O filme já estava quase na metade, a sala numa penumbra incomum, apenas a luz azulada do aparelho televisivo clareava precariamente o recinto.

— Jake!? – chamei novamente por ele.

Nenhuma resposta. Franzi o cenho estranhando, não era a primeira vez que o chamava. O moço sumiu na grande casa, saiu com uma desculpa de um rápido banho.

Virei os olhos e suspirei. Tirei o pacote de batata chips de meu colo e decidi ir atrás dele. Assistir filmes sozinha eram um saco, ainda mais a esse de terror.

Levantei-me ajeitando meu curto shorts de pano. Adentrei o escuro corredor dos quartos. Desde quando esse corredor se tornou tão sombrio?

— Jake, aonde você tá? Não brinque comigo.

Passei silenciosa pelas portas fechadas, a única aberta era a de seu quarto. Mordi meu lábio inferior e senti uma leve brisa vindo não sei de onde.

Comecei a sentir um tremor, uma apreensão, a porta aberta trazia a luz do luar consigo, a pálida luz.

Dei exatamente onze passos e cheguei à porta. Antes de encarar seu interior, coloquei a mão na batente amadeirada. Fechei os olhos e entrei no recinto.

Ao abrir os olhos encontrei o lugar vazio. Franzi o cenho em descontentamento, mas que merda… Porém a minha direita, a luz que vinha debaixo da porta do banheiro chamou-me a atenção. O que estaria ele a aprontar todo esse tempo ali?

Caminhei até a porta, coloquei a mão na maçaneta fria.

— Jake?

Dei duas batidas na porta, porém nada foi respondido, apenas mais silêncio.

Dando de ombros girei a maçaneta e lentamente abri a porta. Ao levantar meus olhos para o recinto, meu corpo pareceu petrificar para depois se esquentar em lavas.

Coloquei as duas mãos na boca, minhas pernas tremularam, senti que poderia desabar, mas desmaiar e bater a cabeça no chão não era uma alternativa.

— O-o que… – soltei um arfar sôfrego de medo – Jake… meu amor…

Ele estava no box, o corpo inerte no chão, parte das costas encostada na parede, como se tivesse se escorado até sua atual posição. O sangue na parede era horrendo, aonde suas costas pareceram ter escorregado, o sangue no seu peito, nos braços, no chão…

Corri até seu corpo ensanguentado, estava nu, o corpo molhado. Segurei seu rosto entre minhas mãos, comecei a chorar.

— Jake… Meu Deus! Quem fez isso?

Ele precariamente abriu os olhos. O meu desespero aumentou na mesma medida que se aliviou. Os olhos azuis sem vida, sem nada… Tudo minha culpa!

— O que aconteceu, Jake? Vou chamar a ambulância.

Incrivelmente sua mão me segurou, como se me impedisse de sair dali. De perto de seu corpo, do cheiro de cobre. Minhas mãos e roupas imundas de sangue. O chuveiro desligado pingava algumas gotas em minhas costas.

Eu não entendia de onde vinha o sangue, mas tinha muito e não parava de aparecer mais. Jake abriu a boca pra falar, pareceu repentinamente assustado, nenhum som foi emitido. Os dentes brancos estavam repletos de sangue.

Segurei seu rosto e o beijei os lábios num falso acalento, pois sentia a vida dele se desvair. Seus olhos levemente fecharam e o corpo relaxou.

— Não… – murmurei – Não! – o balancei – Jake!

Sua cabeça pendeu inerte com o meu balanço. Caí em prantos, sentia minha alma apodrecer. Segurei seu corpo ainda morno em meus braços, minhas lágrimas pingavam em Jake, eu o segurava com força descomunal.

Em meio meu pranto, ouvi um riso, um riso que sabia muito bem a quem pertencia. Virei minha cabeça assustada para a porta, lá estava ele, rindo.

— Que linda cena! – bateu uma falsa palma, vi em uma de suas mãos a faca coberta em vermelho – Me tocou, sério mesmo! – ele sorria amplamente – Se fosse um filme, deveria ganhar o Oscar, sem dúvidas.

Aproximou-se em passos lentos, o sorriso de tubarão na boca, logo vi o dente de ouro em seu canino direito, a faca dançando nos dedos longos. Num ato de proteção agarrei-me ao corpo de Jake.

