Gricai, a capital de Sortiny, o coração de seu poderio. Em seu centro, situava-se o castelo do reino, um edifício nada modesto apesar do tamanho do território do reino não ser muito expressivo. De uma das sacadas do castelo, um jovem de cabelos loiros com uma franja em forma de asa, vestindo trajes reais, um longo manto e uma coroa dourada, observava indignado as colunas de fumaça que subiam de uma de suas cidades vizinhas, Rabiphit, e davam um tom incômodo ao céu ensolarado. A porção da floresta que cobria a entrada da cidade foi consumida pelas chamas, restando as porções que circundavam o local, as quais só não foram também queimadas porque os moradores de Rabiphit se esforçaram duramente para controlar o incêndio. De qualquer forma, a situação não parecia nem um pouco boa para o jovem, que aguardava impacientemente por notícias. O jovem então ouviu passos, percebendo que uma pessoa se aproximava. Ele nem se virou para ver, pois os passos irregulares eram suficientes para saber quem se aproximava: Sua mãe. Os passos irregulares eram resultado de seu difícil caminhar, pois necessitava de uma bengala para se locomover, mas apesar disso e da idade, ela tinha uma beleza ímpar. Em seu rosto, contudo, estava estampada a preocupação causada pelos eventos recentes, a qual levou a mulher a indagar a seu filho por novidades.

?????: Chegaram mais notícias de Rabiphit?

!!!!!!!: Ainda não, minha mãe...

?????: Ai ai... Dá pra ver o estrago daqui. Tenho pena do povo de Rabiphit...

!!!!!!!: E nossa rota de acesso ficou inutilizada por causa disso. Eu ainda mando para a forca o responsável por isso...

&&&&&: Ó Rei Ritchie, ó Rainha-mãe Noemi.

O jovem e sua mãe se viraram para ver quem os chamou. Foi um homem trajando uma armadura negra e trazendo uma enorme espada embainhada em sua cintura. Sob autorização do jovem rei, o guerreiro se aproximou a se ajoelhou perante os dois monarcas.

Noemi: Ah, Rashu. É sempre tão bom te ver...

Rashu: Sinto-me agraciado por tais palavras, ó grande rainha-mãe.

Ritchie: Não embrome, Rashu. Diga-me logo as notícias.

Rashu: Sim, majestade. Os guardas capturaram alguns homens que estavam nos arredores da cidades. Eles confessaram ser capangas da bandida conhecida como Lady Fogaréu.

Noemi: Ai ai... E eu achando que essa mulher tinha sossegado...

Ritchie: E o que ela estava planejando fazer em Rabiphit?

Rashu: Segundo aqueles energúmenos, ela intentava saquear a cidade para usurpar os itens de valor que viessem a passar pela rota secreta.

Ritchie: Saquear uma cidade vizinha à capital... Mas é o cúmulo da estupidez.

Noemi: E eu suponho que os guardas não conseguiram capturá-la.

Rashu: Os guardas a procuraram por todos os cantos, mas não a encontraram em lugar algum.

Noemi: Ai ai... Isso não é bom...

Ritchie: Hmph... Eu devia mandar esses guardas para a cadeia por tamanha incompetência.

Noemi: Meu filho, não diga isso. Tenho certeza que eles fizeram o melhor que podiam. Além do mais, temos que considerar que nossas forças de defesa estão debilitadas.

Ritchie: E por quê será, heim, mamãe? Ah, sim, me lembrei. Porque você botou nossa segurança nas mãos de bruxas desmioladas que quase nos mataram! E agora, estamos obrigados a recorrer a mercenários gananciosos e estúpidos caçadores de recompensas enquanto nossos soldados sequer aprenderam a trocar as ceroulas!

O comentário ríspido do rei entristeceu a rainha-mãe, que ficou quieta e assim criou um breve momento de silêncio, que foi quebrado por Rashu ao prosseguir com seu relatório.

Rashu: Falando em caçadores de recompensas, acreditamos que um deles interferiu nos planos de Lady Fogaréu.

Ritchie: Como assim?

Noemi: Mão de Pravus.

Ritchie: M-Mão de Pravus?! Como tem tanta certeza?!

Noemi: Ai ai... Me admira que esteja surpreso... Se bem que, eu admito, o sujeito caprichou nas explosões dessa vez.

Ritchie: Mas quem te garante que não foi a Lady Fogaréu que...

