Número Cinco acabara de saltar por três estações diferentes, sendo a última o inverno, porém ele nunca sentira tanto frio quanto ao chegar em 2019. E de novo, ele tinha acabado de sair de um lugar totalmente coberto de neve e ventando.

Antes de processar qualquer um dos outros sentidos (até mesmo a visão), o garoto sentiu um arrepio passar por todo o corpo, deixando-o imóvel enquanto tentava entender quando estava.

Cinco estava em algum tempo com clima quase desértico: quente, seco e ainda por cima sem muito vento. Ah, e com vários focos de incêndio nos arredores. Mesmo assim ele sentia que poderia colapsar por hipotermia a qualquer momento, o corpo instintivamente encaminhando o calor para os órgãos vitais e deixando as extremidades geladas.

Cinco tentou esquentar as mãos esfregando uma na outra, mas os dedos já haviam adormecido e o queixo começara a tremer nos segundos que ele levou para pensar em correr de volta para a Academia.

Era difícil respirar com tanto "frio", os joelhos descobertos pareciam queimar com a baixa temperatura imaginária e ele só queria voltar para casa.

Onde estaria são e salvo.

E aquecido.

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Número Um com certeza foi o mais difícil de enterrar. O peso do enorme corpo parecia ser maior do que o esperado para o tamanho. Cinco não podia dizer que estava surpreso, já enterrara corpos o suficiente durante toda a infância para saber que cadáveres são mais pesados que pessoas vivas.

Mesmo assim, enterrar o líder da Academia demorou tanto quanto os outros corpos juntos. Ele sempre fora o mais alto entre os irmãos, mas as proporções de Um estavam todas… Erradas? Gigantescas demais para serem fruto de um estirão, musculação ou do próprio poder dele. A quantidade de pelos grossos que aparecia por sob a roupa e parecia se estender por toda a pele áspera também não era algo normal.

Porém Cinco não desejava descobrir mais sobre o corpo do irmão e nem queria perder tempo precioso de enterro com perguntas que não levariam a lugar nenhum. Por isso o garoto só cavou cavou cavou e depois carregou carregou carregou e por fim enterrou enterrou enterrou.

Um por um até que todos os irmãos tivessem um enterro digno. Ou o mais digno possível nas condições que se encontravam.

Só depois Cinco sentir a chuva pingar em seus olhos.

Ou foi isso que ele disse para si mesmo.

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Cinco tinha dezenove anos quando o braço esquerdo de Dolores caiu. Ele dormia abraçado com a manequim, como todas as noites, quando se mexeu no sono e acordou no mesmo segundo que deixou de sentir o braço que cercava seu corpo na paródia de um abraço.

A perda de contato com o corpo de plástico foi o bastante para que Cinco sentisse após tantos anos o frio daquele primeiro dia do fim do mundo.

Sem conseguir voltar a dormir, o garoto esperou até que os primeiros raios do Sol surgissem para que pudesse usar sua fiel super cola para colar o braço da manequim novamente.

O resultado não foi nada agradável: a cola deixou o braço imóvel, sem mais qualquer mobilidade no ombro. Como Dolores poderia envolver o próprio corpo no dele se ela nem podia levantá-lo?

O negócio era que com Cinco as coisas eram ou oito ou oitenta.

Por isso ele, após desfazer a colagem com água quente, cavou uma cova rasa e enterrou o membro amputado ao lado dos irmãos que já jaziam naquela área havia seis anos.

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Existir como um ser corpóreo no mundo pressupunha ser ferido. Cinco se orgulhava por ser muito cuidadoso, sempre evitando se colocar em perigo desnecessário quando sabia que não existia ninguém para ajudá-lo se as coisas saíssem do controle.

As cicatrizes que cobriam todo o corpo do homem contavam outra história.

A cicatriz longa, mas fina no queixo dele contava a história de quando ele tentara se barbear pela primeira vez com o rosto completamente seco.

A constelação de pequenas cicatrizes no ombro direito era fruto de uma chuva de estilhaços ao abrir uma lata estufada de ervilhas.

A enorme cicatriz na panturrilha contava como a vacina antitetânica da infância impediu que ele morresse quando cortou a perna ao saltar por um prédio em ruínas (como todos os outros) sem prestar muita atenção por onde ia.

Os dedos calejados e ásperos eram causados pelas milhares de vezes que ele se cortara ao virar as páginas de um livro rapidamente.

E os joelhos sempre ralados por colapsar no chão arenoso enquanto chorava.

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Cinco estava faminto.

Sim, ele não comia havia duas semanas, mas ele já estava faminto muito, muito antes disso. Décadas e mais décadas da mais completa fome.

Fome de toque, de pele, de sentir o calor de um outro ser humano.

Ele sabia que não teve uma infância calorosa e feliz, repleta de carinho. Muito pelo contrário: ser tocado era ser ferido, por isso ele sempre precisava saltar ou morreria nas mãos de algum bandido.

Além disso desejar afeto era admitir fraqueza. E ele não era fraco.

Então Cinco nunca gostou muito de ser tocado, sempre evitando contato o máximo possível, saltando para longe ou só direcionando um olhar gelado pra quem enchia o saco dele, normalmente Klaus.

Por mais que o homem tentasse, ele não conseguia lembrar uma única ocasião nos treze anos que passara em sociedade em que fora abraçado.

Mesmo assim, toques aconteciam.

Toques simples, cotidianos. Toques que passavam despercebidos.

Porém indispensáveis para seres sociáveis como os humanos. E ele era humano.

Ainda que preferisse ser máquina.

Klaus apoiando o corpo no dele enquanto os paparazzi tiravam fotos. Vanya se escondendo atrás dele ao falarem “boa noite” para o pai. Os dedos de Diego esbarrando nos seus ao passarem o saleiro pela mesa. Ben o cutucando para chamar a atenção e perguntar algo. Todas as lutas corpo a corpo que os irmãos deviam participar em duplas todos os dias em algum horário que Cinco já não mais lembrava.

Tocar a própria pele ou abraçar Dolores ajudava. Mas nunca era nem perto do ideal. Era como uma coceira que ele nunca conseguia se livrar, deixando um fantasma de uma inanição tátil em cada célula. O ideal seria sentir o calor de um outro corpo.

Cinco mataria por um abraço.

Por isso que a primeira vez que sentiu a pele de outro humano depois de quatro décadas, ele lembrou que estava vivo.

Foi um simples aperto de mãos, nada mais, mas ele teve que respirar manualmente por um momento, os pulmões esquecendo como funcionar a partir do momento que a Gestora se aproximou para cumprimentá-lo.

E a pele queimou e vibrou quando finalmente recebeu o que desejava.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.