Abro meus olhos devagar, mas logo os fecho por conta da claridade que entrava pelas portas de vidro da sacada, esqueci-me de fechar as cortinas ontem à noite.

Comprimo meus olhos e deixo aquele segundo de paz quando acordamos sumir. Fico a encarar fixamente o teto branco sobre minha pessoa. Sozinha, solitária, esquecida, perdida, amedrontada. Tudo isso me define.

Levanto-me precariamente, vou até o banheiro, tomo meu banho e lá choro pela milionésima vez no mês ou na semana, não sei. Parei de contar meus choros. Estúpida!

Me visto lentamente, um vestido de verão qualquer. Antes de sair do quarto, encaro-me no espelho.

Eu posso mentir, sem problema. Penso encarando meu belo reflexo. Preciso de alguém para me segurar. Suspiro e desço as escadas de modo lerdo.

É difícil dar-se conta de que está sozinha, mesmo tendo pessoas ao seu redor. O que adianta tê-los tão perto se não sabem o que se passa em minha mente? Necessito de alguém que me segure. Necessito…

Ando descalça pela casa e me vejo perambulando pela cozinha. Sinto que algo me observa, paro estática ao observar um ser. Um gato!

— Como entrou aqui? – pergunto como se ele fosse me entender e responder.

Ele nada faz, fica a encarar-me com seus olhos verdes cianos. Sentadinho ali, embaixo da mesa. Olho para porta que dá para o quintal dos fundos, avisto a porta para o cachorro que nós tínhamos na época. Havia uma grade nela, qual tirei ontem.

— Hum, espertinho! – digo de olhos semicerrados.

O laranjadinho ainda me encarava em silêncio. Procurei algum sinal de coleira, nada. Dei de ombros.

— Bom, você pode ficar se quiser. Estou sozinha mesmo… Bem, não que você vá ser de muita ajuda, já que só fica aí, me olhando calado.

Olhe a que ponto cheguei! Falando com um gato! Meneei a cabeça e fui até a geladeira. Abri e peguei a garrafa de leite e o requeijão. Coloquei-os sobre o balcão de madeira, abri a porta do balcão e peguei o pão fatiado.

Passava o requeijão no pão, quando o gato pula no balcão e fica a me encarar. Ele solta um “miau”.

— Ah, agora fala comigo – brinco e ele mia de novo – Ok, já entendi, está com fome.

Sei que é errado dar comida para animais, mas não o nego um pedaço de pão com requeijão, qual o bichano praticamente engole. Logo vejo que é um gato de rua, sem dono. O pequeno está franzino, as costelinhas quase pressionadas contra a pele, o pelo está ralo e com pequenas falhas.

— Olha, se você prometer ficar comigo, hoje mesmo te compro ração.

Ele lambe a boca e bigodes com a língua comprida. Desce do balcão num impulso e se enrosca em minhas pernas ronronando. O jogo outro pedaço de pão, enquanto como uma fatia.

Com esse pequeno animal se esfregando em minhas pernas, sinto-me melhor, menos sozinha. Será algo maior mandando-me um sinal? Sinto-me melhor com esse ser irracional e cheio de afeto.

Sorrio ao encará-lo.

— Preciso lhe arranjar um nome.

Agacho-me e arrisco uma passada de mão em suas costas magras. O bichano não me nega e levanta o rabo. Um miado é solto, deve estar esfomeado.

Pronto, estou menos só. Agora apenas preciso que nem mesmo este pequeno animal deixe-me. Meneio a cabeça e o jogo um pedaço de pão.

Logo a apreensão se choca contra meu corpo, lembro-me que hoje farei o teste para o meu possível futuro trabalho. Necessito desse emprego e darei meu melhor para consegui-lo. Tudo que preciso no momento é um recomeço.

Chego no horário marcado, o local está vazio e os fracos raios de sol ainda estão acima de mim. Saio do carro e ando até o Bar. Adentro o lugar e sou saldada por Wendy.

— Lizzy! – a garota corre até minha pessoa e me abraça.

— Oi, tudo bem?

Ela assente sorrindo e me puxa para os fundos do recinto.

— Sim, tudo ótimo. Estou feliz em saber que vai trabalhar aqui.

Dei de ombros.

— Ainda não sei se vou. Estou aqui para um teste, esqueceu?

A baixinha me sorri.

— Não se preocupe quanto a isso. Você se sairá bem – adentramos a cozinha do local – Jake pediu para que eu a apresentasse ao pessoal.

Depois de uma rápida apresentação a quatro funcionários, Wendy indagou:

— Cadê o Archy?

— Não sei, estava aqui antes de vocês chegarem – respondeu Selina, uma das garçonetes.

A baixinha deu de ombros.

— Entendi. Venha Lizzy, vou lhe mostrar o que deve fazer.

Voltamos para o bar e Wendy ensinou-me tudo. Desde como abordar os clientes ou se livrar deles.

— Sempre haverão os mais abusadinhos – explicou-me ela.

Entregou-me um bloquinho e uma caneta.

— E minha roupa? Está boa?

