\"Olha com frieza a vida, a morte.

Cavaleiro, segue em frente!\"

W. B. Yeats - Under Ben Bulben

East End de Londres.

Às nove horas dessa manhã fria mas ensolarada, um homem gordo e moreno de aspecto levantino, todo encapotado, olhos escuros e cabelos negros e crespos parcialmente escondidos atrás do chapéu cinzento de aba larga, caminhava um tanto apressado pelo fervilhante mercado de rua da Whitechapel Road, a principal artéria da zona de Tower Hamlets ligando a Whitechapel High Street, a oeste, à Mile End, a leste. Um imenso labirinto de barracas e biroscas, tendas, tamboretes, caixotes de madeira e carrinhos de mão, vendendo desde frutas, legumes e peixe até tapetes de lã e bijuterias, espraiava-se a céu aberto por suas calçadas tortas, esburacadas, com lixo espalhado, velhas casas do século XIX caindo aos pedaços, tudo fedendo a uma mistura nauseante de cerveja barata, café, tabaco, suor e mijo! Este, então, era o mercado de rua, ponderava o homem com seus botões, uma das partes mais feias e sórdidas de um dos bairros mais pobres, mais degradados da capital inglesa. Havia sido um dos inúmeros bolsões de miséria que se formaram em locais semidestruídos pelas bombas-foguetes alemãs V1 e V2, em 1944 e 1945. O governo do pós-guerra dirigido pelo trabalhista Clement Attlee não tivera como evitar as horríveis favelas que ali se formaram. As pessoas que iam chegando amontoavam-se como podiam em miseráveis casebres de madeira ou de latão sem o mínimo de condições. Uma babel de sons cacofônicos, terríveis imprecações, suores e odores e sujeira, sujeira e sujeira, onde viviam, sofriam, amavam e trabalhavam, acotovelando-se sofregamente, legiões de proletários, imigrantes sem qualificação profissional, refugiados e deserdados da sorte em geral: uma massa viva de cockneys, irlandeses, indianos e paquistaneses, negros e mulatos das Índias Ocidentais, ciganos sem pátria e judeus ashkenazim da Europa do Leste.

O fedor saturava o ar da manhã.

Indiferente a tudo e a todos em seu derredor, o homem gordo e trigueiro que, segundo parecia, vinha dos lados da estação do metrô de Aldgate East, a certa altura dobrou à direita e enveredou pela Vallance Road, depois entrou na Old Montague Street, passando pela fachada de velhos casarios decrépitos do século XIX e pela sinagoga Chevrah Shass, fundada em 1896. Parou, afinal, à frente de um sobrado vitoriano de quatro andares espremido entre dois prédios ocupados por lojinhas e botecos ordinários, e, em vez de puxar a sineta, bateu três vezes com o punho cerrado na pesada porta de carvalho, fazendo uma breve pausa e batendo mais duas vezes, como que transmitindo uma espécie de código secreto a quem estivesse do lado de dentro. Após uma curta espera, uma mulher alta, estatuesca, de cabelos louro-claros e movimentos vagarosos abriu e indagou-lhe o que queria.

- É Joab, da parte de David, para falar com Abner - ele respondeu, tirando o chapéu.

A mulher assentiu e o deixou entrar. Munida de uma lanterna elétrica, ela guiou Joab por um corredor escuro que cheirava a mofo, em silêncio e sem titubear, até atingir uma escada de madeira em caracol bastante velha e gasta. Joab subiu pé ante pé os intermináveis degraus que levaram-no até uma pequena sala suavemente iluminada. Entrou e fechou a porta atrás de si. O homem que se fazia chamar de Abner estava sentado a uma escrivaninha, sob a luz fria de um abajur de lâmpada verde, com um walkie-talkie sobre o tampo da mesa e um monte de papéis e fotografias de cada lado. Em contraste com o biotipo trigueiro mediterrâneo do gordo Joab, o magro Abner possuía os cabelos ruivos, a tez clara e os olhos verdes típicos dos celtas. Ele permaneceu imóvel e calado por um momento. Depois ajeitou-se na cadeira, apoiou os cotovelos na mesa, entrelaçou os dedos das mãos e disse numa voz neutra:

- Que tal a \"faxina\" no West End?

- Tudo OK - respondeu Joab laconicamente. - Meus rapazes erradicaram todas as provas da presença de chiropterans no local. Não sobrou sequer uma mísera casquinha de ferida para contar a história.

- Hmmm. Ótimo. E quanto à nossa \"arma letal\"?

Joab abriu os braços. - Lamento, Abner. Nem sombra dela.

