Rotlaust Tre Fell

Strif dom frender råker


Hexham estava longe de ser um lugar muito importante. Talvez o próprio rei Aelle do reino de Nortúmbria nem soubesse de sua existência. O único tráfego considerável na cidade era o de cavalos e carroças carregando frutas e legumes pelas ruas estreitas. As casas, escuras, sujas e um pouco apertadas, todas elas melancólicas e do mesmo tom marrom acinzentado da madeira de carvalho, construções esguias e de telhados triangulares, rodeadas por pontes e córregos fedidos. Nas árvores não havia verde, só o tom laranja e vermelho das folhas que ia de inverno a inverno, salvo pequenos jardins com tulipas rosas-claras em um quintal ou outro. O único momento em que o povo de Hexham tinha vontade de deixar suas casas e comemorar era a chegada do inverno, quando os primeiros flocos nevados começavam a formar um tapete branco felpudo nas ruas. E o inverno estava chegando.

Hexham não possuía um governante fora o rei Aelle, quanto menos qualquer tipo de bastião ou guarda da cidade, apenas uma antiga torre onde dormiam os bêbados e onde as aves marinhas faziam seus ninhos. Mas, após o ataque à abadia de Lindisfarne, toda a costa inglesa agora permanecia em alerta, mesmo que nada houvesse a se fazer no caso de uma invasão dos nórdicos. Longínqua e esquecida, ainda assim possuía alguma utilidade, a cidade também era ponto de travessia para o interior da Inglaterra e uma potencial rota de comércio, se houvesse uma.

Num dia nublado e de muito vento vindo da costa, uma garotinha corria pelas vielas, descalça e vestindo apenas trapos esgueirando-se entre pedras e ripas de madeira com as mãos fechadas segurando algo. Hexham já era normalmente fria, principalmente naquela altitude, onde vivia constantemente rodeada por neblina densa, mas algo estava diferente, nem mesmo o ar parecia o mesmo. Lufadas de vento uivante jogavam seus cabelos para trás enquanto corria, como as labaredas cor laranja que sobem em uma fogueira numa noite fria.

Adentrou num pequeno e modesto casebre e correu até o quarto, onde uma mulher de longos cabelos ruivos e olhos sorridentes costurava uma peça de roupa.

— Mãe, veja! – disse a garotinha enquanto abria as mãos e mostrava o pequeno animal que carregava: um filhote de tartaruga. – Eu estava brincando na praia e ela apareceu na areia... – A mãe, com uma expressão de surpresa no rosto, largou a roupa de lado e tomou o animalzinho para si. A pequena tartaruga gemia baixinho. - Eu posso ficar com ela?

— Hazel, devia tê-la deixado na praia. O lugar das tartarugas não é dentro de casa, é no mar. – Hazel baixou a cabeça, tristonha.

— Vou ter que devolvê-la então? – ela perguntou com o tom de voz choroso.

— Sim, meu amor, infelizmente. – A mãe colocou o bichinho nas mãos da garota de novo. – Mas pode ficar com ela até a hora do almoço, depois, vamos devolvê-la. – Hazel voltou a saltitar e saiu do quarto levando a tartaruga consigo. A mãe de Hazel entendia que a garota houvesse de procurar algo com que pudesse se entreter, desde que a irmã mais nova morreu pela febre, ela tinha de se divertir sozinha.

Momentos depois, Hazel estava sentada à mesa com seu bichinho, lhe dando uma folha de alface como almoço. A tartaruga mordiscava tanto a folha como os dedos dela, fazendo-a rir. Sua mãe, que estava na cozinha, veio trazendo uma cesta com pães frescos e um prato com peixes assados, sorridente.

— Pesquei estes hoje de manhã, estão bem gostosos, pegue um. – As duas comeram e Hazel dava pequenos pedacinhos de pão para sua amiga que havia chamado de Jude, que comia com avidez. Sua mãe ainda lambia os dedos enquanto disse: - Pronta para levar a Jude? – triste, ela assentiu.

As duas andaram de mãos dadas pelo caminho pedregoso que ia até a costa. Hazel era nada mais que uma criança de 12 anos saltitando na areia branca e espalhando seus cabelos de fogo pelo vento e colorindo de laranja a Hexham de tons azuis e cinzas. Chegando ao mar, agachou-se e depositou Jude carinhosamente aonde a espuma do mar vinha.

— Adeus, Jude, quem sabe nos veremos um dia? – com lágrimas nos olhos, observou o bichinho bater as pequenas nadadeiras em direção ao mar e ser levada por uma onda. A mãe agachou-se a seu lado e acariciou suas costas e as duas ainda permaneceram ali por alguns segundos.