Noemi: Lady Fogaréu não é burra. Ela sabia muito bem que teria que executar um ataque furtivo à rota secreta. E mais; precisaria de um contingente considerável de aliados para tal.

Rashu: Excelente dedução, majestade. Segundo nossos cálculos, Lady Fogaréu tinha 48 capangas ao seu dispor; a maioria deles era treinados para luta. Destes, porém, só restaram oito vivos.

Noemi: Que perda... Mas, de qualquer forma, ela veio bem preparada. Pois bem, está claro que não foi ela que explodiu os portões.

Ritchie: Tsc... Ao menos, tem notícias desse tal Mão de Pravus, Rashu?

Rashu: Não, alteza. Nossos soldados estão procurando por ele enquanto falamos.

Ritchie: Então, aumente a prioridade! Use quantos soldados for preciso!

Noemi: Ai ai... A essa altura, isso é inútil.

Ritchie: Inútil?! Como pode dizer uma coisa dessas?! Aquele maldito causou um estrago que vai levar meses pra reparar! Ele não pode sair impune disso!

Noemi: É bem provável que Mão de Pravus tenha travado um combate com Lady Fogaréu. Se ela tivesse ganhado, certamente os soldados encontrariam o cadáver do inimigo dela. Mas, suponho que não seja o caso.

Rashu: Deduziste bem novamente, minha rainha.

Noemi: A essa altura, ele já deve ter chegado a outra cidade, longe daqui, para cobrar a recompensa pela captura... Ai ai... É triste...

Ritchie: Maldição! Mil vezes maldição!

Furioso, o rei passou por Rashu e entrou no castelo, esbravejando e amaldiçoando tudo o que podia imaginar. Assim, ficaram apenas a rainha-mãe e o seu servo na sacada.

Noemi: Ai ai... Como é duro ter um filho idiota. São nessas horas que tenho mais saudade do meu filho mais novo...

Rashu: Por favor, alteza, não se aflija com isso. Tenho certeza que ele agora está em Utopia, olhando por ti.

Noemi: Sempre tão gentil, Rashu... Obrigada. Mas, de certa forma, o meu filho idiota está certo. Esse caçador de recompensas causou um grande dano dessa vez. Está na hora de fazer algo a respeito.

Rashu: Se desejares, posso mobilizar a mim e a meus companheiros; nós, os Combatentes Reais de Sortiny.

Noemi: Por favor, faça isso. Quero que busque todas as informações que conseguir sobre esse sujeito. Repasse tudo o que descobrir diretamente para mim. Não diga nada para o rei. Tenho sua palavra?

Rashu: Certamente, majestade. Tens minha palavra e minha lealdade. Eu, Rashu, juro por Sortiny, pela minha espada Extereus e por ti que não descansaremos até levarmos ao Mão de Pravus a justiça que ele merece.

No dia seguinte, na Vila da Ferradura, Lobs estava cuidando de seus afazeres no balcão de sua taverna, a qual foi aberta há poucas horas. Naquele momento, os mesmos clientes de dois dias atrás estavam presentes e ocupavam as mesmas mesas de antes. Porém, havia uma mesa a mais que estava ocupada. Purkeed estava lá, cabisbaixo, escondendo seu rosto com sua franja em forma de asa. Um dos três clientes que estavam na primeira mesa, curioso, resolveu indagar a Lobs sobre o menino.

Cliente 1: Qual o problema dele, Lobs?

Lobs: Ele tá preocupado com irmã. Aquela encrenqueira saiu há dois dias sem avisar e até agora não voltou.

Cliente 2: Não me diga que a irmã dele era aquela pantera que quase brigou com a gente.

Lobs: Pantera, é? Heh... É, é ela sim.

Bêbado: Hiiihihihi... Hic! Sei naum, heim? Tô achando que aquela gatinha deu de cara com a Lady Fogaréu e virou filé miau! Hihihihi! Hic!

Cliente 3: Dobre essa língua, imbecil! O garoto tá preocupado e você fala uma besteira dessas?!

Bêbado: Ninguém mandô ele ficar aqui, camarada; taverna num é lugar de quiança mesmo... Hic!

Cliente 3: Desgraçado...

Naquele instante, fortes ruídos assustaram a todos que estavam na taverna. Alguém estava batendo na porta de forma nada delicada. Aquilo deixou Lobs furioso, mas ele procurou manter a calma.

Lobs: Está aberto!