Abner levantou-se deliberadamente da cadeira. - É imperativo que ela seja encontrada e trazida a nós o mais brevemente possível. Saya deve beber regularmente sangue humano, caso contrário seu corpo de chiropteran se enfraquecerá. E que Deus nos ajude se porventura ela sucumbir à sede de sangue e perder o controle e matar alguém. Saya é nossa maior arma, sim, mas é uma arma instável!

- É isso que dá, pretender exorcizar o Diabo com Belzebu. Chiropterans são sempre chiropterans, não importa quão humana seja sua aparência física.

- Pouco me importa se a Saya é a filha do Conde Drácula ou a rainha dos chiropterans, contanto que ela esteja do nosso lado. Mande seus homens investigarem cada hospital e banco de sangue de cada borough em Londres, se preciso for. Eu quero essa... essa vampira sob controle! - sentenciou Abner, dando um murro na mesa.

- Deixa comigo - garantiu o outro.

- Preciso ir a Westminster - e já. A Organização autorizou a mudança de nossa base logística do East End para o West End, você sabe. Já não era sem tempo!

- Não fale no singular. Eu também vou.

Abner apertou o laço da gravata cor de vinho, apanhou o paletó azul-escuro que descansava nos braços de uma poltrona funda e surrada, junto à janela, e vestiu-o. - Sabe o que está me preocupando mais? Os malditos sanguessugas de categoria inferior estão se alimentando abertamente, sem a menor discrição, e, pior de tudo, fora da zona dos cortiços.

- Nesta condições, fica difícil manter a polícia local afastada do caso. Antes...

- Significa que Diva e seus chevaliers estão em Londres. Lá, no West End de Londres, na zona nobre da cidade - bem no coração do Império Britânico!

- Pensei que havíamos perdido a pista deles na Alemanha, depois da queda do III Reich.

- Eu também, mas a Saya achou a pista de novo. É uma verdadeira perdigueira.

- É, a Diva e sua curriola adoram viver no luxo - comentou Joab, seco. - Enquanto vão bebendo sangue da melhor qualidade no café da manhã, almoço, chá das cinco e jantar.

- Não faça graça com coisa séria, Joab. Se Diva está aqui em Londres, então é mais uma razão para o \"chefe\" querer ter a Saya em condições de combater. Pois só ela será capaz de matar a irmã usando o próprio sangue como arma. - O ruivo guardou o walkie-talkie no bolso da calça.

- Rainha contra rainha. - Joab balançou afirmativamente a cabeça braquicéfala. - O sangue de uma é um veneno fatal para a outra. - Deu uma risada forçada. - E Einstein disse que a natureza não é maliciosa!

- O que ele disse textualmente foi: \"O bom Senhor é sutil e arguto, mas Ele não é malicioso\". - Abner pegou na gaveta de sua escrivaninha uma pistola automática Colt M911 e um silenciador e enfiou-os no bolso externo do paletó. - Vamos que o tempo urge!

Apanhou o chapéu no cabide de madeira do lado da porta. Ambos os homens desceram os vertiginosos degraus e, em vinte minutos, estavam nas ruas sujas e malcheirosas do East End.

- Diga adeus aos malditos cortiços, meu amigo - falou Joab alegremente.

- Que vão para o Inferno - retrucou Abner, mostrando os dentes num sorriso sardônico.

******

Às três da tarde em ponto, no horário previamente combinado, Abraham Souzanitzky retornou ao Hospital St. Mary, no bairro de Paddington, para aguardar a alta de Saya Otonashi. O atencioso geógrafo sentava-se na sala de espera enquanto ela trocava de roupa. Seu corpo permanecia em repouso, porém sua mente não descansava um só minuto, movimentando dados. A despeito do controle estatal sobre o setor de saúde, no Reino Unido, Abraham apenas teve de colocar a quantia certa de dinheiro nas mãos certas - por debaixo dos panos, evidentemente - a fim de evitar que perguntas incômodas fossem feitas, que a polícia fosse notificada e, acima de tudo, que exames mais intrusivos viessem a expor a verdadeira natureza da garota. (Abraham estremecia só de pensar no corte na palma da mão de Saya que se fechara instantaneamente, tal como os ferimentos a bala no chiropteran que ele baleara em vão.) Subornar o casal de burmeses que eram os donos da lavanderia para ficarem calados havia sido ainda mais fácil.

- Como se diz lá na minha terra natal, o Brasil, quem tem padrinho não morre pagão - Abraham cochichou ao ouvido de Saya quando ela veio; os seus lábios roçaram de leve a orelha da jovem a cada palavra. - Louvada seja a Santa Propina!

Os lindos olhos amendoados de Saya arregalaram-se, com as negras pupilas trêmulas dilatadas ao máximo para exprimir sua grande surpresa. Abraham deu um meio sorriso de canto de boca. Ora, então a caçadora de vampiros é bem menos impassível do que gosta de aparentar.

