Número Cinco passou os primeiros cinco dias do fim do mundo sem comer ou beber nada, muito envenenado com uma mistura estranha de adrenalina e torpor para sequer perceber a existência do próprio corpo. Mas percebendo demais a existências de milhões de outros corpos.

A fome foi percebida quando ele encontrou um prédio em chamas. E então voltou a ser ignorada, somente havendo o gosto de bile na boca dele quando as ondas de náusea passaram.

A sede, de alguma maneira, só chamou atenção dele quando ele desmaiou por alguns segundos devido a desidratação e insolação. Pode-se dizer que a primeira “refeição” que o garoto fez em 2019 foi uma mistura de terra e sangue quando ele caiu de cara no chão desértico.

Isso só o deixou com mais sede, porém o ajudou a finalmente despertar para o mundo, percebendo o corpo em sofrimento e o forçando a cuidar das necessidades até então ignoradas.

Primeiro: achar água.

Depois: achar comida.

Cinco não sabia porque se surpreendeu, mas ele não exatamente esperava a facilidade com que cumpriu sua curta “lista” de tarefas. Afinal, ele estava em uma cidade grande com absolutamente nenhuma concorrência para roubar suprimentos.

Ele só precisou de alguns minutos para encontrar um mercado em ruínas.

E então comeu e bebeu até passar mal.

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Cinco estava preso em sua nova realidade havia onze meses quando ele decidiu abrir a garrafa intacta de whisky que um dia encontrara nas ruínas da Academia.

Em outra realidade, o garoto seria um homem completando trinta e um anos acompanhado de seus irmãos. Porém naquela ele completava quatorze, era a única pessoa viva no planeta e já sabia de cor todas as palavras do livro de Vanya.

Com os dedos tremendo Cinco rompeu o lacre da garrafa e ignorou os gritos de Dolores tentando impedí-lo de continuar. Ele sabia instintivamente que aquela bebida era cara e de alta qualidade, entretanto o garoto só conseguia sentir o que ele imaginava ser o gosto de acetona, a garganta queimando enquanto o líquido era sorvido sem qualquer pausa para respirar.

Cinco somente terminou com aquela tortura quando não havia mais qualquer whisky para contar história. Ele havia comido há pouco tempo, mas o fato de nunca antes ter experimentado uma gota de álcool sequer fez com que o corpo do garoto não recebesse muito bem a bebida.

Uma única inspiração foi o bastante para o cérebro de Cinco finalmente processar de vez o gosto da substância que parecia incendiar cada célula que tocava. Era pior do que acetona.

Assim que respirou novamente, tudo o que o garoto ingerira nas últimas horas foi parar aos seus pés.

As calças que ele vestia estavam encharcadas de vómito, a cabeça latejava, o estômago protestava e a boca tinha gosto de tudo de ruim no mundo…

Fazia tempo que Cinco não se sentia tão vivo, por isso ele tomou uma xícara de café e saiu a procura de algum bar em ruínas.

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Aos quinze ele percebeu que o álcool abria o apetite.

Ele descobrira aquilo meses antes, mas demorou até conseguir admitir para si mesmo. Ainda que Dolores o repreendesse toda vez que o visse abrindo uma nova garrafa, tropeçando nos próprios pés ou sofrendo com ressaca, ele só foi maneirar no hábito (ele ignorava quando a manequim chamava de “vício”) no dia que contabilizou os suprimentos e percebeu que estes eram consumidos na metade do tempo quando comparado aos dias de sobriedade. Por que tudo parece mais saboroso quando se está embriagado?

Foi difícil parar com o ato já tão rotineiro, mas uma hora ele teve que dar ouvidos a Dolores e deixar um pouco de lado o álcool que ele aprendera a apreciar.

Este também o fazia perder dias preciosos de cálculos, mas Cinco nunca diria aquilo em voz alta. Ele se recusava a dar aquele gostinho de vitória para a manequim. Era mais fácil falar dos suprimentos acabando rápido.

A partir daquele dia Cinco prometeu para Dolores que só beberia quando a vida não fazia mais sentido.

Isso acontecia com mais frequência do que ele algum dia admitiria, mas já era alguma coisa.



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Carne era provavelmente um dos recursos mais raros naquela versão apocalíptica do planeta Terra. Não havia muito mais do que pequenos animais, então era compreensível.

Houve uma época que cadáveres eram a coisa mais abundante de todas, mas ela coincidiu com quando praticamente qualquer comida era abundante, os mercados transbordando de opções para a única pessoa viva consumir até dizer chega.

Porém chegou um momento que as infinitas opções passaram todas do prazo de validade e depois de tantas décadas apodrecendo lentamente, nem o estômago de um homem faminto poderia aguentar muita coisa sem adoecer.

Era por isso que Cinco quase chorava de alegria toda vez que encontrava uma boa fonte de proteína. Insetos e larvas eram ótimas opções, mas não eram muito saborosos. Lagartos eram difíceis de esfolar…

Cinco ouviu um guincho vindo de uma das ratoeiras e sorriu abertamente. Nada melhor que um animal de sangue quente.

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Cinco sonhava com os sanduíches de manteiga de amendoim com marshmallow que comera em algum passado muito muito distante enquanto pensava que, se encontrasse algum cadáver não decomposto, teria um banquete.

Isso não passava de um pensamento febril, óbvio. No dia que Cinco completava cinquenta e oito anos (ainda era estranho não compartilhar o aniversário com outras pessoas), ele já não comia há quatorze dias. E meio que não existia mais carne em qualquer um dos cadáveres na região.

Era outono, porém com a ausência da Lua as chuvas eram raras e as estações uma loucura - Quem poderia imaginar a falta que o satélite terrestre faria? – e isso provocara a completa destruição da estufa que ele tanto se esforçara para manter. Não era grande coisa, mas para um único homem que nunca plantara nada na vida era mais do que suficiente.

Ele deixara a porta aberta enquanto se ocupava com seus incansáveis cálculos e isso foi o bastante para uma geada repentina queimar até mesmo as raízes comestíveis com o frio.

Isso fora há quatorze dias. Ele não sabia quantos mais poderia aguentar.

Ele não sabia quantos mais queria aguentar.

A paródia de inverno passou rapidamente, deixando para trás o clima desértico de sempre e um homem de cinquenta e oito anos definhando após duas semanas vivendo a base de água.

Por isso quando Cinco viu a Gestora pela primeira vez houve um certo instinto de calcular quantas refeições ele conseguiria com uma miragem daquela altura.

Só que o homem estava muito fraco para realmente ganhar uma luta com alguém saudável, então ele teve que se contentar em salivar enquanto escutava a alucinação.