Mas a pessoa do lado de fora insistiu nas batidas. A paciência do taverneiro já beirava o seu limite.

Lobs: Eu já falei que está aberto!

As batidas continuaram. Lobs, então, saiu do balcão bufando de raiva e se dirigiu a porta em meio a vários resmungos.

Lobs: Mas que diabos... Quem é o idiota que...

O taverneiro pôs a mão na maçaneta para abri-la, mas naquele exato momento, a pessoa do outro lado deu um brado.

"FOGARÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉUUU!!!"

Lobs tirou a mão da maçaneta imediatamente ao ouvir o grito e deu alguns passos pra trás, pálido como um cadáver. Os três homens que estavam na primeira mesa se levantaram apavorados, querendo fugir do local. Purkeed olhava estático para a porta; estava perturbado demais com os pensamentos que inundavam a sua cabeça, especialmente por causa dos comentários do velho bêbado, e, por isso, se via incapaz de reagir. Por sua vez, o bêbado ria caqueticamente diante da aparente vinda da sua adorada Lady Fogaréu.

A porta da taverna se abriu vagarosamente e assim que os homens viram quem era a pessoa que havia batido na porta, ficaram surpresos: Era Mileena. Esta trazia uma mochila imensa nas costas e um sorriso descarado no rosto.

Mileena: Oiê.

Ao constatarem que tudo não passou de uma brincadeira, os homens ficaram indignados, especialmente Lobs, que não poupou seu fôlego para repreendê-la.

Lobs: Mas tinha que ser você de novo! Droga, Mileena, o que você tem na cabeça?! E onde você...

Purkeed: Irmã Mileena!

Antes que Lobs pudesse continuar a bronca, Purkeed passou por ele, quase derrubando-o, e deu um abraço na irmã, que retribuiu com o mesmo gesto.

Mileena: Ah, Purkeed... Eu te assustei também, não foi? Você desculpa essa sua irmã destrambelhada?

Purkeed: Não tem problema; minha irmã tá de volta, isso é o que importa!

Mileena: Ah, você é mesmo um maninho muito fofo, sabia? Não é como um certo monstrinho felpudo que sai rugindo assim que me vê...

Lobs: ...

Purkeed: Nossa, você encontrou um monstro? Ele te machucou, irmã?

Mileena: Que nada. Esse tipo de monstrinho só faz barulho mesmo; ele não machuca nem mesmo uma mosca doente.

Lobs: (Ora sua...)

A provocação da moça arrancou dos clientes do taverneiro um riso discreto. O taverneiro olhou revoltado para eles, mas eles não conseguiam conter a risada.

Bêbado: Erm... Só um instantinho aí. Hic! Cadê a Lady Fogaréu? Eu ouvi ela gritando lá fora! Cadê ela?! Hic!

Vendo o estado do velho, Mileena não perdeu a chance.

Mileena: Heh... Olha, velhinho, eu acho que você deve ter escutado o fantasma dela.

Bêbado: F-Fantasma?!

Cliente 1: Espera aí; tá dizendo que a Lady Fogaréu...

Mileena: Vamos dizer que ela teve uma "mãozinha" pra isso...

O bêbado ficou atônito por um breve tempo, vindo depois a se debruçar em seus próprios braços, chorando em voz alta. O choro, porém, não durou muito e logo deu lugar a alguns roncos.

Lobs: E mais essa... Esse velho dormiu na minha mesa de novo! Vou ter que por esse desgraçado pra fora...

Mileena: Não. Deixe esse velho comigo. Faço questão.

Com o mínimo de delicadeza possível, Mileena o agarrou pelas vestes e o jogou pra fora da taverna como se joga uma trouxa de roupa suja. Lobs ficou incomodado.

Lobs: Olha aqui... Esse velho tá me devendo, sabia? Se ele morre, como é que ele vai me pagar depois?

Mileena: Em primeiro lugar, ele mereceu essa por tripudiar do meu irmão. E em segundo lugar, se o seu problema é dinheiro...

Mileena, então, pegou de um dos bolsos da sua mochila um saquinho branco e o entregou pra Lobs. Quando ele abriu o saquinho, arregalou os olhos.

Lobs: Isso é... Mileena, onde você...

Mileena: Isso deve cobrir os dois meses que estou te devendo. Ia pagar o próximo mês adiantado também, mas como tô de ótimo humor e eu não quero que você o estrague, vou deixar que você use isso aí pra cobrir os gastos desses quatro chatos também.