- Vamos, Miss Otonashi.

Os dois saíram juntos do hospital e se encaminharam para o carro de Abraham que estava parado no estacionamento com a capota de lona abaixada. Cavalheirescamente, ele abriu a porta do lado dos passageiros do flamejante MG-TC vermelho para Saya entrar e em seguida a fechou; deu a volta e entrou no carro pelo lado direito (que é o lado onde fica o volante do automóvel na Inglaterra), sentou-se em frente ao volante, bateu a porta e deu partida. Num leve arranco, o belo e charmoso roadster vermelho de rodas raiadas afastou-se do meio-fio e foi-se embora.

Uma coisa de que nem Abraham nem Saya tomaram conhecimento, porém, era que um perigoso par de gélidos olhos azuis encimados por uma testa alta vinha acompanhando seus movimentos em todos os detalhes desde a saída do hospital, com interesse desapaixonado. O homem louro, alto e robusto de chapéu e terno pretos puxou com a mão direita a outra manga do paletó, como que consultando o relógio de pulso. Todavia, não se tratava de relógio e sim de um rádio de pulso de duas vias, à la Dick Tracy. Caminhando a passos largos pela Praed Street após a partida do carro do Professor Souzanitzky, o misterioso homem louro de terno preto encostou o rádio de pulso aos lábios e falou em voz baixa:

- Aqui é David. Agente Saya localizada saindo do Hospital St. Mary, na Praed Street, em Paddington, no distrito de Westminster, acompanhada de um civil...

Seguiu-se uma descrição sucinta do mesmo, do MG-TC vermelho com estofamento preto dirigido por ele, da direção tomada pelo automóvel ocupado pela dupla. Alguns quarteirões adiante, na esquina da Baker Street com a Marylebone Road, um trio de homens de preto reportou a passagem do carro de Souzanitzky e recebeu ordens para sair em sua perseguição. Em três tempos, um enorme sedan azul-marinho de quatro portas e vidros escuros rodava veloz pelas ruas do centro de Londres, indo no encalço de Saya e Abraham enquanto mantinha uma distância segura do carro do cientista.

******

A propriedade de Abraham Souzanitzky, herança de um parente europeu meio esquecido, era suficientemente isolada, embora distante apenas um hora de carro e 50 minutos de trem da capital da Grã-Bretanha. Ficava na pequena cidade litorânea de Brighton, nos arredores de Londres, no extremo sudeste da Inglaterra, praticamente uma faixa na ponta meridional da ilha.

Durante toda uma hora Abraham dirigiu de Londres a Brighton, olhando de soslaio para a mulher de roxo que, sentada muito ereta, a maior parte do tempo mantinha-se taciturna, pouco falante, como se ela se fechasse numa concha, ou casulo, para se proteger do contato com um universo hostil ao qual não pertencia. O belo rosto mongólico apontava os olhos cor de terra para a paisagem circundante, sem a menor curiosidade - nem mesmo quando o carro pegou a Westminster Bridge Road, perto da Waterloo Station, atravessou os distritos de Lambeth e Southwark, seguiu a estrada principal na altura de Kennington Park, rodando pela Kennington Road em toda sua extensão, passando por Brixton, Streatham e outros importantes subúrbios do sul de Londres, depois cruzando a pequena Norbury, em Croydon, o mais exterior dos boroughs londrinos, sempre rumo ao sul. Coisas tais como a imponente fachada da estação ferroviária de London Waterloo, com o grande relógio, ou a do metrô de Lambeth North, de tijolos vermelhos, ou o belo campanário branco da Christ Church, ou o Aeroporto de Croydon visto ao longe, que contrastavam com a brilhante miséria da Londres do pós-guerra, no duro cotidiano dos cidadãos - nada disso parecia despertar a atenção de Saya, cuja fisionomia insondável não deixava entrever a menor emoção ou sintoma de uma luta íntima. \"Parece anestesiada\", refletiu Abraham, que seguia o percurso da antiquíssima estrada romana cujos trechos, pavimentados com pedras, eram perfeitamente visíveis na velha Akerman Street.

Abraham, no entanto, não se iludia. Tinha certeza de que Saya mantinha-se tão alerta como um de seus gatos e cães, com todos os sentidos assestados - provavelmente mais do que os cinco parcos sentidos próprios ao comum dos mortais. Uma verdadeira máquina de matar, eficaz, violenta, seletiva e fria, observando os eventos com o alheamento de um ser extraterrestre que olhasse de uma enorme distância através de um telescópio. E, no entanto, ele sabia - intuia - que aquela não era a Saya arquiverdadeira, autêntica. Que segredos inenarráveis da Sombra se ocultariam sob aquele rosto de menina, de tez oriental, cor de pêssego levemente rosada, a que o pálido sol de Londres, àquela hora da tarde, dava uma tonalidade amarelada, semelhando uma imagem de cera? Pensou na velha foto do jovem casal do século XIX que manuseara horas atrás.

