Mileena folheava o diário que Purkeed trouxe, demonstrando pouco interesse no que lia. Ao chegar à última página escrita, ela deu um suspiro e fechou o diário.

Mileena: Hmph... Valeria...

Purkeed: Valeria? Ela era a dona desse diário?

Mileena: É... Reconheço pelos garranchos trêmulos, fora as inúmeras baboseiras que ela escreveu aqui. Praticamente tudo o que ela escreveu aqui não passa de futilidades, exceto pelas últimas páginas onde ela deixa claro que estava se borrando de medo pelo que estava por vir...

Purkeed: Como assim?

Mileena: Bem, Valeria integrou a Rebelião das Bruxas, mas à contragosto. Ela estava com medo de ir, mas como foi a Rachel quem incitou a rebelião, ela não teve peito pra recusar.

Purkeed: Rachel? Ela era alguma bruxa importante em seu clã?

Mileena: Só pro próprio nariz. Ela era muito esnobe e não era por menos. O que as outras bruxas faziam, ela sempre conseguia fazer melhor, sem contar que ela também era manipuladora de luz, trato raríssimo numa bruxa. Muitas de minhas irmãs a bajulavam, mas só duas delas ficavam como suas "cadelas-de-guarda"; uma era Valeria e a outra se chamava Barbera. Valeria gostava de parecer que estava por cima, mas não sabia fazer quase nada por si mesma; Barbera era uma folgada que queria nada na vida e tudo na mão.

Purkeed: Hm... Pelo jeito, elas não eram legais com você, não é?

Mileena: Nem um pouco. Até um condenado à morte seria melhor tratado por elas do que eu...

Purkeed: Credo, irmã... Por que elas haveriam de te tratar tão mal?

Mileena: Porque as minhas irmãs, especialmente a Rachel, me viam como uma aberração e diziam que um dia poderia até destruir o clã inteiro... E a ironia disso tudo é que quem cavou as próprias covas foram elas mesmas...

Purkeed: Que horror... Nem quero pensar como elas te tratavam... Ou como morreram...

Mileena: Não queira mesmo, irmãozinho. Já basta eu sonhar com essas desgraças toda noite...

O comentário de sua irmã deixou Purkeed entristecido. Ele sentia que sua irmã sofria muito com tudo o que aconteceu, mesmo depois de anos, e ele mesmo não sabia o que fazer para confortá-la.

Purkeed: Me desculpe, irmã Mileena...

Mileena: Pelo quê?

Purkeed: Eu não tinha ideia que esse livro poderia trazer tantas lembranças ruins pra você... Se eu soubesse, eu...

Movida pela preocupação de seu irmão, Mileena pôs a mão em sua cabeça.

Mileena: Maninho, você não tem que me pedir desculpas; sei que você não fez por mal. Aliás, você fez muito bem em trazer esse diário pra cá.

Purkeed: Não está zangada comigo?

Mileena: É claro que não, bobinho. Eu estou muito feliz por você me apoiar. Obrigada, tá?

A moça deu um beijo na cabeça de seu irmão, que logo recuperou o semblante contente.

Purkeed: Eu é que fico feliz de poder ajudar minha irmã.

Mileena: Assim é melhor. Quanto ao diário, eu vou ficar com ele, tá?

Purkeed: Mas irmã, isso é da biblioteca. Não acha que vai ter problema se... Er... Não devolvermos?

Mileena: Eu resolvo isso com a biblioteca depois; por agora, ele vai ficar comigo. Tudo bem?

Purkeed: Se você diz, irmã...

Mileena: Não se preocupe; não vou deixar ninguém te incomode por minha causa.

Purkeed: Tudo bem, irmã. Eu acredito em você.

Mileena: Obrigada. Ah, quase que me esqueço.

Mileena então pôs seu alforje na cama de Purkeed, depois tirou a mochila das costas e a pôs no chão. Tirou de dentro dela uma bolsa e a deu para Purkeed, que a pegou e a colocou também em sua cama. Purkeed abriu o alforje primeiro e encontrou seu estilingue e suas bolinhas de âmbar.