Eu vestia uma calça jeans, blusa de alças branca e sapatilhas. Não sabia muito bem o que vestir, optei pelo básico. A maquiagem também, apenas base e cílios postiços pequenos.

— Sim, está ótima.

Somos interrompidas com o som da porta sendo aberta, viro-me para encarar quem entrava. Vejo um garoto alto, de cabelos extremamente ruivos, olhos escuros e perdidos. Tinha um cigarro entre os dados magros, sugou o cigarro e soltou a fumaça levemente. Seu olhar era firme em mim.

—Archy, quantas vezes já disse? Não pode fumar aqui dentro – exclamou Wendy com as mãos na cintura.

O ruivo não se abalou, andou até o balcão das bebidas e pôs-se atrás do mesmo.

— Você é a única reclamando aqui – ele olhou pra mim e depois pra Wendy. Eu quis rir.

A castanha virou os olhos.

— Apague isso, Archy.

O garoto mesmo contra vontade o fez. Depois se apoiou no balcão com os cotovelos e sorriu pra mim.

— Trouxe uma amiga hoje, Wendy?

— Não, Archy. – ela respondeu – Essa é Lizzy. Fará um teste para trabalhar aqui e bom, esse é o Archy, nosso bartender, como já pôde perceber.

O ruivo estendeu-me a mão, aceitei sua saudação.

— Muito prazer – falei.

Ele assentiu com a cabeça.

— Nova na cidade? – indagou-me o rapaz.

Olhei pra cima pensando e sorri.

— Mais ou menos.

Wendy! – escutamos alguém gritar dos fundos do bar.

A garota nos disse um “já volto” e sumiu.

— Mas e aí, aceita um drink pra começar bem? – pergunta Archy sorrindo malicioso.

O ruivo tinha cara de quem aprontava todas por aí. Camiseta azul-escura larga, calças pretas na mesma medida de largura, tênis perfeitamente brancos, apenas lhe faltava o baseado entre os dedos.

Sento-me na cadeira alta do balcão e nego.

— Melhor não – falo sorrindo.

— Já quer embebedar minha futura funcionária?

Meu coração dispara ao ver e ouvir a voz de Jake. Seguro um sorriso bobo, não quero que ele apareça. Mas de onde que Jake apareceu? Talvez tenha entrado pela porta dos fundos.

— Claro que não, patrão – brinca Archy – Apenas queria deixá-la mais à vontade.

Algo impossível com Jake agora ao meu lado, penso enquanto sinto o perfume dele chegar em minhas narinas. Mordo meu lábio inferior.

Ouço um riso vindo de Jake, viro-me para encarar a cena. Bem que ele poderia sorrir mais vezes e mostrar aquela covinha que tem no lado direito do rosto.

— E você, Lizzy? Pronta?

Pergunta próximo a mim, uma de suas mãos chega a meu ombro, seguro-me para não colocar minha mão sobre a dele. Por que ele tem de ser tão lindo?

— S-sim, estou.

E a noite caiu, os clientes chegam, o recinto encheu. A movimentação era grande, mas eu estava dando conta do trabalho. Anotava os pedidos, corria entregá-los no balcão da cozinha e voltava novamente para atender mais pedidos, depois voltava para verificar o andamento dos pedidos e levá-los até a mesa.

Estava me saindo bem. Não parava um segundo e o sorriso não me saía dos lábios. Estava dando o meu máximo, algo me impulsionava a conseguir esse trabalho.

Eu não havia mais visto Jake, porém sabia que ele me vigiava de algum lugar, eu podia sentir. Tratei de espantar esse pensamento, pois se me fixasse nisso, faria de tudo uma calamidade.

Andei até uma mesa de clientes recém-chegados.

— Olá – sorri para as duas pessoas na mesa de canto – O que desejam?

— Duas cervejas Heinekein.

— Algo mais?

Os dois homens na mesa negaram. Os sorri e fui até o balcão de bebidas, que já estava lotado. Peguei dois copos de 600ml e fui até as várias torneiras de chopp fixadas na parede. Procurei pelo nome Heinekein e despejei o líquido gelado nos dois copos.

Virei-me e avistei o local cheio. Archy estava ali, com sua comum flanela no ombro servindo osbebuns de plantão. Uma música local tocava, o ambiente cheio e sorridente fez-me sentir bem.

Saí de trás do balcão, movia-me depressa na muvuca que estava, porém algo péssimo acontece. Não sei da onde uma moça aparece e me esbarra. Seu corpo se choca com a frente do meu, logo onde minhas duas mãos estavam segurando os copos.

O impacto fez com que o líquido amarelado caísse em seu belo decote, sua camisa se encharca e a loira solta um grito, que faz todo o lugar parar pra ver a cena.

No primeiro instante fiquei sem reação alguma, depois comecei a pedi-la desculpas.

— Moça, me desculpe, me perdoe. Droga… eu… desculpe.

Tudo que se passava em minha mente era: “Fodeu, Lizzy. Já era!”

Do nada Jake aparece e me avista ali, pasma com a loira fazendo um escândalo.