Entrementes, os pensamentos de Saya eram agitados por tormentosos flashbacks, imagens que se sucediam umas às outras, como se fossem curtos \"filmes mentais\", em que ela podia ver os horrendos chiropterans vitimados por sua espada e seu sangue caírem desfeitos em pó cristalizado; os rostos perplexos e aterrorizados das pessoas infectadas que, prestes a se transformarem em chiropterans, mas ainda aparentemente humanas, morriam pela lâmina de sua espada sem saberem que crime haviam cometido. Nem ela mais se reconhecia.

Sou um monstro. Sou aquela que mata sem sentimento algum.

A Saya risonha e de coração mole de outros tempos - há meio século - se fora, talvez para sempre. Transformara-se numa assassina calejada, numa criatura solitária, sombria e pouco comunicativa, recusando-se a despertar do \"torpor\" de indiferença que a ajudava a esquecer... esquecer para que pudesse continuar a matar, desprovida de remorsos.

- É notável como a solidão nos induz a falar conosco, a confrontar nossos demônios mais íntimos e pessoais, não é mesmo, Miss Otonashi? - comentou Abraham, meio que em tom provocativo, para a moça que lhe evitava cuidadosamente o contato físico (mesmo de roupas). - Ou prefere que a chame de Otonashi-san?

Como a resposta não veio, ele simplesmente deu de ombros. - Que seja Miss Otonashi. Afinal, estamos na Inglaterra.

Novamente, quando ele menos esperava, ela respondeu com uma amabilidade inusitada.

- Se quiser, professor, pode me chamar de Saya, apenas Saya.

Ele alegrou-se. Começo a notar uma brecha em sua armadura de isolamento, matadora.

- Eu lhe agradeço, Saya. E pode me chamar de Abraham. Apenas Abraham.

Eles ainda não eram amigos, mas podia-se dizer que aquele era um começo auspicioso.

A certa altura, Abraham espiou pelo retrovisor e reparou num grande sedan azul-escuro que os seguia pelas ruas de Londres, porém desapareceu de vista em meio ao trânsito pesado de automóveis e bondes elétricos. Preferiu não comentar nada com Saya, embora suspeitasse de algum tipo de conexão entre esse misterioso carro e a jovem não menos misteriosa ora sentada ao seu lado no banco inteiriço de couro preto - e que, com certeza, sabia mais do que falava.

Sorriso mental. Se seu chaver James Davidson Rodrigues - da Sinagoga Bevis Marks - estivesse ali, com certeza culparia os soviéticos, \"os russos\"; Saya seria uma agente de Moscou. Desde que começara o Bloqueio de Berlim, em 24 de junho, um bom número de súditos ingleses - judeus e não-judeus - acostumou-se a culpar os \"vermelhos\" por tudo que acontecia no país.

Abraham soltou a mão direita do grande volante de raios metálicos e, com as pontas dos dedos, tocou a mezuzá para carro, o diminuto estojo em metal dourado contendo um pequeno rolo de pergaminho com versículos da Torá nele inscritos, afixada no painel em madeira de lei junto com a \"oração do caminho\", ou tefilat haderech. Tocou os lábios com os dedos. Mentalizou uma grande bola de fogo violeta envolvendo o automóvel, com ele próprio e Saya imersos na chama purificadora; em seguida, uma chama de luz azul-celeste protetora e uma chama de luz branca-cristal englobando a ambos.

- Saya - ele disse com ar sério e compenetrado (mas sentindo-se contente por poder chamá-la pelo prenome) - você sabe que após deixá-la no hospital, eu voltei ao lugar onde nos conhecemos nesta madrugada?

As pupilas dilatadas de Saya denotavam surpresa. Mas ela permaneceu em silêncio.

- Sim, Saya. À St. George Hannover Square, à boa e velha Praça São Jorge de Hanôver, como diriam meus compatriotas do Brasil. E quer saber o que encontrei lá? Nada! Os restos mortais petrificados dos dois chiropterans que você matou sumiram, evaporaram, como se uma força-tarefa altamente treinada em remoção de provas tivesse \"limpado a área\". E na calada da madrugada!

- É assim que deve ser - retrucou Saya laconicamente.

