A última voz humana que Número Cinco ouviu antes do mundo acabar foi a de Sir Reginald Hargreeves durante o café da manhã. Eles estavam brigando.

Okay, na verdade fora um segundo de conversa alheia que chegou aos ouvidos do garoto enquanto ele saltava pelo tempo. Algo sobre precisar comprar macarrão pro jantar.

Porém não é de se estranhar que a voz que ecoaria no cérebro dele por quarenta e cinco anos fosse a voz fria do homem que dificilmente poderia ser chamado de pai e não a que falava sobre alguma lista de compras qualquer. É ainda mais difícil de se esquecer uma voz que diz com todas as letras que você não está pronto para algo quando você fode lindamente sua vida e tem que admitir que a pessoa estava nada mais do que certa.

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Dolores não contribuía de forma alguma para diminuir o silêncio absoluto que cercava o planeta Terra.

Mesmo assim, Cinco a presenteou com uma voz em sua cabeça para os incansáveis diálogos que trocaram por tantas décadas juntos. Dolores tinha uma voz doce e suave. Algumas vezes o garoto lembrava da mãe, mas ela nunca realmente tivera qualquer emoção ao falar, robô demais para ter uma voz calorosa.

"Dolores". O nome, que significava "dores", surgiu com naturalidade na mente de Cinco assim que viu a manequim. Espanhol era uma das várias línguas que ele e seus irmãos dominavam, mesmo com tão pouca idade. Mas não é como se esse conhecimento fosse muito útil quando se é a única pessoa viva em um raio de 6371 quilômetros…

Cinco riu com a ironia e se assustou com o som. Era estranho ouvir a própria voz após dias só verbalizando choros, soluços e xingamentos para o vento. Era estranho ouvir qualquer voz e ponto.

O garoto testou a fala, as sílabas soando roucas pela falta de água.

—Do. Lo. Res. - ele pronunciou com cuidado, como se fosse algo precioso. E era.

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Cinco odiava música pop, mas era bom ouvir vozes humanas para variar.

Mas assim, se ele ouvisse mais uma vez uma voz aguda cantando sobre um macaco que dançava, Cinco não se importaria em matar a cantora. Mesmo que ela fosse a única outra pessoa viva.

Ele também ficou surpreso ao perceber o quão popular Queen parecia ser em 2019, ao julgar pela quantidade de CDs e pendrives (quanta tecnologia!) tocando músicas da banda nos carros que ele achava.

Infelizmente nada de estações de rádio funcionando.

Sir Reginald Hargreeves, chocando um total de zero pessoas, era muito controlador quanto as músicas ouvidas pela Academia. Clássica ou mais nada.

Ajudava a desenvolver a mente ou algo do gênero.

Cinco e todos os irmãos (menos Número Um, ele adorava dedurar quem quer que fosse se isso desse algum orgulho ao papai) aproveitaram as canções que Quatro tocava em seu pequeno rádio que ninguém questionava a origem. Era só escapar dos ouvidos do "pai" e de seu espião preferido que podiam se reunir em paz na meia hora semanal reservada para lazer.

Mesmo que saboreasse esses momentos de rebeldia, Cinco preferia a melodia intensa que só podia ser encontrada na música clássica. Principalmente se fosse originada do violino de Sete.

É, Cinco se arrependia de ter desistido tão rápido de aprender a tocar o instrumento. Aos 10 anos ele achou que era perda de tempo e, afinal, ele podia ouvir a irmã quando quisesse. Por que se dar ao trabalho?

Cinco trancou o arrependimento no fundo da mente. Realizar um conserto para o vazio não parecia tão interessante quanto caçar de carro em carro algum vestígio de humanidade.

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Perceber a própria voz mudando foi sem sombra de dúvidas a parte mais tranquila de passar pela puberdade em um mundo tão solitário.

Ainda assim, Cinco odiava ouvir os altos e baixos, os agudos e graves quando conversava com Dolores. A voz dela era sempre igual, por que a dele não podia ser também? Ele sempre odiou não ter controle de qualquer situação que fosse (oh, a ironia!) e a manequim não ajudava muito ao rir discretamente do desespero dele. Ela achava que ele não percebia?!

Diante de tal frustração, houve um longo período em que Cinco só falava quando Dolores o dirigia a palavra. E mesmo assim, normalmente ele tentava se manter o mais monossilábico possível.

Ele não gostava de admitir derrota (principalmente se o oponente podia ser encontrado no espelho), mas tanto silêncio era no mínimo insuportável. Afinal, se ele não produzisse sons, quem faria? Os incêndios pela cidade já tinham sido extintos há muitos meses, não existia mais o crepitar do fogo. Os poucos insetos restantes não eram tão irritantes quanto ele lembrava.

Após o pôr do Sol começavam as horas mais silenciosas do dia. Por ter um sono muito leve desde sempre, Cinco se acostumara a nunca dormir as oito horas ordenadas pelo pai. Sempre haveria barulhos demais numa mansão ocupada por mais seis adolescentes traumatizados. Ele nunca achou que sentiria falta de ser acordado de madrugada com os gritos de Ben ou Klaus (os que tinham as noites mais inquietas), mas era no mínimo estranho dormir sem qualquer barulho além da própria respiração.

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Às vezes Cinco tinha certeza que conseguia ouvir o próprio coração, ou até o percurso do sangue nas veias. O primeiro caso até podia ser verdade, o segundo nem tanto. Porém o garoto não questionava mais muitas coisas. Ninguém responderia mesmo.

Sempre que pensava ouvir algo do gênero, Cinco decidia explorar alguma rua nova (talvez não tão nova), deleitando-se com o som da antiga carriola que encontrara em seus primeiros dias sozinho. Uma das rodas não girava tão suavemente quanto as outras, sempre fazendo com que um chiado irritante ecoasse nas cidades abandonadas em que passava.

Cinco gostava do som repetitivo e agudo, era agradável não precisar ouvir os próprios pensamentos por alguns instantes.

O homem (já não era garoto há algumas décadas) não ficava feliz em admitir, mas a Gestora o encontrou em um desses momentos que ele se permitia ouvir a própria mente.

Ele quase não escutou os passos dela. Quase.

Era difícil para o cérebro de Cinco processar o som de passos humanos (muito mais pesados do que os dos ratos restantes), mas ele teve uma infância inteira aprendendo a nunca abaixar a guarda em absolutamente nenhum cenário (por isso ele sempre carregava pelo menos uma arma bem carregada) para se deixar levar pelo susto.

De todos os momentos nas últimas décadas que o homem questionou a própria sanidade (ele passava seus dias falando com um objeto inanimado, afinal), ouvir a voz da Gestora foi com certeza o mais crítico.

Como assim ele não estava ouvindo coisas?