Foi quando, sem aviso ou explicação, ouviu-se um som estrondoso e grave vindo ao longe, como um trovão. Hazel olhou em volta na praia e nada viu, olhou para o céu que continuava cinzento e pensou ser aquela a origem. Então olhou para sua mãe, ela, com os olhos arregalados de pavor, observava o horizonte. Foi quando Hazel virou-se e teve a pior sensação de horror de sua vida; imensos barcos com carrancas terríveis talhadas na proa, carregando dezenas de escudos de cada lado e mais outras dezenas de homens em seu interior. As bandeirolas dos barcos tremulavam com o vento e com o timbre da corneta que um homem que estava apoiado à carranca do primeiro barco tocava. De imediato entendeu o que acontecia: os nórdicos chegaram.

— Filha! – a mãe puxou-a pela mão e as duas correram pelo caminho de volta enquanto o som que mais parecia uma das trombetas do apocalipse ficava cada vez mais próximo. Eles remavam rápido e cada vez que olhavam para trás os barcos cresciam. A mãe de Hazel chorava enquanto levava a filha pela mão, pois sabia o que estava prestes a acontecer em Hexham, o mesmo que acontecera em Lindisfarne.

— Os nórdicos chegaram! Estão vindo! Corram! Escondam-se! – ela gritava enquanto passava pelas ruas. As poucas pessoas que se atreviam a estar fora de suas casas começaram a gritar e espalhar a notícia da chegada dos invasores e logo se instaurou uma histeria coletiva em Hexham. Hazel e sua mãe entraram em casa correndo e ambas fizeram questão de reforçar todas as portas e janelas com objetos pesados e grossas tábuas de madeira, mesmo que soubessem que não faria a mínima diferença.

— O que vamos fazer? – Hazel perguntou aflita.

— Nos esconder, ficar em silêncio e torcer para que passem por nós e não nos vejam. Oh, Deus, misericórdia! – A mãe respondeu fazendo o sinal da cruz e uma oração rápida.

Logo, Hexham ficou em silêncio. Nada se ouvia nas ruas, nem uma alma viva, todos escondidos como ratos num porão. Então, o pandemônio novamente; o som da corneta, urros, passos pesados, o som de armas batendo em escudos de madeira e diálogos arranhados numa língua estranha. Do lado de fora, o que havia era cerca de uma ou duas centenas de guerreiros, homens e mulheres, todos enormes, os cabelos grandes e trançados assim como as barbas, para os que as tinham. Anéis pendiam de seus cabelos, todos traziam escudos, machados, facas e alguns traziam arco e flecha. Eram quase como seres sobrenaturais, destruindo qualquer vida que estivesse em seu caminho, arrombando as casas e arrastando as pessoas para fora, fincando machados em seus crânios logo em seguida. Havia muito sangue e os nórdicos pareciam deliciar-se com ele manchando suas peles e armas de vermelho. Os pobres que tentavam correr eram abatidos pelos arqueiros, tão cruéis quanto os outros. O saque era de objetos de ouro, prata e aço, crianças sendo arrastadas, mulheres estupradas, velhos mortos em seus leitos e quase todos eles partidos ao meio por um machado ou esfaqueados. Hexham em poucos instantes virara um mar de cadáveres, sangue, caos e horror.

Hazel observava horrorizada o que podia numa fresta entre as tábuas da porta. Sua mãe, escondida embaixo da cama, fazia sinal para que saísse dali imediatamente, mas ela continuava assistindo a carnificina. Não podia acreditar. Então, levou um susto quando dois pares de olhos azuis pintados de preto ao redor das órbitas a encararam subitamente pela fresta. A garota deu um grito e caiu, arrastando-se como podia para longe da porta antes da mesma ser golpeada diversas vezes e depois arrombada. Quem entrou foi um homem muito alto, magro, com poucos cabelos e a tintura negra que ia dos olhos à bochecha, ele carregava um machado na mão direita e uma faca na esquerda, além das outras lâminas presas à cintura. O couro de sua roupa estava escurecido pelo sangue seco.

Ao ver o estado de terror da menina, ele lançou-lhe um olhar perturbador e riu com deboche, um risinho agudo. Aproximou-se de Hazel que estava imóvel no chão, completamente aterrorizada e com lágrimas nos olhos e agachou-se na frente dela.

