Número Cinco nunca esquecia um rosto. Por isso ele não levou mais do que meros segundos para entender porque aqueles adultos dormindo eternamente lembravam tanto os pirralhos que ele dividira uma refeição minutos antes. Ele viajara no tempo, afinal de contas.

Só não esperava encontrar o mundo como encontrou.

Número Quatro foi o primeiro cadáver que Cinco reconheceu. O garoto ainda tentava processar o que diabos acontecera e como a mansão em que vivera durante treze anos fora reduzida a escombros em questão de segundos.

Ele estava tomando café da manhã e então...

Os olhos verdes ainda estavam abertos e não mais tinham o brilho que Cinco vira poucos minutos (ou muitos anos?) antes. O lápis preto deixara um leve rastro nas digitais do garoto quando este fechou as pálpebras do irmão.

Alguma forma muito estranha de orgulho encheu o peito do garoto ao ver a maquiagem desleixada e a saia amarrotada do garot--homem a sua frente. Cinco presenciara o irmão ser punido vezes demais pela maneira que se vestia para não se sentir daquela forma.

Cinco já vira de relance os outros quatro corpos (não deveriam ser mais cinco?) e realmente não queria chegar mais perto quando ele já sabia quem era quem.

Independente da contagem de corpos estar certa ou não, todos estavam tão diferentes que era difícil para Cinco não questionar tudo o que via.

Por que Um era tão peludo? Quando Dois conseguira uma cicatriz tão grande no rosto? Por que Três se vestia como uma atriz de Hollywood? Por que os braços de Quatro tinham tantas marcas de agulha? Onde estava Seis? Por que Sete usava um terno todo branco?

O olho artificial que Cinco encontrou era só mais um mistério que ele talvez nunca encontraria uma resposta.

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Cinco nunca admitiria isso para ninguém (não que houvesse alguém para isso), mas ele chorou por quase uma hora quando viu Dolores pela primeira vez.

Nem por um segundo passou pela cabeça do garoto que ele achara um ser humano vivo, mas a emoção de encontrar um rosto tridimensional que não estivesse apodrecendo foi tamanha que por vários minutos as lágrimas jorraram a ponto de não ser possível ver mais nada.

A manequim estava sobre uma plataforma, como se exposta em um palco, um pedestal sagrado com a salvação da sanidade de Cinco.

Ela era feita de plástico duro que dava um brilho nada natural ou humano para todo o rosto e corpo (a metade existente) dela.

Até o cabelo castanho avermelhado era totalmente artificial, claramente uma peruca que brilhava com fios lisos também feitos de plástico.

A parte mais humana em Dolores era a roupa que ela vestia e isso era no mínimo algo estranho a se considerar. Como um chapéu amarelo e uma blusa branca com bolinhas pretas conseguia evocar mais humanidade do que olhos pintados ou um leve sorriso esculpido?

Cinco não precisava de humanidade, só de companhia, por isso ele se livrou da peruca e do chapéu no mesmo momento.

Agora sim.

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"Extra Ordinária: Minha vida como Número Sete - Vanya Hargreeves". Cinco vasculhava as ruínas do que antes fora a bela biblioteca da Academia quando encontrou um livro com o rosto de uma das irmãs na capa.

Sete (quem era Vanya?) estava com a mesma face do dia que Cinco a vira viva pela última vez. Era assustador vê-la assim, imortalizada em um pedaço de papel com as bochechas rosadas, quando dias antes ela jazira em meio a escombros vestida de um terno completamente branco.

Assim que Cinco memorizou cada mínimo detalhe daquele rosto (não que ele tivesse esquecido algum, mas ele queria apagar da mente o outro rosto), ele decidiu ver a contracapa e se arrependeu no mesmo instante, o outro rosto o encarando com um leve sorriso.

Somente após mais um tempo olhando para a irmã quando criança foi que ele tomou coragem para ler o conteúdo do livro.

Ele não podia dizer que estava surpreso em descobrir que Seis morrera quando adolescente, até porque a estátua de bronze fora claramente esculpida em homenagem ao garoto, mas ter uma prova concreta que o irmão não escapara por um milagre do fim do mundo não foi uma experiência agradável.

Descobrir tanto sobre como a vida de cada irmão havia desmoronado de formas diferentes bem antes do fim do mundo também não foi agradável.

Cinco levou alguns dias para absorver os nomes de cada irmão, renomeando-os na cabeça enquanto tentava ligar as sequências de letras que encontrara nas páginas amareladas com os rostos tão conhecidos.

O garoto desejou poder agradecer a irmã por ter intitulados os capítulos respectivos a cada irmão com os nomes seguidos dos números.

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Cinco vira o bastante de coisas bizarras por uma vida inteira (um dos seus irmãos tinha tentáculos, pra começo de conversa), então a sensação de desconforto ao notar o próprio rosto envelhecendo não deveria ser tão forte assim.

Onde um dia houvera bochechas coradas e macias agora havia uma barba fechada e cicatrizes de insolação. Os olhos brilhavam menos a cada dia e as olheiras só aumentavam. O cabelo era uma bagunça constante, já que Cinco não via qualquer motivo para se arrumar. As rugas o deixava nauseado, as principais provas da passagem do tempo.

Às vezes o homem sentia que estava preso em algum pesadelo, horrível, mas que inevitavelmente terminaria. O problema era que toda vez que Cinco se olhava em um espelho o reflexo que o encarava de volta era real demais para ser fruto de um sonho.

Era desconcertante ver um humano e não poder sentir o calor da pele alheia.

Cinco piscava, o reflexo também. Ele mexia a boca, o reflexo também. Ele tocava o próprio rosto, o reflexo também. Ele socava o vidro, o reflexo não mais existia.

Bem melhor.

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A fome deixava a visão de Cinco turva, mas ele podia jurar que vira algo se mexendo bem na entrada do abrigo.

O homem piscou os olhos rapidamente, tentando focalizar melhor e encontrou uma mulher loira vestida de preto e com um sorriso de lado no rosto.

Ela era diferente das miragens que ele encontrara ao longo das décadas. Ela não era uma forma humanoide na visão periférica (claro, nunca era um humano mesmo). Não era como as inúmeras vezes que ele jurara ver Dolores se mexendo. Não era algum outro manequim que o homem encontrara ao longo dos anos. E com certeza não era algum reflexo no espelho que assustava Cinco.

Não, realmente se tratava de um ser humano vivo, com pulmões que funcionavam, pernas que andavam e olhos que se movimentavam, catalogando os arredores.

Cinco piscou mais algumas vezes para ter certeza do que via.