"Imaginai Diana em galante roupagem,

Percorrendo florestas e sarçais rasteiros,

Cabelo e colo ao vento, em júbilo selvagem,

Soberba, a desafiar os hábeis cavaleiros!

"Já não vistes Théroigne, amante da carnagem,

Insuflando ao ataque um bando de arruaceiros,

A face e o olhar febril, conforme a personagem,

Galgando, sabre em punho, o trono dos herdeiros?"

Charles Baudelaire - Sisina

Terror absoluto!

Abraham sentiu o sangue congelar nas veias, e ficou paralisado no banco do carro, tremendo, quase hipnotizado pelo horror. Sentada ao seu lado, Saya não tirava os olhos rubros e sangrentos do homem semimetamorfoseado em chiropteran que ululava, urrava e se contorcia repulsivamente como se todos os seus ossos, órgãos, músculos, nervos e glândulas estivessem sendo quebrados, torcidos e remodelados em sua nova forma, em meio a dores terríveis demais para serem expressas com sons humanos.

— Coleman! - Jonathan olhava-o, e agora o seu rosto afro-britânico, normalmente de um bonito castanho claro, cor de caramelo, estava tão lívido e cinzento sob as gotas de transpiração quanto o céu de um dia nublado. Ato contínuo, desabotoou rápido o paletó, deixando à mostra o coldre penduradono peito, donde pendia uma Walther P38, que ele prontamente sacou e disparou contra a aberração desnaturada que instantes atrás fora um homem chamado Coleman. O homem-demônio tombou, varado pelas balas de 9mm da psitola automática, enquanto um forte estremecimento convulsivo percorreu seu corpo todo.

Jonathan virou-se para o carro de Abraham Souzanitzky e gritou: - Saya! Mate-o agora!

— Abraham! - A voz da garota soou estridente em seus ouvidos. - Minha espada!

O grito imperioso de Saya arrancou Abraham de sua paralisia de pavor, que, na verdade, durou pouco. Agindo sem titubear, ele pulou para fora do carro e abriu o porta-malas, tirando a espada de Saya de lá, devidamente embainhada em seu singelo e macio couro preto. Disse, mecanicamente: - Aqui, Saya, - e entregou a katana para a garota espadachim cujos olhos vermelhos faiscavam como duas joias de granadas ao sol vespertino. Era curioso, mas ao apanhar a espada japonesa e a entregar para Saya, teve uma sensação inexplicável de déjà vu, como se já tivesse feito aquilo antes, várias vezes, noutro tempo e lugar. Sem proferir uma palavra, Saya desembainhou a katana e a lâmina curva de um só gume cintilou no ar que nem um raio de prata. Ela apertou o polegar contra o fio da espada, fazendo brotar um filete de sangue que escorreu e banhou a lâmina de ponta alargada e encurvada. Com a katana em punho, olhos chamejantes e lábios cerrados que pareciam traços escarlates, a jovem de cabelos negros em pé à frente do carro lançou-se correndo sobre sua presa como uma pantera de garras afiadas. Voltara a ser a matadora fria que Abraham conhecera naquela madrugada, separada de todas as coisas vivas deste planeta.

Foi quando Abraham soltou um grito de pânico. - Saya!

Uma mão ciclópica em forma de pata cheia de garras, verde-gris, pegou-a pelo pescoço e a suspendeu no ar. Uma visão dantesca! A criatura teriomorfa que fora Coleman ergueu-se do chão. Suas pernas musculosas, visíveis através dos farrapos que tinham sido calças, se assemelhavam vagamente aos membros traseiros de um velociraptor do período Cretáceo, com a pele reticulada, coriácea, tal como a de um crocodilo ou aligátor, e terminavam em patas palmadas, sulcadas de veias e providas de fortes garras. Segurava em seu braço estendido, coriáceo e feio, o corpo esguio de Saya um metro acima do chão, como se fosse uma boneca de pano. Saya, o rosto crispado de ódio, debatia-se furiosamente mas em vão, com os grossos dedos cinzentos da pata bestial a apertarem-lhe a garganta. Coleman começou a gargalhar feito um louco.

— Saya Otonashi! - exclamou ensandecido. - A vadia chiropteran que caça e mata os da própria espécie! Ah, mas a sua carreira termina aqui e agora, e quem vai acabar com ela sou eu!

