando você aqui pela primeira vez. – Ela falou nostálgica olhando uma foto nossa de alguns anos atrás. – Eu sou uma mulher que fica cega muitas vezes por amor, quero dizer, eu melhorei com a idade que chega para todos. Porém, esse era um dos meus maiores defeitos, eu defendia cegamente os meus entes queridos, lembro quando começaram a surgir os boatos de que você tinha se tornado uma viciada e eu batia o pé falando que minha neta jamais seria uma dessas pessoas que teria a vida destruída e consumida por drogas. Ganhei uma peça do destino porque você justamente foi, uma dessas pessoas. Agora anos mais tardes passando por tudo o que você já passou, pelo o que nós passamos, descubro que você está bebendo e fumando de novo?

:- Vó. – Eu suspirei pesadamente para não dizer que bufei, pensando que de todas as pessoas que cruzei no caminho hoje, logo com ela seria com quem brigaria.

:- Não adianta negar porque eu já vi. – Ela me alertou apontando um dedo indicador para cima, como sinal de que eu não me atrevesse a mentir. Tudo isso ela fazia agora de costas para mim.

:- Não vou negar nada. Agora faz sentido ver meu pai saindo da fazenda uma hora dessas. Não me importa o que ele te disse, eu só não estou com cabeça para ter essa conversa agora com a senhora. – Me justifiquei passando a mão no meu cabeço e o bagunçando.


Ao mencionar essa palavra feminina em sinal de respeito, minha vó se virou deixando de olhar meus pertences e me encarar, sua expressão de advertência mudou para preocupação. Ela sabia que alguma coisa tinha acontecido comigo sem que eu abrisse a boca para falar a respeito disso.

:- Eu já lhe disse uma vez, vó e eu vou repetir com total convicção que eu tenho. Não vou voltar a ser aquela garota. Não vou destruir minha vida mais uma vez, confia em mim. – Eu falei tão seriamente que ela apenas concordou com a cabeça e para aquela senhora de idade desistir de uma discussão como aquela, ela percebia que algo ruim me passava.

E eu com toda a raiva que ainda sentia aqui dentro dava espaço para outros sentimentos e sensações que eram assustadoras. Eu sentia medo. Eu não queria ficar sozinha estava rejeitada e me sentia humilhada por isso.

:- Fica aqui comigo? – Eu pedi sentindo as minhas emoções tomarem conta de mim.

Vó Dolores que ainda estava na sua postura séria que brigaria comigo por saber que eu fiquei chapeada algumas vezes, sentiu sua preocupação ser maior que tudo naquele momento. Ela apenas assentiu.

:- O que você quer ouvir? – Ela perguntou indo para a pilha de discos que eu tinha ali.

Passei a mão nos meus cabelos mais uma vez e neguei com minha cabeça como um sinal de que eu não acreditava no que aconteceu.

:- O disco da capa preta é o sétimo contando de baixo para cima, coloca na segunda faixa. – Eu fui caminhando direto para minha cama e tirando minhas botas. Deitei na minha cama em posição fetal, até minha vó se deitar na cama comigo e colocar minha cabeça sobre ela e fazer carinho nos meus cabelos.

:- Você tem certeza que quer escutar esse disco? – Ela me perguntou insegura ao continuar movendo seus dedos entre os fios do meu cabelo castanho.

Eu apenas assenti conforme escutava o disco American III: Solitary Man, edição de colecionador do cantor Johnny Cash justamente na faixa em que Poncho escolheu como sua favorita do momento notei agora com uma perspectiva diferente o que ele quis me dizer, não era a questão de ser um homem solitário, era a indireta de não querer uma garota que fazia jogos pelas suas costas, eu sou aquela garota. Ao constatar isso abracei vó Dolores fortemente enquanto me entregava as lágrimas quentes que teimavam a sair dos meus olhos que eu reprimi tanto. Naquele momento eu não sabia explicar qual era a razão que me fazia chorar eu sentia muita raiva e ao mesmo tempo muito medo.

Don't know that I will

but until love can find me

and a girl who'll stay

and won't play games behind me

i'll be what I am

a solitary man

Solitary Man – Johnny Cash

+