— Você sabe querida, Lizzy – agachou-se a meu lado, seu olhar intimidador em mim – Qualquer coisa que você toca, você destrói. Menos eu, por isso sou perfeito pra você, sou inquebrável… – puxou-me rudemente pelos cabelos soltei um grito de dor – Mas você se mostrou uma bela putinha, não foi?

Levou-me em direção ao seu rosto, sua mão firme em meu couro cabeludo.

— Diga alguma coisa! Vamos!

Te odeio, seu desgraçado!

Ele riu e me beijou, virei o rosto, feito isso levei um tapa e fui jogada pra dentro do box, ao lado de Jake… morto.

— Eu te dei tudo e é assim que me agradece? Fugindo de mim? Se enroscando nos braços de um caipira? – ele meneia a cabeça como se eu fosse a errada – Isso não foi certo. Será que você esqueceu que é casada? Casada comigo! Esqueceu do “felizes para sempre”?

Meu peito subia e descia, mas eu não sentia medo. O que mais me importava já havia sido arrancado e estava aqui, de meu lado, sem vida.

James deu um suspiro cansado e jogou a faca aos meus pés, encolhi-me ainda mais. Ele lançou-me um sorriso amedrontador e tirou uma pistola cromada do cós da calça. Sentia meu coração palpitar rápido.

— Esqueceu do “até que a morte nos separe”?

Abri a boca pra xingá-lo, porém preferi não fazê-lo, estava tudo perdido mesmo.

— Faça logo! – exclamei – Me mate!

Ele soltou um riso anasalado e me apontou a arma. Procurei pela mão, agora, gelada de Jake, segurei-a e encarei o cano metálico da arma, depois fixei meu olhar nos olhos castanhos do homem que tanto odeio.

Vou te achar, Elizabeth – disse em meio a um sorriso.

O disparo foi feito e meu olhos se abriram desesperados. Solto o ar de meus pulmões e dou-me conta de que foi um pesadelo.

Viro meu rosto pro lado e observo Jake dormindo calmamente na cama. Assim relaxo meus músculos e aproximo-me do corpo ao meu lado. Passo meu braço sobre seu peito e apoio minha cabeça em seu ombro, inconscientemente ele se ajeita a mim.

Umedeço meus lábios e fecho os olhos com força. Foi tão real! Seguro as lágrimas e tento lidar com minha situação atual.

Não duvido das loucuras de James, não quero nem pensar no que acontecerá se ele me achar, um arrepio me percorre o corpo apenas com tal hipótese. Uma hipótese bem realista, não tão impossível.

Aperto mais meu amado a meu lado, o aperto contra mim e inspiro seu cheiro, isso me acalma. Jake me tira os problemas momentaneamente, na verdade, faz-me viver uma bela farsa. Devo ser a mulher mais desprezível de todo Nebraska por tal atitude.

Fecho meus olhos e James me vem a mente. “Vou te achar, Elizabeth”. Me parecia tão real, até mesmo o cheiro de perfume caro e tabaco que vinha dele eu puder sentir. A jaqueta de couro quente, a calça jeans larga que depois passaram a ser ternos impecavelmente brancos ou azuis anis.

Está sendo difícil de viver, sinto que devo continuar meu caminho, ir embora daqui, deixar tudo, partir para outro lugar. Mas como poderei? Estou enlaçada a Jake, estou literalmente fodida! Que Deus tenha piedade de mim e minha alma, que me perdoe por ser assim e por ter escolhido tal caminho.

Estou ciente de estar pondo Jake em risco. Caramba, eu penso nisso toda hora! James é louco pra caralho. Uma hora dessas ele deve estar louco atrás de mim, um cachorro louco, espumando pela boca.

Quase posso vê-lo segurando a arma numa mão, minha foto em outra, a bíblia sobre a mesa, ele fazendo uma oração em espanhol, está a pedir para Deus que me ache e possa me matar… lento e dolorosamente.

Antes de adormecer faço uma prece e ao fechar de meus olhos tenho outro pesadelo com James.

