Número Cinco não esperava aprender tanto sobre como cadáveres se decomponhem, mas ele também não esperava ser a única pessoa viva da Terra. Então okay.

Ele aprendeu que em um mesmo ambiente, diferentes corpos se desfazem em diferentes ritmos. Aprendeu que humanos e outros animais não tinham cheiros totalmente iguais. Aprendeu que com a escassez de chuva e o consequente clima seco da Terra, demorava bastante até que toda a carne fosse consumida. Mesmo assim havia Sol o suficiente para esta não se mumificar ou algo do tipo. Aprendeu que o cheiro característico de morte se impregna em todo e qualquer ambiente que ele estivesse. E ele estava em todos os ambientes, assim como os mortos.

Boa parte dos seres vivos era de seres não vivos e tal...

Ele aprendeu que o tempo que levavam para parar de exalar morte era menor que ele imaginava, porém muito, muito mais do que seria confortável viver rodeado de corpos em decomposição.

Ou talvez ele só tivesse se acostumado com o cheiro. Se esse fosse o caso, também era teria demorado menos do que ele imaginava, mas mais do que ele gostaria.

Sempre cobrir o rosto com um pano grosso ajudava minimamente.

Então, é, uma hora ele se acostumou com o cheiro dos corpos.

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Provavelmente o pior conhecimento que Cinco adquiriu em seus quarenta e cinco anos de solidão foi o de como um corpo humano pegando fogo tinha cheiro semelhante a churrasco. Ainda havia alguns incêndios pela cidade, né? Bem, fazia sentido… de certa forma em ambos os cenários carnes estavam assando.

Estando com o estômago completamente vazio e depois de três dias sozinho tendo somente o cheiro de morte como companhia, Cinco apreciou a novidade: lembrava os assados que Grace preparava todos os anos no primeiro dia de outubro.

Quando Cinco chegou até o local de origem do aroma, ele já estava salivando antes de perceber a verdade.

E então ele saltou para bem longe e só voltou a andar por aquela rua quando sabia que todo e qualquer fogo havia se extinguido.

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Cinco podia ter chegado ao apocalipse sem saber muito sobre cadáveres se decompondo, mas ele estava bem acostumado a lidar com os mais "frescos".

Algumas vezes ele e os irmãos não precisavam lidar com as vítimas… digo, casualidades. Porém essas missões eram exceção: a regra era encontrar seis crianças mascaradas e uniformizadas (como os bons soldados que eram) limpando pisos e paredes – às vezes até tetos – impregnadas com o cheiro de sangue e pólvora.

A Academia com certeza era influente o bastante para nunca se preocupar em fazer trabalho sujo na vida, porém Sir Reginald Hargreeves ficava mais feliz (ele tinha emoções?) em vê-los sofrendo ao fazer a limpeza após alguma missão exaustiva.

Uma tarde comum para os seis prodígios era composta por missões seguidas de entrevistas e então o que apelidaram de “faxina”. Era um nome adequado, já que os irmãos sempre carregavam panos, vassouras e rodos.

E produtos de limpeza, claro.

Era estranho como bastava algo pequeno como uma garrafa quase vazia de água sanitária para trazer tantas lembranças a tona. Cinco só precisou respirar uma única vez o líquido acidentalmente derramado para que mil memórias de dias agitados surgissem.

Ele sentia falta de um mundo sem cheiro de morte, sujeira e poeira.

E água sanitária.

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Não importava quantos anos passassem, Cinco ainda lembrava dos irmãos nos momentos mais estranhos possíveis.

Bastava encontrar uma flor que persistia no novo clima terrestre para que ele lembrasse do perfume favorito de Alisson. Klaus o roubara tantas vezes que poderia facilmente ser lembrado pelo aroma, porém Cinco sempre o relacionava com cheiro de fumaça, algo sempre impregnado nas roupas do irmão idiota. Ele realmente achava que ninguém percebia o cheiro dos cigarros? Nunca soube que os irmãos o viam preparando quando comiam juntos?

Cinco riu por um instante ao lembrar que Klaus também cheirava a fumaça por conta da frequência que incendiara a própria cama.

Riu e caiu por ter se distraído.

Ele já era um homem barbado quando tropeçou e cortou a palma de uma das mãos na queda.

Ele costumava saltar sempre que se sentia perdendo o equilíbrio, teleportando-se para uma posição mais estável de forma natural. Não estava nos planos dele sair por aí machucando as próprias mãos.

Além disso, ser o único ser humano vivo do mundo te deixava de certa forma protegido. Porque, vamos combinar, não havendo mais ninguém ao redor para te ferir, todo dano só pode ser causado por você mesmo. Porém acidentes acontecem e não há muito o que alguns anos (ou décadas) de solidão possam impedir. É difícil não ser pelo menos um pouquinho desastrado.

Foi preciso somente um segundo após a queda para que Cinco sentisse o cheiro metálico do sangue originado do ferimento.

No próximo ele já podia se lembrar muito claramente de Ben… É, ele tinha esse cheiro mesmo.

Mesmo que ele já fosse uma estátua de bronze bem antes dos outros irmãos serem cadáveres, era especialmente difícil pensar no garoto e seu poder destrutivo. Meio que Cinco entendia ser amaldiçoado com alguma habilidade. Viagem no tempo que o diga!

Ben era o irmão que sabia mais formas de tirar sangue de roupas e superfícies em geral. Ninguém comentava esse conhecimento tão extenso, até porque todos os irmãos sabiam que o garoto sempre tão triste somava mais mortes do que todos eles juntos. Era impossível sentir o cheiro de sangue e não lembrar do garoto que tantas vezes aparecia completamente encharcado com a substância após desaparecer por alguns momentos.

Sir Reginald Hargreeves não se importava se Ben aparecesse em rede nacional em tal estado, só permitindo que ele mudasse de roupa na mansão.

Por isso, Cinco não lembrava um dia que se aproximou do irmão e não sentiu a fragrância características de destruição. "Horror" era um título apropriado.

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Cinco nunca confiou de verdade na Gestora, a existência dela era muito improvável para não se tratar de uma ameaça. De todos os sentidos que marcaram o primeiro contato com a estranha mulher, era estranho pensar que o olfato tenha sido o mais importante. De novo, a gestora não era confiável, porém no momento que ela se aproximou pela primeira vez ele soube que diante dele estava uma passagem irrecusável de volta para o passado e para a família que no presente só existia a sete palmos da terra.

Por baixo de um perfume amadeirado, intenso e obviamente caro, era possível encontrar o cheiro verdadeiro da pele da mulher. Este chegou em uma onda que deixou Cinco atordoado por um segundo. Era muito familiar para ser verdade.

Sangue. Pólvora. Violência. Destruição.

Lar doce lar.