Abraham franziu o cenho quando ouviu aquilo. Saya, uma chiropteran? Então era isso?! Sentiu o coração disparar descontrolado e o ritmo das pulsações aumentar de uma hora para outra. Pensou, a Saya... é um monstro que nem o tal do Coleman... que nem os "morcegoides" que ela matou?! Explicava muita coisa... Abraham estremeceu interiormente. Teve a impressão de que seu cérebro passara a rodar feito um pião. Chiropteran... inumana... alienígena... Sim, agora ele entendia as habilidades sobre-humanas de Saya, e o porquê de ela não envelhecer mesmo tendo sobrevivido por um século ou mais. E acima de tudo, a razão pela qual os chiropterans - os outros chiropterans, corrigiu-se mentalmente - não podiam consumir seu sangue, mas eram envenenados por ele. No fundo Abraham não estava chocado nem transtornado. Bastava-lhe usar a lógica, depois das coisas que vira na madrugada daquele dia e do que ouvira da boca da própria Saya, para chegar à verdade odiosa. Odiosa? Qual o quê! Abraham deu uma risada mental. Era como se ele soubesse desde sempre que Saya era aquilo e não um ser humano. Aquilo? "Pouco me importa o que Saya é, biologicamente falando... Espiritualmente, ela é uma pessoa, e uma pessoa que se tornou preciosa demais para mim", ponderou o judeu.

— Saya... - murmurou com um soluço. Cerrou os punhos, num gesto de raiva impotente. "Maldição! Não posso fazer nada pra ajudar!"

— Tenha fé nela, professor - disse Jonathan em tom decidido. Respirava pesadamente.

Foi nesse instante que um objeto, uma lâmina de metal em forma de estrela cortou o ar girando velozmente e acertou o olho esquerdo de Coleman. O chiropteran deu um grito - afinal, não tivera tempo de se transformar por inteiro. O ferimento desviou a atenção do mutante por alguns segundos preciosos, que jamais conseguiria recuperar. Era tudo o que Saya necessitava. O fio de sua espada decepou o antebraço direito de Coleman, que urrou medonhamente e largou sua presa, enquanto um enorme jato de sangue esguichava com força do coto do braço mutilado, manchando de vermelho a roupa, o rosto e os cabelos de Saya. Abraham, sem querer, recordou um trecho de The Call of Cthulhu, um conto de terror escrito por Lovecraft, e que ele lera e relera inúmeras vezes. Seus lábios moveram-se silenciosamente:

"Há características vocais típicas dos homens, e características vocais típicas das feras, e é terrível ouvir uma quando a fonte devia indicar a outra."

Abraham, de tão chocado, começou a passar mal, mas controlou-se e permaneceu quieto, com os punhos fortemente fechados, respirando ritmicamente, visualizando-se envolto numa esfera brilhante de chama violeta. Ver sangue não o deixara enojado. Era um tipo endurecido, embora delicado e sensível por dentro, que vira o suficiente em matéria de atrocidades terríveis na última Guerra Mundial, quer da parte dos nazistas e seus cúmplices, quer das tropas aliadas, para ter consciência das perversidades de que a raça humana era capaz. Não, o que o horrorizara além da conta era testemunhar com os próprios olhos aquela indizível obscenidade cósmica que transcendia toda maldade humana, aquela repugnante degradação do corpo humano e da alma humana perante as leis naturais e divinas que era a transformação de um homem em chiropteran. Era, para citar mais uma vez o aziago novelista Lovecraft, "a total e objetiva corporificação da 'coisa que não deveria existir'", mas que, não obstante, existia. Como Saya tinha razão!

Entrementes, o sangue jorrando aos borbotões pareceu exacerbar o ardor guerreiro da garota chiropteran, que, soltando um grito de guerra saído das profundezas da sua alma animal, mergulhou a espada envenenada com o próprio sangue no corpo do antagonista, não uma e sim várias e repetidas vezes, sem a menor complacência, e não cessou de golpeá-lo até reduzí-lo a um informe amontoado de cacos ensanguentados jazendo no asfalto da estrada, que tingiu-se de encarnado. O shuriken vindo não se sabe de onde para cravar-se no olho da malfadada criatura luzia sinistramente em meio à vermelhidão sangrenta dos restos mortais de Coleman, no chão. Saya apanhou o misterioso objeto e o examinou com curiosidade. Tratava-se de uma pequena lâmina metálica em formato de roda, com oito pontas, de aço. A arma de um ninja.