Cliente 1: Quê?!

Cliente 2: Sério?!

Mileena: Sério, senhores. Rodada pra todo mundo por minha conta. Aproveitem.

Cliente 3: Moça, você ganhou meu respeito de vez!

Cliente 1: É isso aí! Obrigado mesmo!

Cliente 2: Aí, Lobs, ouviu a pantera... Digo, a donzela. Enche os copos aí!

Lobs: Aff... Tá bem, tá bem, já vou. Só que nossa conversa ainda não acabou, viu, mocinha?

Mileena: Como quiser. Agora, se me dá licença, tenho que falar com meu irmãozinho em particular. Tchauzinho.

Mileena então conduziu seu irmão até a porta de acesso ao subterrâneo da taverna. Já Lobs servia, de cara amarrada, os seus clientes, que o caçoaram novamente. Ele tinha quase certeza de que Mileena bancou a rodada de seus clientes apenas para evitá-lo. Afinal, ele temia que aquele dinheiro trouxesse mais problemas do que as soluções que ofereceu e obviamente ela não queria ouvir mais reclamações.

Cliente 1: Um brinde a Mão de Pravus, que deu fim a Lady Fogaréu!

Cliente 2: Um brinde à pantera, que deu essa rodada pra gente!

Cliente 3: Um brinde ao Lobs, que é mais sério que sacerdote em dia de velório!

"AÊÊÊÊÊÊ!!!"

Lobs: (Por que eu, Adriel? Por que eu?)

No subterrâneo, Mileena chegava ao quarto de Purkeed junto com o próprio. Ele estava todo contente e falante pois estava feliz de ver sua irmã de volta. Ela também estava contente por ter voltado, ainda mais por concluir sua "missão" com sucesso.

Assim que entrou, ela viu um livro em cima da cama de Purkeed. Havia na capa do livro um símbolo familiar para ela: Era uma bola de fogo negro com três pontas contornadas com cor dourada e viradas para esquerda. Ela pegou o livro e ficou olhando emudecida para ele, com os olhos marejados.

Purkeed: Irmã? O que foi? Você ficou quieta de repente...

Mileena: Purkeed... Onde foi que você achou esse livro?

Purkeed: Ah, sim... Hoje de manhã, houve outro furto na biblioteca da cidade. Eu saí pra procurar você e, quando me dei conta, deu a maior correria pelas ruas. Depois, quando as coisas se acalmaram, eu achei esse livro no chão e trouxe pra cá. Mas eu vou devolver, eu prometo!

Mileena: Você por acaso tem ideia de que livro é esse?

Purkeed: Bem... É um livro de receitas, não? Eu trouxe pra cá porque eu planejava fazer uma receita de bolo escrita nele pra você... Mas o senhor Lobs não deixou...

Mileena olhava para os olhos de Purkeed atentamente enquanto ele falava e quanto mais ela olhava, mais ele ficava apreensivo.

Purkeed: Irmã... Você está me assustando...

Mileena viu que ele estava sendo sincero. Ela se sentia mal por desconfiar de seu irmão, mas seu instinto a levava a pôr em dúvida até mesmo aqueles que estão mais próximos dela. Não tendo dúvidas da inocência de seu irmão, ela pôs o livro na cama e impôs nele sua mão revestida com a manopla. Então, ela começou a recitar algumas palavras mágicas. Surgiu do livro uma aura azulada e um círculo azul se formou em volta do símbolo na capa. Ela prosseguiu com as palavras mágicas e o círculo azul se revolvia, ora em sentido horário, ora em sentido anti-horário. Ao recitar a última palavra, o círculo sumiu e a aura azulada do livro se dissipou.

Mileena: Pegue.

Sem entender o que estava acontecendo, Purkeed pegou o livro e o abriu. Para a sua surpresa, o que estava escrito no livro naquele momento era totalmente diferente de antes.

Purkeed: Ué? O que aconteceu? Cadê as receitas? Isso agora tá parecendo mais com um...

Mileena: Originalmente, este livro não é de receitas. Ele foi criptografado com uma magia, fazendo com que se pareça com algo sem grande importância e assim esconder seu verdadeiro conteúdo. É o Cadeado Mágico, uma das especialidades do clã Darphai.

Purkeed: É do seu clã? Então isso aqui...

Mileena: É um diário... O diário de uma de minhas irmãs.