- Pura manobra de acobertamento - retorquiu Abraham, conduzindo o automóvel pelas ruas pouco movimentadas da histórica Coulsdon, ou Coalsden, a localidade mais ao sul do bairro londrino de Croydon, rodeada pelas áreas verdes das Farthing Downs, Coulsdon Common, Kenley Common e Riddlesdown. - Como você presumivelmente não lê jornais, deve ignorar o que o The Sun e outros tabloides publicaram hoje: que várias testemunhas auditivas relataram ter ouvido, depois da meia-noite nas imediações da praça, gritos de pânico e de dor, tiros de revólver e uivos ensurdecedores como os de uma fera selvagem. Os investigadores da polícia não encontraram corpo nenhum, humano ou outro qualquer, de modo que não se pode falar de crime, porém os jornais lembram que uma família inteira foi morta no centro de Londres, à noite, há apenas duas semanas, e que os cadáveres, tanto de adultos quanto de crianças, exibiam mordidas mas nenhuma gota de sangue, como se tivessem sido vítimas do ataque de uma fera hematófaga. Antes disso, oito pessoas já tinham sido assassinadas, uma ou duas a cada semana, nas mesmas condições: todas completamente exangues, todas vitimadas por uma violenta hemorragia, como se algo houvesse drenado até o último corpúsculo vermelho dos corpos dos desgraçados. A única diferença é que tais casos se limitaram ao bairro proletário do East End, onde moram os pobres, os excluídos do capitalismo, bem longe das mansões da burguesia com seus jardins luminosos. - Fez uma breve pausa e acrescentou, com um laivo de sarcasmo: - É, os rabis têm razão, a morte não faz acepção de pessoas, ela nos iguala a todos!

Tal era seu inconformismo social, fruto de sua mania de justiça que, de tão exacerbada, por vezes o levava a comprar briga com meio mundo por causa de gatos e cachorros de rua.

- Abraham, aquelas pessoas foram mortas por chiropterans como os que você viu - disse Saya, dirigindo-se a ele em uma voz branda, estranhamente reconfortante. Por alguns rápidos segundos, ela deixou de fingir indiferença em seu tom frio e distante, fazendo aumentar a brecha na carapaça que criara ao redor de si mesma e que a impedia de se relacionar com o mundo.

- Para a Scotland Yard e o The Times, tudo não passa de uma onda de crimes cometida por um assassino em série não-identificado, mas os jornais sensacionalistas insistem em que se trata mesmo de ataques de vampiros. - Abraham soltou um longo suspiro, cansado, e disse: - Saya, me perdoe a insistência, mas eu vou lhe perguntar de novo: o que são exatamente esses chiropterans, qual a origem dessas criaturas? São eles um produto da evolução terrestre? São uma criação de cientistas militares das grandes potências? Ou são um elo de uma corrente evolutiva completamente alienígena, que se iniciou em algum outro planeta e continua no nosso?

Ao sentir-se pressionada pelo geógrafo, Saya simplesmente cerrou os olhos e ponderou, por um punhado de segundos atemporais, sobre a conveniência de responder ou não à sabatina-relâmpago de Abraham, que possuía a curiosidade e a sede de saber de um cientista e o ardor de um buscador da verdade que não recuava diante de nada. Parecia-lhe quase impossível discorrer sobre chiropterans sem contudo falar de si própria, de suas próprias raízes biológicas e do fardo extremamente pesado que carregava há mais de cem anos - desde o seu nascimento.

Ela, a imortal, a \"puro-sangue\" - uma das rainhas do par retirado do útero da original rainha-mãe chiropteran, a primeira Saya. Ela, a rainha vermelha de sua geração, antagonista natural de sua irmã gêmea, a rainha azul.

Mentalmente, gritou: Eu sou uma chiropteran! Sou um demônio que se alimenta de sangue, do sangue das criaturas vivas!

A voz gentil de Abraham trouxe-a de volta de suas reflexões tenebrosas.

- Fale comigo, Saya, por favor. Conte-me o que sabe sobre os chiropterans.

Ela abriu os olhos cor de mogno. Virou-se finalmente para o jovem judeu brasileiro e perguntou-lhe, em seu habitual tom austero e impassível:

- Por que você quer saber? Para quê?

Abraham usou o dedo indicador para endireitar os óculos no nariz grosso e aquilino. - Saya, eu sou um naturalista. Em minhas incursões nas florestas brasileiras, nos jângais centro-americanos, no planalto da Bolívia, no deserto australiano, nos fiordes da Nova Zelândia e nas cavernas do Mar Morto, vi muita coisa bonita, estranha, horrenda, apavorante. No entanto, jamais me passou pela cabeça que me veria cara a cara com a corporificação do mito do vampiro no mundo real, e ainda por cima em pleno centro de Londres. É óbvio que os tais chiropterans, seja qual for a origem deles, representam uma séria ameaça à posição da raça humana no topo da cadeia alimentar, como espécie dominante deste planeta. Eles são uma espécie exótica invasora. Como homem, meu dever seria destruí-los, extirpá-los do planeta; por outro lado, como cientista, eu quero estudá-los, aprender com eles e sobre eles. Uma forma de vida capaz de se regenerar instantaneamente a lesões e ferimentos tem muito a nos ensinar, isso é o que eu penso.

