Acordar e a primeira coisa a ver ser o rosto da pessoa que você ama não tem explicação. Sorrio involuntariamente ao fitar sua face passiva e desarmada, respiração calma, peito que sobe e desce numa calmaria descomunal.

Aproximei meu corpo do seu para sentir seu calor, para senti-lo. Dormia calmo e sereno, tão belo, tão meu. Pensei que nunca mais presenciaria essa cena, que viveria isso, que estaria mais uma manhã, mais um dia ao seu lado.

Levantei calma e silenciosa, coloquei uma blusa de Jake e saí me espreguiçando pelo corredor amplo. Na cozinha tomei um copo d'água e voltei para o andar de cima ainda sonolenta. Ao voltar para o quarto Jake ainda dormia, sorri ao contemplá-lo dormindo de peito pra cima.

Mirei a porta de vidro que dava para uma varanda, a abri fazendo o menor barulho possível. Logo a brisa da manhã entrava esfriando meu corpo. Andei até o deck de madeira, observei os pinheiros extensos, a trilha que dava a mata fechada onde se encontraria lenha para a época fria, daqui meses tudo estaria repleto de neve.

Respirei fundo tentando esquecer meus problemas, porém já sentia-me mais leve pois havia contado a Jake tudo que passei, tudo que vivi, cada detalhe de James, cada maldade sua, o quão má eu fui para minha família, como os dei as costas e agora pago por isso.

— Tudo era bom no começo, então o sonho começou a tomar forma de pesadelo. James sempre foi assim, mas eu era cega, estava… apaixonada. Por isso não me dava conta de suas maldades, muitas direcionadas a mim, porém quando ele obteve o poder… daí tudo mudou… para pior.

Foi difícil contar a Jake cada detalhe sórdido mas era necessário, segredos nunca mais, mentiras nunca mais. Preciso viver em harmonia comigo, matar meus demônios… literalmente.

— Venha aqui, Liz. Quero lhe mostrar algo.

Andei até Jake curiosa. Passou um dos braços por sobre meus ombros e guiou-me pelo corredor de chão amadeirado muito bem encerado.

— O que é? – indaguei interessada.

— Você verá.

Paramos em frente a uma porta marrom, como todas as outras ali. Jake a destrancou e uma escada enorme aparece, deduzi ser o porão.

— Vamos nos esconder aí? – brinquei.

Ele riu acedendo a luz e iluminando o caminho amedrontador.

— Não pensei nisso, seria boa ideia.

Rimos juntos e descemos as sacadas que rangiam a cada passo dado.

O local era bem-arrumado, armários, móveis velhos, artigos antigos, caixas e caixas empilhadas porém bem organizadas.

Havia duas pequenas e retangulares janelinhas, a luz da manhã por ali entrava e partículas de pó eram vistas sobrevoando o recinto.

— Nossa, quanta coisa – exclamei aproximando-me de uma bicicleta antiquíssima.

— Deveria ter me desfeito dessas coisas há muito tempo.

— Sei como é, são lembranças demais para simplesmente jogar fora.

Virei-me para fitá-lo, tinha um pequeno molho de chaves em mãos.

— Essa casa era de meu pai, morou aqui, praticamente construiu o lugar. Não é tão fácil assim jogar tudo fora.

Aproximei-me dele, toquei seus braços.

— Sente muito a falta dele, não é?

— Sim. Já faz tanto tempo desde sua morte, porém o tenho vivo em meus pensamentos.

— Minha mãe também faleceu a algum tempo, eu lhe disse, porém omiti a parte que não fui a seu velório, muito menos tinha contato com ela na época. James; ele afastou-me de tudo, fez com que odiasse meus pais. Não nego, eu fui má, deixei que ele me manipulasse.

— Sinto muito por isso, mas já foi, não é mesmo?

Assenti cabisbaixa.

— Pelo menos você esteve com seu pai na morte dele, já eu…

— Foi difícil, porém temos de seguir em frente – o homem me afagava os braços – Mas e seu pai? Está bem?

Suspirei.

— Está, eu acho. Há tempos que não temos contato, casou-se de novo, teve filhos. Nunca conheci meus irmãos.

Tentei segurar as estúpidas lágrimas que transbordavam meus olhos, duas simultâneas lágrimas rolaram. Sentia-me a pessoa mais imprestável do mundo.

— Não chore, ainda dá tempo de reverter isso – falou afastando minhas lágrimas.

Assenti sem ânimo.

— Sim, quem sabe. Mas para o que trouxe-me aqui? – indaguei recompondo-me – Para chorar, por acaso?

Rimos.

— Queria te mostrar isso.

Virou-se na direção de um armário médio embutido na parede subterrânea.

— O que há aí? – perguntei ao seu lado.

Jake destrancou as três fechaduras que ali continham, abriu as duas portas simultaneamente. Ao encarar o conteúdo ali contido dei dois passos pra trás.