Purkeed: Minhas coisas...

Mileena: Desculpe por pegar sem avisar. Eu estava com pressa e precisva delas para o meu trabalho. Pra compensar, te trouxe uma coisa legal. Abra a bolsa.

Purkeed então abriu a bolsa que sua irmã lhe trouxera e ficou boquiaberto quando viu o que tinha dentro.

Purkeed: UAU! Bolinhas de âmbar! Tem um monte delas aqui! Onde você conseguiu tantas, irmã?!

Mileena: Comprei no caminho de volta.

Purkeed: Puxa, irmã, obrigado! Com tantas aqui, tenho quase certeza que aqui tem a bolinha com a efêmera dourada!

Mileena: Efêmera dourada?

Purkeed: Sim, sim! Você reparou que algumas bolinhas vêm com insetos dentro, não reparou?

Mileena: Ah... Sim, eu vi. Algumas vieram mesmo com insetos.

Purkeed: Essas são difíceis de encontrar, por isso, quem junta as bolinhas também fazem coleções desses insetos.

Mileena: E a bolinha com a efêmera dourada pelo jeito é bem rara, não é?

Purkeed: Ela é única! Tem vários rumores sobre ela. O melhor deles é o que diz que essa bolinha concede um desejo para quem a tiver!

Mileena: Puxa... Como é que eu nunca ouvi falar disso antes? Uma coisa dessas seria assunto pra conversa de todo mundo...

Purkeed: São só rumores, irmã. Muita gente não acredita.

Dada a natureza inocente de Purkeed, não foi surpresa para Mileena que seu irmão acreditasse piamente nesse rumor. Ela, contudo, não quis insistir no assunto. Mileena então pegou sua mochila e o diário, deixando seu alegre irmão contando as suas bolinhas, e foi para o seu quarto. Depois de largar a mochila num canto, Mileena se sentou em sua cama e ficou olhando para o diário de Valeria. Seus olhos logo ficaram marejados. Ela se lembrava dos eventos terríveis que culminaram na morte de suas irmãs. A própria Mileena havia testemunhado a execução de algumas de suas irmãs, inclusive Valeira, que fora enforcada em público junto com outras 19 bruxas, todas dispostas em um grande círculo. Mesmo depois de 8 anos, Mileena não conseguiu superar totalmente o trauma.

Mileena nunca entendeu direito como aquela rebelião se deflagrou. Ela só soube que a rebelião ocorreria no mesmo dia em que ela aconteceu. Ela até chegou a notar algumas atitudes suspeitas da parte de suas irmãs, mas nunca havia passado pela cabeça dela que elas intentavam em tomar o reino inteiro para si. Uma das lembranças mais proeminentes daquele dia foi o discurso final de Rachel, que foi como Mileena soube da rebelião.

Rachel: Irmãs! Nós, bruxas do clã Darphai, nos curvamos por tempo demais às vontades deste reino. Nosso clã tem defendido Sortiny por décadas a fio e o que ganhamos em troca? Mixaria, minhas irmãs, nada além de mixaria! Protegemos os residentes desse reino em troca de gozações e murmúrios! Protegemos o rei e a rainha por tanto tempo e não ganhamos nada! Agora, eles nos deixam a reinar sobre nós esse principezinho ridículo, que mal saiu das fraldas e já acha que pode se aproveitar do nosso suor, de nossas lágrimas, e mandar sobre nós como bem entende! Basta, irmãs! Hoje, este reino irá renascer! Chega de vivermos acomodadas ao capricho alheio, como fazia a mulher que um dia chamamos de mãe, a Madame Midea! Tomaremos hoje este reino para nós, bruxas do clã Darphai, e entregá-la para a nossa digníssima governadora! A nossa grande mãe Argenta!

"Viva mãe Argenta! Viva a nossa mãe Argenta!"