- Compreendo... - disse Saya pensativa, a fronte erguida. Lá fora, as terras ajardinadas de Coulsdon Public Bowling Green, na orla das Fathing Downs, aos poucos iam ficando para trás. - Eu nada sei sobre a gênese da espécie chiropteran, e creio que ninguém, humano ou chiropteran, conhece algo a esse respeito. Mas sei o seguinte: com a única exceção das rainhas reprodutoras, todos os chiropterans já foram seres humanos normais que se transformaram em mutantes-monstros hematófagos após ingerirem doses maciças de uma droga à base do sangue de um espécime original de chiropteran, uma \"puro-sangue\". E é um caminho sem volta. Uma doença incurável, diabólica, que altera radicalmente todo o metabolismo do corpo humano, deforma seus genes... oblitera a consciência... a alma... Uma maldição para a qual só existe uma saída: a morte.

Abraham franziu as sobrancelhas. - Espere um minutinho aí, Saya. Está me dizendo que as bestas-feras que eu encontrei na Hannover Square e que você matou eram pessoas que sofreram mutações? Que os chiropterans foram desenvolvidos a partir de pessoas comuns, de Homo sapiens drogados com sangue de monstro?

- Exceto as rainhas. Elas já nascem chiropterans, e sempre aos pares. O sangue de uma rainha procriadora é um anabolizante tão terrivelmente poderoso que, tomado em doses mínimas e controladas, dá a um ser humano força, agilidade e longevidade descomunais, sobre-humanas; entretanto, em quantidade excessiva, age como um verdadeiro veneno genético, convertendo os homens naqueles seres grotescos e agressivos que você viu, em meio a dores excruciantes.

- Mas isso é cientificamente impossível... inconcebível... Mutações existem, é lógico, elas são a base da evolução. Teoricamente, uma ciência mais avançada que a nossa pode ser capaz de manipular o código genético e criar novas espécies vivas e novas raças de homens, meta-humanos híbridos, subumanos ou sobre-humanos. Aldous Huxley anteviu isso em seu romance antiutópico Brave New World. Todavia, não consigo acreditar que uma droga miraculosa, feita de sangue de vampiro, tenha o poder de remoldar drasticamente o genótipo e o fenótipo de um homem, um adulto completamente formado a ponto de transfigurá-lo em uma criatura que se parece com um morcego gigante.

- Pois pode acreditar, porque é a verdade. A transformação é lenta e dolorosa ao extremo. Não se ofenda, \"Sr. Cientista\", mas eu já caçava chiropterans pelo mundo quando seu avô ainda estava nos cueiros. Já vi a repetição da mesma história de horror e terror dúzias de vezes.

A garota calou-se. Ela não mais abriu a boca no decorrer do percurso até bem depois de terem deixado para trás o perímetro urbano de Londres com seus bairros verdes, cruzando com rapidez por Crawley - com o Aeroporto de Gatwick ainda em poder dos militares - , sempre na estrada para Brighton, passando ao largo de Burgess Hill. Voltara a ser a Saya Otonashi de antes, a garota soturna e fechada que nem uma ostra em sua concha, no fundo do mar. Abraham, de sua parte, também permaneceu calado, imerso num mutismo permeado de interrogações e incertezas acerca do que ouvira da boca de Saya. Os pensamentos atropelavam-se em seu cérebro. Transformar um ser humano em um chiropteran! Um quadro aterrador, repulsivo, bem no estilo do romance de ficção científica de H. G. Wells, The Island of Dr. Moreau. As palavras de Saya tinham tocado algo dentro do cientista e místico judeu que era particularmente perturbador por mexer com a sacralidade do corpo humano como o \"templo da alma\". Mas o que sabia ele, de fato, sobre a criatura que dizia chamar-se Saya Otonashi? Pela aparência externa, passava por ser uma jovem e bela mulher de dezesseis anos, de ascendência asiática. Seria mesmo? Uma suspeita terrível surgiu na mente de Abraham. E se a rapariga da velha foto desbotada não fosse uma avó ou bisavó de Saya, e sim a própria Saya? Talvez os pais da rapariga houvessem sido mortos por chiropterans, décadas atrás, e ela, como uma Nêmesis vingadora de sua família, tornou-se uma guerreira caçadora \"anabolizada\", sobrevivendo através das idades por consumir sangue de chiropteran em doses não-letais. Isto explicaria as qualidades sobre-humanas da moça e o porquê de ela não envelhecer. Não obstante, havia uma falha nessa hipótese: como explicar o fato de o sangue de Saya ter se tornado tão venenoso para os chiropterans a ponto de matá-los, desencadeando uma reação em cadeia de cristalização de seus tecidos celulares, ao ser introduzido em sua corrente sanguínea?