— Eu sei que você não gosta de armas, me disse uma vez, por isso não te mostrei antes – proferiu ele fitando-me de cenho apreensivo.

Encarei-o surpresa e depois as armas dentro do armário, bem-arrumadas e brilhosas. Não conhecia bem de armamentos, mas pude ver que eram de caça. Vários apetrechos jaziam ali, como lanternas, lunetas, facas.

— Eu não gosto. Não na mão de pessoas erradas.

— São minhas e legais, nenhuma delas é ilegal. Todas estão em meu nome, algumas herdei de meu pai. Costumávamos caçar, ele quem me passou esse gosto.

Encarei os itens do armário novamente e acalmei-me, aproximei-me.

— Poderia ter me dito antes… bom, sobre isso – apontei na direção do armário.

— Não queria afastá-la. São todas para caça, menos o revólver automático – pegou a arma e fitei a cena estática – Fiz aula de tiro, mas devo estar bem enferrujado, há tempos não caço.

Assenti e toquei-lhe a mão pedindo que guardasse o revólver.

— Por que isso agora? Sobre as armas…

— Achei que poderíamos nos prevenir.

Sim, não era lá uma má ideia.

— Seria bom – disse por fim.

Jake assentiu pegando de volta o metal frio lapidado, recarregou e colocou no cós da calça. Nunca pensei em presenciar essa cena em toda minha vida, Jake e uma arma. Porém sentia-me segura com ele e esse objeto. Nunca temeria por ele fazer algo, como num momento de raiva apontar-me o revólver como muitas vezes vivi com James.

O bronzeado tinha uma Desert Eagle dourada com seu nome cravado, andava com aquilo pra cima e pra baixo, sempre a alisando, acho que dava mais valor a pistola semi automática que eu, sua mera esposa.

Várias vezes já havia sentido o ouro frio em minha pele, adorava colocá-la em minha mandíbula, botar-me medo, me amedrontar, ameaçar e assim ter-me de joelhos.

Balancei a cabeça afastando tais pensamentos.

— Vamos ficar bem – falou Jake tentando me confortar – Agora temos de ir a delegacia.

— Sim, ficaremos bem.

Meu amor beijou-me e por um segundo esqueci todo mal que me espera.

James

Talvez agora tenha a perdido de vez, não digo seu corpo, mas sim seu sentimento. Senti o amor de minha esposa escorrer por meus dedos como sangue quente, a senti desvair e morrer em meus braços.

O que eu fiz? Será que amá-la não foi o suficiente? O que a maldita quer de mim? Minha alma? Quer-me morto? Rastejando? Desgraçada.

A vontade que tenho é de segurar forte em seu alvo pescoço, apertá-lo com força até seus olhos lacrimejarem e quase poder ver sua alma sair de seu belo corpo. Quero vê-la implorando, quero vê-la caída, minha bonequinha de porcelana.

Também quero amá-la, tê-la ao meu lado, quero que me retribua como um dia fez tão arduamente. Me amava, me adorava com um deus, se deliciava em meu corpo, em meus beijos, dançava e se esfregava em mim. Tudo se perdeu.

Ninguém tem o direito de fazer isso a não ser eu, apenas eu posso tocá-la! Se Elizabeth acha que vou deixar barato, ela se enganou mais uma vez. Vou matar seu amante, matá-lo na sua frente como prova de meu amor e autoridade.

Mais uma vez o destino tenta contra nós e a tira de mim. Sei que seria mais fácil apenas fugir e deixá-la, mas não posso, não posso. Ela é minha e precisa saber disso, precisa entender novamente que é apenas minha.

Como tenho vontade de esganá-la, meus dedos fecham-se em forma de punho só de pensar na hipótese de vê-la novamente. Deus sabe o quanto a amo e o quanto isso me mata. Elizabeth pede por isso, pede pelo mau e sinto que mereço dar a ela o que pede.

Lhe darei um tempo querida, Lizzy, a darei tempo de conforto, porém quando eu chegar espero que esteja pronta para receber-me pois entrarei como uma bola de demolição.

— Como pôde deixar-me pra trás? Como?

Indago-me enquanto lágrimas em forma de ácido saem de meus olhos. Necessito dessa mulher que me mata a cada segundo, a cada pensamento. Tenho de matá-la e parar com isso.

Ajoelho-me no chão ao lado da cama, tiro minha arma e coloco-a sobre o colchão. Ponho meu terço para fora da camisa e ali rezo para que Deus abençoe meu caminho até Elizabeth. Depois de pedir a bênção sento-me na cama de solteiro, tiro do bolso a foto dela. Tão bela, tão ingênua, cabelos cor de cobre, de volta a Los Angeles era a mais bela, tão minha. Ainda minha, minha esposa.

Apoio os cotovelos no joelho e fito a foto pesaroso.

— Sempre te amarei, meu amor. Até mesmo depois de sua morte ainda a amarei.