— Saya! - exclamaram juntos Abraham e Jonathan, ao se aproximarem dela. Saya virou-se para encará-los, segurando na mão direita a katana ensanguentada e, na esquerda, o shuriken de procedência desconhecida. Abraham estremeceu e seus cabelos se arrepiaram à vista daqueles olhos que pareciam duas brasas rubras e radiantes, com as pupilas fendidas reduzidas a um traço vertical, do rosto de boneca salpicado de feias nódoas de sangue coagulado, dos lábios vermelhos e carnudos crispados num esgar de fúria que expunha os longos e pontiagudos caninos retráteis, sugerindo punhais de marfim pequeníssimos.

— Não cheguem perto...! - A voz de Saya soava como ferro, dura e contundente. Seu peito subia e descia arfando violentamente, tudo nela lembrava um animal predador selvagem, uma força da natureza, feroz e indomável. Naquele momento ela era praticamente 100% chiropteran.

Sem nada de humano!

— Professor! - Jonathan exclamou, tarde demais.

— Saya! - Sem pensar duas vezes, ele precipitou-se sobre a chiropteran, envolvendo-a em um abraço apaixonado, igualmente reconfortante e protetor. A garota ficou sem ação, atônita, e, enquanto a apertava em seus braços, experimentando a maciez dos seios dela, redondos e firmes, contra seu peito, Abraham imaginou-se junto com Saya no centro de uma imensa bolha de luz cor-de-rosa, de amor puro, tal como da primeira vez, de madrugada, na Hannover Square. - Está tudo bem agora, confie em mim - sussurrou num tom doce e quase inaudível. - Eu já falei que vou proteger você... Juro que jamais vou deixar você sozinha!

O abraço amoroso durou dois minutos. Depois a voz de mocinha de Saya se fez ouvir:

— Pare, Abraham... Está me sufocando!

Ele olhou para ela, e, para seu alívio, constatou que o resplendor vermelho-sangue sumira das duas grandes orbes amendoadas que o fitavam com espanto. Os olhos de Saya exibiam um tranquilo tom de chocolate acobreado que, juntamente com as pupilas redondas normais, atestava o regresso da menina chiropteran à sua forma humana. Ela soltou um longo suspiro, cansada. Jonathan a amparou.

— Tudo bem - disse a jovem em voz baixa e apagada. - Eu tô bem.

Abraham sorriu discretamente. - Saya... Fico feliz que tenha voltado ao normal.

— Nunca mais cometa esse erro - disse Saya, e um laivo de preocupação vibrou naquelas palavras frias da jovem garota. - Eu sou uma chiropteran! Quer acabar sendo morto por mim?

— Ela tem razão, professor - disse Jonathan, que já havia recuperado a cor natural. - Já vi a Saya em frenesi arrancar o braço de um chiropteran somente com as mãos nuas.

Abraham acenou com a cabeça. - Mas eu tirei você do "modo vampiro" - cochichou para Saya, com um inesperado e breve ar traquinas. A boca da moça caiu meio centímetro.

— Espere só um minutinho - disse ele, tirando um lenço do bolso e começando a limpar os respingos de sangue no rosto de Saya. - Não pode andar por aí com a cara toda suja de sangue.

Jonathan interessou-se pela "faca-estrela" de oito pontas que Saya tinha na mão. - Então foi isto que distraiu Coleman? É um tipo de arma de arremesso, não é?

Happo shaken - Saya respondeu laconicamente. - Arma de ninja.

— Um ninja? Humano?

— Acho extremamente improvável que qualquer ser humano, mesmo treinado em ninjutsu, conseguisse se aproximar, atirar uma shaken e se afastar sem ser detetado por mim. - Acrescentou a título de explicação: - Meu olfato e minha audição são muito mais apurados que os de um mero humano. Posso perceber sua presença a centenas de metros. Ou de um chiropteran de baixa hierarquia.

(Abraham viu-se momentaneamente relegado ao olvido; todavia, ficou na sua.)

O rosto escuro de Jonathan assumiu uma expressão rígida. Sua voz tremeu ligeiramente quando falou: - Está sugerindo que foi um...

— Um chevalier— completou Saya em tom calmo.

Abraham, que escutava em silêncio, limitou-se a erguer as sobrancelhas. Chevalier?