Abraham tornou a olhar pelo retrovisor e, para sua surpresa (e desagrado), constatou que o sedan azul-escuro continuava no seu encalço. \"Que turma de chatos\", pensou, aborrecido. Sendo que, agora, não demonstravam a menor preocupação em se esconder dele, embora mantivessem uma distância respeitosa entre os dois carros. Ao que tudo indicava não pretendiam interceptá-lo, mas tão somente acompanhá-lo de perto (não muito), para não perdê-lo de vista.

\"OK, OK. Eu topo jogar o jogo de vocês\".

Ligou o autorrádio Philco Transistone, que inundou o ar com a voz de Carmem Miranda, The Brazilian Bombshell, apresentando-se na Rádio BBC de Londres. Depois suspirou e pensou: Saya, tão perto e tão longe!

Entrou na interseção da estrada principal com o contorno de Shoreham, já dentro do condado de East Sussex, e acelerou rápido em direção a Brighton, passando ao largo da diminuta cidade vizinha de Hove, a oeste de seu destino, com o sol outonal a brilhar no céu sem nuvens.

\"Agora estamos na periferia de Brighton\", pensou Abraham, vendo ao longe os sóbrios solares de pedra e cal em meio a prados verdejantes que, entremeados de bosquetes de plátanos a exibirem o belo amarelo-ouro de sua roupagem outonal, desdobravam-se desde as suaves colinas até os penhascos marinhos. \"Estou em casa\".

- Saya - ele falou - você reparou no Packard 180 azul-marinho lá atrás que vem nos seguindo desde Londres?

- Reparei - ela retrucou calmamente. - Por favor, pare o carro no acostamento da estrada.

Abraham ficou momentaneamente surpreso; logo em seguida, ficou surpreso por ter ficado surpreso. Lógico que uma moça estrangeira em situação de clandestinidade - desprovida de passaporte, identidade ou qualquer outro documento - não teria logrado entrar e se manter no país se não contasse com a cobertura de algum grupo organizado. E presumivelmente o mesmo que deu sumiço nos cadáveres de humanos e chiropterans da Hannover Square.

- Parar o carro? Você está brincando? Tem uma viatura cheia de desconhecidos nos nossos calcanhares...

- Não precisa ter medo deles. Não lhe farão mal algum.

- Se sabe quem são, o que querem, me diga, por obséquio.

- Pertencem a uma organização denominada \"Escudo Vermelho\", que, como eu, tem por missão o extermínio dos chiropterans. Não posso falar mais que isso.

- Escudo... Vermelho?! - repetiu Abraham, e sorriu. - Vai me dizer que não tem ligações com o Cominform e os soviéticos?

- Não! Nada de soviéticos! - Saya segurou a manga do paletó de Abraham, num gesto compulsivo que surpreendeu a ambos. - Por favor, confie em mim.

Por um instante, pareceu a Abraham que conhecia aquele gesto dela, embora fossem estranhos um para o outro. Déjà vu?

- Tudo bem, \"Srta. Caçadora de Notívagos Chupadores de Sangue\" - disse ele para Saya. - Vamos fazer uma paradinha para trocar umas ideias com esses seus \"amigos\".

Pisou no freio e fez o carro diminuir a velocidade, indo estacionar na margem da rodovia. O outro automóvel também parou, sendo estacionado a poucos metros dali. As portas se abriram e três homens saíram do Packard, um negro e dois caucasianos, todos trajados com ternos pretos e chapéus Borsalino pretos. \"Homens de preto\", pensou Abraham nervosamente, evocando a imagem do sinistro e malafamado trio que, desde meados do ano anterior, vinha se tornando o pior pesadelo das testemunhas de aparições de UFOs ou discos voadores nos Estados Unidos. \"Que coisa mais clichê! Bem, pelo menos não andam de Cadillac preto\", ele riu por dentro.