As palavras ressoavam na mente de Mileena como se uma assombração sussurrasse em seus ouvidos. Ela ainda não conseguia acreditar como suas irmãs, que obviamente não eram poucas, foram capazes de acreditar em tamanha sandice e de cometer tamanha loucura, se bem que, considerando que suas irmãs se tornaram cada vez mais orgulhosas com o passar dos anos, talvez fosse inevitável que esse orgulho viesse a sobrepujar a elas mesmas eventualmente. De qualquer forma, isso deveras entristecia a moça, que ainda tem que lidar com a saudade de sua mãe, Madame Midea, que passou seus últimos anos sendo acudida pela própria Mileena, mas definhou de desgosto até o dia que faleceu.

Porém, enquanto olhava para o diário, Mileena se deu conta de um detalhe: O diário estava na biblioteca. Era um detalhe simples, mas crucial. Os livros das Darphai haviam sido confiscados pelo reino após a rebelião e Mileena nunca soube o que aconteceu com eles; até então, ela achava que eles tinham sido destruídos. Mas, tendo o diário de Valeria em suas mãos, a possibilidade dos livros do seu clã terem sido meramente guardados, possivelmente graças ao Cadeado Mágico, era enorme. Mileena viu a sua chance de ouro de tirar a limpo tudo o que aconteceu há 8 anos atrás. E o local onde ela deveria começar a investigação não poderia ser mais evidente.

Mileena saiu do seu quarto, carregando apenas o diário, em direção à área comum da taverna; porém, ela ouviu seu irmão chamá-la.

Purkeed: Irmã, olha o que... Ué, você vai sair de novo?

Mileena: Sim, mas não se preocupe; devo voltar ainda hoje.

Purkeed: Ah, você vai devolver o diário? Mas você não disse que ia...

Mileena: Não vou, só vou resolver um assunto. Comporte-se enquanto eu estiver fora, tá?

Purkeed: Tá, mas... Pode olhar isso aqui antes?

Mileena estava com pressa, mas resolveu ver o que Purkeed queria mostrar. Era uma bolinha de âmbar com um inseto avermelhado dentro.

Mileena: O que é isso?

Purkeed: É uma mosca vulcânica. Esse inseto não é tão raro quanto a efêmera dourada, mas também é muito difícil de encontrar. Ele veio nas bolinhas que você trouxe e ainda tem vários outros bichinhos nelas!

Mileena: Puxa, muito bom. Fico feliz por você, maninho.

Purkeed então deu abraço em Mileena, que foi pega de surpresa.

Purkeed: Isso é tudo graças a você, irmã. Eu amo você.

Mileena ficou comovida com o gesto do seu irmão. Nessas ocasiões em que Purkeed lhe demonstra seu afeto, a moça se lembrava dos tempos em que o clã ainda existia e, especialmente, do amor que Madame Midea demonstrou durante todo o tempo. Mileena era considerada a “ovelha negra” do clã não só por causa da manopla e do seu poder de explodir as coisas que tocava, mas porque ela também era irmã postiça dos membros do clã. Porém, Midea, a líder do clã, pensava e agia de modo definitivamente o contrário; estava sempre por perto, apoiando-a e confortando-a, agindo como uma verdadeira mãe. Assim como não era filha autêntica de Midea, Purkeed não era irmão de sangue de Mileena, e, depois de todo o amor que recebeu de sua mãe adotiva, a moça de manopla também tinha o desejo de demonstrar esse amor para seu irmão adotivo.

Mileena: Eu também te amo, irmãozinho.

Mileena deu de novo um beijo na cabeça de Purkeed e lhe dirigiu um sorriso. Em seguida, ela partiu para a área comum, atravessando-a rapidamente e saindo pela porta. Lobs não teve nem tempo de perguntar para onde ela iria.

Lobs: Hmph... Mal saiu de uma e vai pra outra. Ô garota inquieta...

Alguns minutos depois, ela se viu próxima ao seu destino. Diante da possibilidade de finalmente entender tudo o que aconteceu no derradeiro dia do clã Darphai, Mileena obviamente estava ansiosa. Ela respirou fundo e seguiu, em direção à porta da biblioteca.