— Um chevalier?! - repetiu Jonathan, seu olhar expressando sua incredulidade. - Por que razão um chevalier ajudaria justamente a inimiga de todos os chiropterans?

— Isso eu não sei - respondeu Saya em tom pensativo. Depois de algum tempo levantou a cabeça e fitou o afrodescendente, que podia ver o fogo frio a arder em seus olhos castanhos. - Temos um problema bem mais grave e urgente que é a infiltração de chiropterans na própria organização Escudo Vermelho.

Jonathan assentiu com a cabeça, muito sério. - Pode ser que o incidente com Coleman seja um caso isolado, mas não queremos correr riscos desnecessários. Jamais supusemos que empregariam "familiares" para se infiltrarem. É líquido e certo que farão de tudo para matá-la, portanto não devemos, em hipótese alguma, permitir que se aproximem de você. Vou voltar a Londres e dar ao David as más novas, recomendando que se passe o pente fino no pessoal da Escudo Vermelho acantonado na capital, em busca de elementos infiltrados, ou uma eventual quinta coluna chiropteran na forma humana.

— Sim, vamos embora - endossou Saya, começando a caminhar em direção ao carro de Jonathan, com a espada embainhada e o embrulho em plástico em suas mãos. - O tempo urge.

Sem olhar para trás. Abraham engoliu em seco, mas permaneceu frio.

— Lamento, Saya, mas você não vai comigo - Jonathan a deteve com um gesto. - Não é seguro. Nossos inimigos sabiam que estávamos no seu encalço, por isso deram um jeito de inserir Coleman, um elemento cooptado, na minha equipe, para encontrá-la e matá-la... Deus sabe se há outros como ele nas demais equipes. Se regressarmos juntos eles saberão. Por ora, o melhor a fazer é sair de cena por um tempo. Entendeu, Saya?

— Está me dizendo para não voltar ao meu quarto de pensão na Cambridge Heath Road? - indagou Saya, mantendo o semblante impassível.

— Sim, Saya. - Jonathan tirou um maço de cigarros do bolso do paletó, pegou um cigarro e o levou aos lábios. Logo a seguir tirou o isqueiro do bolso da calça, e acendeu o cigarro. - Você, ou melhor, seu sangue é nossa única arma contra os chiropterans, então nada de riscos inúteis. Conheço uma velha igreja abandonada...

Foi quando Abraham resolveu intervir no colóquio.

— Ora, ela pode ficar na minha casa, conforme havíamos combinado desde o início. Afinal, já estamos quase lá. - Um sorriso quase imperceptível brincava em torno de seus lábios.

Saya e Jonathan fitaram-no com uma expressão de espanto.

— Hum! Até que não seria má ideia - ponderou Jonathan, tragando forte e longamente. Soltou uma baforada de fumo, formando pequenas elipses deformadas e dançantes no ar, e observou-as se desvanecerem. - O Professor Souzanitzky não é membro da Escudo Vermelho, por conseguinte nossos inimigos e seus asseclas e seguidores humanos não o conhecem. De acordo, Saya?

— Por mim está bem - respondeu Saya com indiferença. - Mas honestamente falando, não acredito que o Professor Souzanitzky esteja entusiasmado com a perspectiva de dar guarita a um monstro... Agora que sabe o que eu sou.

Seus olhos escuros encontraram os de Abraham, que lhe enfrentou o olhar gelado. O professor suspeitou que o semblante glacial de Saya não passava de mera máscara que escondia do resto do mundo a sua verdadeira personalidade, tipo um jogo de "mostra-e-esconde", ou "efeito camaleão". Sim, a chiropteran era, por necessidade, uma mestra em mimetismo psicológico.

— Não estou vendo nenhum monstro aqui, apenas pessoas. - Abraham rertorquiu solenemente. - O único monstro que havia foi morto.

Tinha certeza de que o Rav Michael Mendoza, da Sinagoga Bevis Marks - a sua sinagoga - concordaria em gênero, número e grau com suas palavras. Assim como seus coirmãos da Ordem Rosacruz, AMORC.

— Eu fico com isto - disse ele,tomando gentilmente a espada das mãos de Saya. A moça não se opôs. - Vou guardá-la no carro de novo.