O homem negro, visivelmente o líder, falou qualquer coisa em voz baixa com os outros dois, que permaneceram junto ao carro enquanto ele se aproximava a passos rápidos e seguros do veículo de Abraham e Saya com um embrulho em plástico nas mãos enluvadas. Devia ter seus quarenta e cinco anos e mais de um metro e oitenta de altura, rosto estreito e oval com um par de astutos olhos escuros, costeletas bem aparadas e um espesso bigode preto. Quando chegou suficientemente perto, Abraham notou as riscas de giz brancas, bem suaves, em seu terno preto.

- Saya - disse ele, lacônico, cumprimentando a jovem com um aceno de cabeça.

- Jonathan-san - ela respondeu friamente e retribuiu o aceno.

O homem virou-se ligeiramente para Abraham e tocou a aba do chapéu com um dedo. - Senhor. - Depois disso, voltou sua atenção novamente para Saya.

- Você não compareceu no local combinado e na hora combinada, por isso ficamos preocupados - disse ele, ignorando ostensiva e deliberadamente a presença de Abraham, o qual permanecia sentado ao lado de Saya, apenas observando em silêncio, tal como era seu hábito. - Trouxe-lhe o seu \"suplemento nutricional\". Com os cumprimentos de Mr. David. - Jonathan entregou-lhe o embrulho, e Abraham podia jurar ter visto os olhos da garota brilharem. Num lampejo de imaginação, o intuitivo geógrafo pensou em uma garrafa térmica enrolada em uma sacola plástica! Sobre qual seria o conteúdo de tal garrafa hipotética, contudo, Abraham recusou-se firmemente a conjeturar.

(Um dos homens de Jonathan junto ao sedan azul começou a se remexer, inquieto, e a afrouxar o laço da gravata.)

- Trabalhou otimamente bem durante esta madrugada - Jonathan elogiou-a, lançando seguidos olhares de esguelha para o (agora) sisudo Abraham, que limitava-se a acompanhar o sucinto diálogo de semblante fechado, mas prestando atenção nos mínimos detalhes. Era-lhe óbvio que o elegante e longilíneo afrodescendente receava que segredos de sua organização fossem expostos perante um civil desconhecido, alguém não-autorizado. Saya sentiu o problema.

- O Professor Souzanitzky conhece a existência dos chiropterans - ela disse, relanceando um olhar para o pesquisador, que se sentiu surpreendido e gratificado com a súbita defesa da parte de Saya. Ele lhe dedicou um olhar mais demorado, porém manteve-se em silêncio.

Os olhos de Jonathan se fixaram no judeu de modo perscrutador. - Professor Souzanitzky - disse, com certa deferência - foi o senhor quem levou Saya para o Hospital St. Mary, para receber transfusões de sangue, não foi?

- Sim, fui eu - confirmou Abraham. - Também a protegi da bisbilhotice científica de alguns médicos que gostariam de virá-la pelo avesso e descobrir por que ela é tão mais forte do que qualquer ser humano normal. Nem uma simples radiografia...

- Professor, eu e meu pessoal somos gratos ao senhor por tudo quanto fez em benefício de Saya. Agora, nós vamos assumir. Como o senhor mesmo reconheceu, Saya não é... uma \"pessoa\" igual às outras. Cabe a nós, da Escudo Vermelho, cuidar dela. Aconselho-o a esquecer o que viu e ouviu neste dia, para sua própria segurança e tranquilidade.

Quando Abraham ia responder, um urro bestial sacudiu o ar. Abraham, Saya e Jonathan olharam em direção ao carro dos homens da Escudo Vermelho, e o que viram fez o sangue gelar-lhes nas veias! Um dos homens de preto jazia estatelado no chão, com a garganta rasgada e o peito dilacerado, mas preservando a expressão de dor e pânico indescritível no rosto morto. Quanto ao outro... Somente a fantasia terrífica de um Lovecraft, de um Clark Ashton Smith ou de um Robert E. Howard seria capaz de conceber e de dar vida a semelhante aberração desnaturada e profana. Seus braços e mãos tinham deixado de ser humaniformes e adquirido a conformação de patas monstruosas revestidas de pele coriácea e rugosa, cinza-esverdeada, terminando em garras córneas. O rosto era como uma máscara de maldade onde cada linha e curva exibia a deformação das feições humanas para as de um demônio, do humano degenerado para o essencialmente inumano, os lábios retesados num ricto de dor e prazer infernais que expunha as agudas presas ensanguentadas e retorcidas, os olhos amarelados rebrilhando com uma tonalidade dourada, de magma incandescente, como se emulassem as próprias chamas do Inferno.

- Chiropteran! - exclamou Saya em voz baixa. No mesmo instante a sua expressão facial se modificou por completo. Abraham sentiu como se uma mão de ferro pressionasse seu coração. Viu que os belos olhos de Saya, antes castanhos, se tornaram de repente vermelhos como rubis, brilhando frios e impiedosos.