— Olá, pequena. – ele disse, mas ela não compreendeu, falava uma língua estranha. Sua voz também era estranha– Espero que não fique brava comigo. – ele brincou com uma mecha de seu cabelo. Hazel sentiu o coração na garganta e pensou que iria morrer naquele momento. Do contrário, o homem se levantou e foi até o quarto onde sua mãe estava escondida. Ele até caminhava de um jeito estranho. Sem cerimônias, levantou a cama com uma mão só e com a outra arrastou a mãe de Hazel pelos cabelos. As duas gritavam. Ele ergueu o machado e estava pronto para desferir o golpe fatal na mulher que, aos prantos, fazia suas últimas preces e olhava a filha. Então ele olhou para Hazel também. A menina olhava para a mãe desolada e com um braço esticado tentando alcançá-la.

— Mamãe! – Ela gritou. Hazel olhou com medo para o estranho homem que ainda mantinha o machado erguido e os dois se encararam por longos segundos, os cabelos dela colados no rosto por causa das lágrimas e os olhos, antes de cor âmbar, agora vermelhos. Ele, com uma expressão de raiva no rosto. O guerreiro fez algo como um gesto de desapontamento e desferiu o cabo do machado contra a cabeça da mãe de Hazel, deixando uma grande marca e desacordando-a. A menina entendeu o que ele havia feito.

- O que é isto? – ele disse e mais uma vez Hazel não entendeu. O nórdico arrancou do pescoço de sua mãe uma fina corrente de ouro e brincou com ela nos dedos, curioso. Hazel apenas observava. Então, outro homem entrou pela porta, este era muito mais forte, os cabelos e a barba castanhos compridos e usava um gibão negro, seu machado e escudo eram enormes.

— Que está fazendo, Floki? – ele disse com voz grave. Olhou para Hazel ameaçador. – Mate-a de uma vez! – e avançou para cima da menina, que deu um grito e, por instinto, agarrou as pernas do outro nórdico. Este impediu o guerreiro maior de chegar até ela.

— Não! – bateu o machado contra o escudo do outro, que recuou. – Esta eu vou levar comigo, Rollo. – Hazel não entendia uma palavra do que diziam, mas pensou ter ouvido seus nomes, “Floki”, “Rollo”. – Vá pegar uma mulher para você! – Rollo olhou uma última vez para Hazel e saiu da casa com passos largos e pesados.

A menina soltou as pernas de Floki e olhou para a mãe, desacordada, mas viva. Sentiu-se um pouco mais aliviada. O nórdico a ergueu pelo braço.

— Sua mãe ficará bem – ele apontou para ela -, tem sorte de eu não ser o meu amigo Rollo, ele as teria estuprado e matado, mas não é justo com uma adorável garota como você. – ele a pegou pelo braço – E é por isso que você vem comigo! – riu. Sem entender, ela apenas o olhava.

Jogou-a nos ombros como se fosse nada e saiu. Hazel se debateu um pouco no início, mas pensou que se fingisse estar desmaiada seria mais fácil passar por eles. Abriu apenas uma fresta dos olhos enquanto Floki a carregava pela cidade e viu a cena mais horrenda de sua vida, todos aqueles corpos, o sangue, membros arrancados, cabeças decepadas e nórdicos festejando o saque. Viu que outro guerreiro se aproximava deles, este era tão alto e forte como Rollo, porém tinha os cabelos e a barba loiros, os olhos tão azuis como uma nascente de um rio límpido e um grande sorriso aberto.

— Floki! – apoiou a mão esquerda sobre o ombro de Floki. – Veja só! Foi um sucesso! O conde Haraldson vai ficar louco. – Hazel, a esse ponto, gostaria de entender o que eles falavam. – Por que está levando a criança? – ele perguntou e afastou os cabelos dela do rosto. Sentiu o sangue congelar nas veias.

— Helga gosta de crianças. – riu – E eu preciso de uma escrava para ajudá-la enquanto construo os barcos. – ajeitou a menina – Não confio naqueles padres, Ragnar, não mesmo!

— É uma criança, Floki, por que não leva uma mulher adulta? Seria mais útil. – perguntou.

— Crianças não fazem rebelião. – Hazel ouviu o barulho da água batendo nos cascos dos barcos e Floki parou de caminhar, depois, sentou-a ali. Ela abriu os olhos. – Silêncio. – fez sinal para que ficasse calada e saiu. Ela pensou em fugir, pensou em sua mãe, pensou em Hexham e pensou que em poucos instantes aqueles demônios a levariam para a terra deles, seja lá onde fosse. Não adiantaria fugir, eles a apanhariam e a matariam. Fechou os olhos e ficou quieta no chão do barco enquanto descarregavam a pilhagem.

Hazel sabia que provavelmente nunca mais voltaria a ver a mãe ou mesmo a Inglaterra. Com lágrimas nos olhos, pediu a Deus que a protegesse em sua jornada.