— Então está certo - disse Jonathan entre baforadas. - Saya pode ir com o senhor, professor. - Atirou ao chão o cigarro aceso e amassou-o bem devagarzinho sob a sola do sapato. Foi até o Packard azul-marinho, abriu a porta e tirou de dentro um walkie-talkie e uma pasta de couro marrom com duas alças, muito surrada. Entregou tudo nas mãos da garota, e disse: - Saya, já que não vai voltar para Londres acho bom você ficar com isto. Bastará, por enquanto. Entrementes, deve aguardar novas ordens de David, OK?

— Não recebo ordens - rebateu Saya em tom frio. - Nem de David-san, nem de ninguém.

Jonathan suspirou. - Não vamos discutir questões semânticas. Dentro em breve, você terá notícias nossas. Por ora... Saya, eu estou falando com você!

— Cale-se! - A garota manteve a cabeça inclinada numa posição esquisita. Até parecia que havia captado alguma coisa no ar, algo acessível apenas às suas capacidades supersensoriais de chiropteran. - Eu ouço... Essa voz... - Saya franziu a testa.

— Saya - Abraham interveio subitamente, preocupado com a moça.

— Quieto! - ela exclamou baixinho. - Alguém me chamou... Está aqui. Bem perto.

— É um chiropteran, não é? - indagou Jonathan, sério.

Chiropteran? - repetiu Abraham, arregalando os olhos de espanto. - Está dizendo que esses animais se comunicam e que Saya pode ouvi-los?

— A "voz" sumiu. - Saya balançou a cabeça. - Estranho.

— Sim, professor. - Jonathan virou-se para o cientista e encarou-o com firmeza. - Chiropterans são bestas-feras, mas podem se comunicar à distância, "falar" entre si. Só que a sua linguagem é imperceptível ao ouvido humano, porque se desenvolve na faixa do infrassom.

— Mas Saya...

— Sendo ela própria uma chiropteran, Saya não tem a menor dificuldade em ouvir e compreender a "voz" deles. Isto nos dá uma grande vantagem estratégica.

— Agora ele se foi - resmungou Saya. - Ou está se escondendo muito bem.

Ele? - indagaram Jonathan e Abraham quase que ao mesmo tempo.

— "Ele", "aquilo", fosse lá quem ou o que fosse - ela retrucou. Segurava ainda em suas mãos o walkie-talkie e a pesada pasta que Jonathan lhe dera.

Jonathan inspirou profundamente e soltou o ar. Não era nada fácil de se lidar com Saya.

— Disse que a "voz" chamava por você - falou cautelosamente. - Pense bem, podia ter sido a Diva?

Saya meneou a cabeça negativamente. - Não. De jeito nenhum - ela declarou com convicção. - Eu saberia. Não foi a voz de Diva que eu ouvi.

Abraham franziu o cenho. Diva? Agora é uma... Diva?

— Então foi o suposto chevalier - insistiu Jonathan. - O da "estrela ninja".

Abraham não cabia em si de excitação. De novo esse tal de chevalier?!

Saya refletiu por um instante antes de responder, com ar de quase resignação.

— Não sei, de fato não sei...

Jonathan desistiu. Ele cruzou os braços e comprimiu os lábios. - Acho bom despachá-los de uma vez. Professor Souzanitzky, lamento que tenha sido envolvido nisso tudo. Não é sua luta.

— Ledo engano - retrucou o judeu. - Sou humano. Esta luta é tão minha quanto de vocês, talvez até mais. - Virou-se para a garota, e disse: - Vamos, Saya.

Então a voz de Jonathan o deteve. - Professor.

Abraham voltou-se bem devagar e encarou seu interlocutor em silêncio.

Em tom cuidadosamente respeitoso, o homem da Escudo Vermelho disse:

— O senhor é cientista, e como tal, gosta de promover e divulgar a informação, multiplicar o conhecimento, dar visibilidade à verdade, certo? No entanto, tenho certeza de que compreende que, no atual estágio da humanidade, não convém que a verdade sobre os chiropterans se torne de domínio público. Haveria pânico global generalizado. É nosso dever - da Escudo Vermelho - trabalhar para evitar isso, e, ao mesmo tempo, combater a ameaça chiropteran nas sombras.

— "Os membros destas sociedades contentam-se com uma glória secreta".

— Como disse?

— Perdão - Abraham torceu de leve a boca. - Só estava citando Arthur Machen.

— Não importa. Posso contar com seu silêncio?

— Naturalmente que sim - retrucou Abraham laconicamente. - Pelo bem da humanidade. Além disso, ser exposta publicamente como chiropteran não seria nada bom para Saya.