Lia um livro calmamente em meu sofá, Floyd deitado em meus pés, o ronronar do bichano era o único som no recinto. Estava quase terminando de ler o último parágrafo quando o telefone toca, levo um leve susto mas logo penso que possa ser Jake.

Levanto depressa e pego o aparelho branco de fio.

— Oi – digo animada já esperando ouvir a voz de meu amor.

Porém, nada vem.

— Alô? – apenas o vazio, mas a linha estava ativa – Quem é? Alô?

Ouço um suspiro e sinto um medo de tomar o corpo. Coloco o telefone novamente no gancho e fico a encará-lo de olhos bem abertos. Ponho a mão em meu coração, o sinto acelerado. Coloco a mão sobre a boca.

Deus, estou ficando louca! Foi engano! Apenas isso! Não… não foi apenas isso. A pessoa estava ouvindo-me e não falava de propósito. Um nome piscava em minha mente: James.

Me afastei do telefone, sentia medo, sentia-me desprotegida. E se fosse realmente ele? Testando-me? Botando-me medo? Ele adorava esses tipos de joguinhos. Ele adora esses jogos! Adora ver-me com medo.

As orelhinhas de meu gato estavam em pé, parecia preocupado comigo. Engoli a saliva de minha boca com força e sentei-me de pernas moles no sofá.

Ainda posso lembrar-me claramente o quão mau James podia ser.

— Foi esse, Elizabeth? Me diga! Foi esse, não foi?

James gritava enquanto dois de seus homens seguravam Niko, um de seus capangas também. Niko esteve a tentar algo comigo, encurralou-me no corredor um dia atrás, disse-me que poderia dar-me o que eu tinha em desfalque. Tocou-me de modo estúpido. Contei o ocorrido a James, apenas esperava que ele o repreendesse.

— Diga – James veio até mim, parada no outro lado do amplo escritório – Ele te tocou? Fale o que me disse hoje mais cedo.

Niko me implorava com os olhos.

— James, não é necessário, foi um mal-entendido.

O bronzeado deu uma gargalhada falsa e o dente dourado apareceu.

— Ele te tocou! Tentou ter você e meu amor… – ele segurou meu rosto pelo queixo – ninguém te tem além de mim – beijou-me rápido nos lábios.

— Ele sabe disso, querido… – tentei falar.

James me calou com um aceno de mão e voltou para perto de Niko. Meu marido tirou um canivete dourado do bolso, o montou e o ouro reluziu junto da lâmina.

— Qual mão a tocou mais? – James me olhou e como não respondi, pois estava assustada, ele fez um sinal para seus homens – A esquerda, amor? Tudo bem! A esquerda.

Os homens forçaram a mão de Niko na mesa de madeira e num segundo James decepou dois dedos da mão do homem. Soltei um grito que ecoou pelo recinto, Niko gritava junto, um grito de dor. Seu sangue corria livremente pelo chão.

— Nenhum homem a não ser eu – apontou para si mesmo – toca na minha mulher, seu bastardo!

Limpou o sangue do canivete num lenço que tirou do bolso da calça impecavelmente branca. Deu um suspiro cansado, como se isso fosse corriqueiro.

— Jim… isso… Deus do céu! Niko, eu…

Encarava horrorizada os dedos de Niko jogados no chão, o homem ainda se contorcia. James se aproximou e me beijou.

— É pra você aprender minha, Beladona – acariciou meu rosto com a mão que à instantes decepou os dedos de outro – que você é só minha. Ninguém a toca, a não ser eu.

Beijou-me novamente, mas estava torpe demais para corresponder.

— Te amo, meu amor – disse-me sorrindo – Mas agora arrumem essa merda e você Niko, dê-se com sorte, deveria ser sua cabeça a ser cortada.

Depois desse dia as coisas apenas tenderam a piorar, tudo era motivo para James aniquilar algo. Se eu tinha medo de James, piorou. Pisava em cacos de vidro todo dia, mas como disse, eu era uma sombra naquela casa. Ele não me queria a todo instante, mas também não deixava-me partir.

Eu temia que algo do gênero pudesse acontecer a Jake se James me achasse. Se o moreno soubesse da existência de Jake, de nosso relacionamento ele seria capaz de qualquer coisa, disso tenho certeza.

Deus, dai-me forças para deixar Jake ou talvez, para vencer esse medo.