— Você é louca, garota? – ela toca sua blusa molhada – Olhe o que fez! É cega por acaso?

Ela avista Jake ao seu lado e aí sim que pira totalmente.

— Rachel, o que… – ele tenta falar, mas é interrompido por ela.

— Essa sua… – aponta pra mim – garçonete me lambuzou de cerveja. Olhe, estou imunda, fedendo a bebida. Como contrata uma negligente dessa?

Minha boca se abria e fechava. Mas que merda estava acontecendo? Minha vontade era de estapeá-la, mas não fiz isso porque necessitava desse emprego, mesmo agora, tendo mínimas chances de tê-lo.

— Eu não tive a intenção. Essas coisas acontecem, me desculpe – digo nervosa.

Meu olhar encontrava o de Jake e depois o da loira.

— Não vai fazer nada, Jake? – indaga ela de maneira indignada. Estávamos causando uma cena – Demita essa desastrada.

— Mas eu não… – tento falar.

— Venha, Rachel. Vamos até meu escritório, vou te arrumar uma blusa.

Ele a segurou pelo braço.

— Amor… olhe o que ela fez comigo.

Amor? Amor? Como assim amor?

— Depois eu converso com Elizabeth sobre isso, Rachel. Vamos.

Ela se dá por vencida e deixa Jake guiá-la, não antes de me jogar uma encarada. E lá vai ela com seu traseiro redondo naquele jeans apertado e saltos pretos, no encalço do homem.

Franzo o cenho e sinto meu coração disparado contra minha blusa. Caramba, que maldita. Com certeza perdi a merda desse emprego. A vadia deve ser a namorada de Jake. Engano meu achar que ele, um homem daquele, estaria sozinho.

— Lizzy? – olho pro lado e vejo Wendy – Venha, vamos encher esses copos novamente.

Dou o último sorriso da noite e solto um suspiro. Sento-me exausta no alto banco do balcão, onde Archy passa uma flanela desbotada. O local já havia fechado.

— Noite difícil? – brinca ele.

Rio e apoio meu cotovelo no balcão amadeirado.

— Nem te conto – suspiro desolada.

— Vejo que conheceu Rachel, quero dizer, todos hoje no bar viram.

Assenti cansada.

— E de um jeito nada bom – apoio meu rosto na mão – Acho que perdi o emprego.

O garoto fica na minha direção e sorri de canto.

— Já eu acho que não.

Dei de ombros.

— A esperança é a última que morre, não é mesmo? – ele assente sorrindo – Até porque preciso desesperadamente desse emprego.

O garoto pega a flanela e põe sobre o ombro direito.

— Estou torcendo por você.

Sorri e endireitei-me.

— Obrigada.

— Lizzy? – ouço a voz de Jake, logo levanto-me ao avistá-lo – Venha.

Ele me guia até uma sala, qual parece ser um escritório improvisado. Uma pequena mesa e cadeira, papéis por toda mesa. Dois armários de aço, carpete marrom no chão e uma janela baixa com persianas.

Jake senta-se na beirada da mesa e cruza os braços. Engulo em seco e sorrio desconcertada. Tomara que ele me demita numa boa por ter encharcado sua namorada de cerveja.

— Você foi muito bem hoje.

— Tirando o que aconteceu…

Ele sorriu meneando cabeça.

— Espero que tenha mais cuidado da próxima vez que levar copos com cerveja, certo?

Minhas sobrancelhas se juntaram, não contive um sorriso.

— Como assim? – disse dando um passo mais perto.

— Está contratada.

Sorrio e não contendo minha alegria, vou até Jake e o abraço pelo pescoço.

— Ah, obrigada. Obrigada mesmo! – digo agarrada a seu pescoço.

Sorrio de maneira afobada, pois estava desacreditada. Acreditei que Jake ficaria do lado de sua loira bronzeada, mas não, ele deu-me uma chance.

Senti seu braço encontrar minhas costas e nesse momento percebi o erro contido nessa minha atitude impensada de abraçá-lo. No momento que ia desfazer-me do aperto, a aporta é aberta. Nós dois nos apartamos rápido. Encaro uma Wendy de cenho franzido.

— Esqueceu de bater na porta, Wendy? – pergunta Jake um tanto desconcertado.

Não estávamos fazendo exatamente nada de errado, mas as circunstâncias foram esquisitas.

— Érr… – sibila Wendy.

Sorrio ao encarar a cena.

— Estava agradecendo Jake por ter me contratado.

Um sorriso se abre no rosto da garota.

— Oh, isso é ótimo!

— Mas enfim, preciso ir – digo aos dois, ando até a porta – Até amanhã, Jake – o sorrio e movimento-me para fora dali com o coração a mil.

Escuto passos atrás de mim.

— Não pense que vai fugir de mim assim, não, garota!

Rolo os olhos e viro-me para encarar a baixinha.

— Diga-me, está rolando algo – ela gesticula exageradamente no ar – entre você e Jake?

Faço um movimento negativo com a cabeça.

— Quem me dera que estivesse, Andy – encaro os olhos castanhos da garota – Quem me dera…