— Ah! - fez Jonathan. - Outro ponto, a Saya. - O afrodescendente aproximou-se de Abraham o suficiente para que sua boca ficasse próxima ao ouvido do judeu. Disse num tom muito baixo, como um cochicho: - Não sou nenhum cego. Já percebi o modo como o senhor olha para ela. É óbvio que nutre sentimentos por Saya. Bem, eu vou lhe dar um conselho de homem para homem: mantenha a devida distância desse ser. E não se deixe enganar por semelhanças superficiais; lembre-se de Coleman, dos chiropterans da Hannover Square. No fundo a Saya se parece muito mais com eles do que com um ser humano. Ela uma arma; uma arma viva, uma arma letal. Pense nas minhas palavras!

Abraham fechou o semblante. - Pensarei... Mr. Jonathan.

Sem mais, girou os calcanhares e, dando as costas ao homem de preto, marchou em direção ao MG-TC vermelho, acompanhado de Saya.

Jonathan observou os dois entrarem no carro de Souzanitzky e partirem. "Lá vão eles", pensou com seus botões. "Humano e chiropteran, um estranho par. Esperem só o David ficar sabendo disso".

Em seguida, entrou no sedan azul-marinho, deu partida e, fazendo meia-volta, disparou a cento e vinte por hora. De volta a Londres. O "chefe" precisa saber disso.

************

Shemá Israel! - vociferou Abraham em voz baixa, enquanto dirigia pelo último trecho do trajeto, como se travasse um monólogo. - Francamente, eu nunca acreditaria numa história dessas se não tivesse visto com meus próprios olhos. Um homem se transformou num monstro bem na minha frente! Primeiro aqueles chiropterans da Hannover Square quase me devoram de madrugada, e agora isto! - Ele deu uma gargalhada forçada. - É muita, muita agitação mesmo, pra um único dia!

— Bem-vindo ao meu mundo - replicou Saya, sentada empertigada ao seu lado, pasta de couro no colo. Abraham percebeu a ironia no comentário dela, a despeito do habitual laconismo frio, mas não o disse; apenas ficou na sua.

— Saya - disse ele, sem tirar os olhos da estrada. - Quem ou o que é "Diva"? E o que é um chevalier? Trata-se de um jargão da Escudo Vermelho?

— Diva - ela repetiu, como que mesmerizada pelo som daquele nome, esticando as sílabas como se as saboreasse com um sentimento indefinível. - Diva é... minha irmã. Irmã gêmea, saída, como eu, de um mayu, um casulo, retirado do útero do cadáver fossilizado de nossa mãe, a rainha chiropteran anterior. Isso foi há cento e quinze anos. - Saya olhou ligeiramente para Abraham, e perguntou: - Chocado?

— Não, não - ele apressou-se em responder. - De jeito nenhum. Fascinado, sim. Então... É correto presumir que você e sua irmã são... rainhas?

— Sim - Saya assentiu. - Somos chiropterans natas, ao contrário dos demais. Tecnicamente, ela é uma "rainha azul", eu sou uma "rainha vermelha". É assim que nos chamam, por causa das cores de nossos olhos: os dela são azuis, ao passo que os meus tornam-se vermelhos. - Ela ficou com um ar sonhador por alguns instantes. - Diva! A sua voz é linda como a de uma prima donna da ópera. Mas os ouvidos humanos são incapazes de captar o seu canto.

— Sei, sei - disse Abraham, esforçando-se para assimilar a torrente de informações da parte de Saya. - Essa Diva é a irmã que você não vê já faz muitos anos, correto?

— Correto. Ela é a presa que tenho caçado através do mundo todo, percorrendo país após país: França, Rússia, Alemanha, Japão. Por sessenta e cinco anos! Esta é minha razão de existir, minha força na vida, e minha missão.

— Pensei que sua missão fosse caçar monstros do tipo de Coleman e daqueles dois da Hannover Square - disse Abraham. - Que têm eles a ver com a Diva?

— São crias dela - afirmou Saya, e sua voz assumiu um tom desdenhoso. - Não passam de peões, bucha de canhão dos chevaliers de Diva. Eu os mato há décadas, mas eles continuam a proliferar por todo o planeta, graças à droga nefasta cuja matéria-prima é o sangue de Diva e que é disseminada pelos seus seguidores. Mas vou pegá-la um dia! Eu juro!

— Sim, e quando esse dia chegar? - quis saber o geógrafo.

Os olhos oblíquos sob as sobrancelhas negras faiscaram. - Quando esse dia chegar, eu vou matá-la. Matarei Diva com minha espada e meu sangue. Eu tenho vivido apenas para isto.

— Pela espada, viverás! - resmungou Abraham, pensativo.

— Gênesis, 27:40 - disse Saya em tom casual. Abraham olhou-a espantado.

— Sei o que está pensando - disse ela, e Abraham teve a impressão de ver os lindos lábios cor de coral rosado se repuxarem num sorriso malicioso. - Que a única coisa que sei é lutar. Para seu governo, possuo uma cultura ocidental completa. Meus tutores me fizeram aprender esgrima, valsa, violoncelo, francês e inglês, os poemas de Homero e Virgílio, a Bíblia. Satisfeito?

— Nada mal para uma chiropteran - comentou o brasileiro, fazendo-se de desinteressado. Riu por dentro quando reparou que Saya o fuzilava com o olhar. - E o que vem a ser um chevalier? Só sei que significa "cavaleiro" em francês.

— Pois é isso mesmo. Os chiropterans que protegem a rainha, lutam por ela e montam guarda durante o período de hibernação são chamados de chevaliers, ou "cavaleiros", se preferir. Eles formam o segundo nível mais alto da sociedade chiropteran em termos de força física e habilidades, abaixo somente da Rainha Procriadora. Eles, ao contrário dos peões, conservam a forma humana e a consciência anteriores à mutação, mas podem, por vontade própria, metamorfosear parcial ou por completo na forma de besta-fera, para combater; ou podem, ainda, copiar o aspecto exterior de qualquer ser humano de quem tenham sugado o sangue. É assim que se infiltram em comunidades humanas para passar despercebidos.

— Hmmm... - fez Abraham - Quer dizer que os "morcegões", digo, chiropterans formam uma sociedade hierárquica, verticalizada, com uma rainha no alto da pirâmide, uma coorte de cavaleiros, chevaliers, imediatamente abaixo, e uma massa muda de subumanos animalizados, peões, na base da estrutura. Que nem um formigueiro, ou termiteira, ou uma colmeia. - Sua testa se enrugou, e seus olhos castanhos se estreitaram enquanto fitavam a estrada à frente. - Me diga, Saya, o que é que torna os chevaliers assim tão diferentes dos chiropterans em geral?

— O modo como são feitos. A transformação de um mortal em chevalier só pode ser feita através de um ritual, onde é necessário drenar praticamente todo o seu sangue - até restar o suficiente para mantê-lo entre a vida e a morte. Neste instante, a rainha, e somente ela, abre um corte em si mesma e dá ao humano semimorto um pouco do seu próprio sangue chiropteran, que, misturado ao que resta do sangue dele, o transformará em um chevalier ao cabo de vários dias. Um chevalier, por força do laço de sangue que o liga à sua mestra e rainha, compartilha um forte elo mental com ela, sendo submisso à mesma, e tão leal e devotado a ponto de morrer por ela.

— Uma espécie de cruzamento do "clássico" vampiro europeu com o samurai japonês?

— Sem o sarcasmo, sim.

— Me perdoe, Saya. Estou tendo dificuldades para "deglutir" toda essa massa de dados que você me passou. Afinal, minha cabeça não funciona como um cérebro eletrônico.

— Você faz muitas perguntas.

— Ah, bem. Perdoe-me, por favor, de novo. Eu sou um cientista, tenho sede de saber.

— Neste mundo, há coisas que é melhor não saber.

— Tarde demais. Posso fazer mais uma pergunta?

Saya suspirou forte. - Faça.

— Se você é uma rainha chiropteran, por que luta sozinha? Onde estão seus chevaliers?

— Não tenho chevaliers— ela respondeu, com os dentes cerrados. - Nenhum.

Abraham notou a respiração pesada de Saya. Os punhos da moça se fecharam fortemente.

— Eu existo para erradicar os chiropterans da face da Terra. Este carma é só meu. Não vou reparti-lo com mais ninguém. Não tenho esse direito. - Sua voz quase sumiu e, num sussurro que mal podia ser ouvido, ela acrescentou: - Não de novo.

— Você exige demais de si mesma! - censurou-a Abraham. - Existem tantas coisas na vida pra se fazer além de caçar chiropterans e correr atrás de Diva com uma espada.

— Não para mim. É como o Jonathan-san falou, eu sou só uma arma letal. Quando chegar a hora, vou matar a Diva e me matar também. Fim. Finis.

— Saya! - Abraham levantou a voz. - Você não pode estar falando sério.

— Esqueceu o que diz a Bíblia dos humanos? - ela replicou friamente. - Mateus 26:52? "Aquele que vive pela espada, morrerá pela espada".

************

Após a partida dos automóveis de Souzanitzky e Jonathan, ele decidiu sair de seu esconderijo na orla de um bosquete de carvalhos cujas folhas de outono exibiam um maravilhoso tom amarelo-dourado. Era um homem alto e esguio, de aparência jovem, que vestia um terno cor de grafite com um sobretudo bege por cima. O belo rosto oval, de traços delicados e tez branca, marcado pelo par de olhos de um azul cinéreo, meio oblíquos e misteriosos, era envolto pelos abundantes cabelos negros lisos, que, soltos e esvoaçantes, esparramavam-se sobre os ombros e costas, ocultando a testa alta sob as longas mechas finas. Seus antecedentes raciais constituiriam um enigma e um desafio para o etnólogo mais competente do Reino Unido.

Enquanto seu corpo permanecia eternamente jovem, paralisado no tempo, guardando como numa imagem de escultura a beleza fria de uma mocidade imperecível, a mente daquele homem - se homem era - conhecia uma maturidade secular que enchia de sombria dignidade aqueles olhos cerúleos amendoados entre os quais caíam as longas mechas lisas preto-azeviche. As pálidas pálpebras desceram suavemente sobre seus orbes azuis celestes. Como um fantasma, surgiu-lhe na mente o semblante lindo, de pele macia, emoldurado por longos cabelos escuros e lisos, de uma jovem mulher que não aparentava ter mais que quinze ou dezesseis anos. E sorria. Um sorriso tão luminoso que não havia nada a que pudesse ser comparado. Pensou na garota prodigiosa de cabelos curtos e negros e olhos vermelho-sangue, vestida de roxo, que, de katana em punho, investira destemidamente contra o ser abominável que havia sido o agente da Escudo Vermelho de nome Coleman e o matara ainda há pouco, naquele local. Seria ela...?

Tirou do bolso do colete negro sobre a camisa branca uma foto antiga de uns 56 anos atrás, toda amarelenta e gasta nas bordas, dando a impressão de ter sido manuseada repetidas vezes ao longo das últimas cinco décadas. Nela aparecia uma jovem de rara beleza entre outras nove pessoas, homens e mulheres, de idades variadas, todas vestidas com trajes do século XIX. Alguém rabiscara a tinta um tosco círculo ao redor da bela moça de longos cabelos negros, para destacá-la das demais pessoas na foto, e escrevera, em letras de forma, a palavra "VAMPIRE".

Os orbes azul-acinzentados do soturno personagem brilharam. Tratava-se dela, com toda probabilidade. Por um longo tempo, que, em termos de vida humana, podia até ser chamado de eternidade, ele percorrera o Planeta que nem um Ahasverus, o imortal Judeu Errante das lendas ocidentais, na esperança de encontrá-la um dia... E agora, afinal, esse dia chegara. Logicamente que havia diferenças na roupa e no corte de cabelo. Mas não passavam de simples exterioridades. Ela soubera tirar vantagem do happo shaken que ele acertara no olho do chiropteran, livrando-se das garras do monstro e decepando-lhe o braço, para, enfim, mergulhar a lâmina embebida com o próprio sangue fatal no corpo disforme da criatura, fazendo com que o veneno entrasse na circulação, destruindo assim o antagonista. Depois, ele a chamara na sutilíssima linguagem dos chiropterans, que é inaudível para os meros seres humanos, e ela o escutara e entendera.

Conforme esperado de uma rainha chiropteran.

Tornou a guardar a velha foto no bolso do colete e encaminhou-se altivamente para a estrada principal. A expressão impassível no rosto sombrio não denunciava a menor emoção. Somente nos cantos dos olhos cintilava uma centelha de triunfo.

Sua busca fora recompensada. Seus lábios moveram-se silenciosamente:

— Depois de tantos anos... Finalmente te encontrei... Saya.